1129. “Mercosul, do otimismo à resignação”, Boletim de Economia e Política Internacional (Ipea: n. 16,
jan.-abr. 2014, p. 43-56; ISSN: 2176-9915;
link: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/boletim_internacional/140512_boletim_internacional016.pdf).
Relação de originais n. 2568.
Resumo: Ensaio sobre os problemas e desafios do Mercado Comum
do Sul (Mercosul), discorrendo sobre a natureza das dificuldades e discutindo
as perspectivas abertas ao desenvolvimento de médio prazo do bloco. O Mercosul,
cujo projeto original de estabelecimento de um mercado comum num prazo
relativamente curto nunca chegou a ser implementado, passou por diversas crises,
algumas induzidas externamente, outras provocadas por desequilíbrios internos. Seus
principais problemas, todavia, estão vinculados às políticas macroeconômicas e
setoriais dos dois maiores membros, Brasil e Argentina, e ao caráter errático destas.
Aos problemas conjunturais, registrados em seu itinerário, agregaram-se novas
orientações políticas a partir de 2003, com um desvio do foco principal na
liberalização comercial para a diversificação política e diversos novos
componentes de caráter social, assim como uma falta geral de compromisso com os
objetivos prioritários do bloco. Em função dos desequilíbrios e contradições
acumulados no bloco, não é provável uma correção dos problemas no futuro
previsível. Subsiste, portanto, uma indefinição quanto ao seu futuro, que
depende, como sempre dependeu, das lideranças políticas.
Palavras-chave: Mercosul; Brasil;
Argentina; crise institucional; desafios; perspectivas.
MERCOSUR: FROM OPTIMISM TO RESIGNATION
Abstract: Analytical essay about current problems and
challenges of Mercosur, going over the nature of those difficulties, and
discussing probable perspectives for the bloc in the mid-term range. The
original mandate of Mercosur, to arrive at a common market in a relatively
short term period, was never fulfilled, and the bloc went over many crises, some
induced externally, other provoked by internal disequilibria. Main problems,
though, are connected to the macroeconomic and sectorial policies of their two
major members, Brazil and Argentina, and to their erratic character. Adding to
the temporary problems in Mercosur’s itinerary, there were new political
guidance starting in 2003, which resulted in a redirection of the primary
commitment to trade liberalization toward a political diversification and
social concerns, not to mention the non committal stance regarding the original
goals of the bloc. Taking into account the disequilibria and contradictions
plaguing Mercosur, it is unlikely a timely correction in the foreseeable
future. Probably outcome, then, is a remaining non definition as to Mercosur’s
future, always dependent on its political leaderships.
Keywords: Mercosur; Brazil; Argentina; institutional
crisis; challenges; perspectives
Classificação JEL: F2, F5
1. Males de origem: não um bloco, mas uma assemblagem
de países
Embora alguma
retrospectiva seja sempre útil, não é estritamente necessário, para fins desta
análise, retomar em detalhe todo o itinerário do Mercosul desde seu momento de
criação, suas etapas sucessivas de desenvolvimento comercial e político e, em
especial, seus momentos de crise e de desvio dos objetivos originais, até
chegar à conjuntura atual e seus possíveis desdobramentos nos anos à frente.
Não é preciso, tampouco, resumir cada uma de suas realizações bem sucedidas,
mediante o exame sintético dos arranjos setoriais negociados e em
funcionamento, uma vez que a análise que se pretende conduzir aqui é de caráter
geral, destacando os desafios à frente, sem entrar no detalhe dos instrumentos
criados ou dos fluxos comerciais e demais intercâmbios existentes internamente
ao bloco. Análises desse tipo podem ser encontradas em análises sintéticas já
incorporadas à literatura desse campo (MARQUES, 2011; BARBOSA, 2007; ALMEIDA, 2013).
Ainda assim, breve
recapitulação de suas principais etapas pode ser útil para tentar definir o que
deu errado com o bloco. Serão consideradas,
em primeiro lugar, as questões de política comercial e, de forma geral,
orientações de política econômica, que constituem o coração mesmo do Mercosul,
para abordar, em seguida, os temas institucionais e políticos, que também
representam elementos relevantes da construção integracionista.
A literatura acumulada
sobre o bloco, no Brasil e nos países vizinhos, tem abordado as diferentes
facetas do processo de integração – econômica, política, social, jurídica (RIBEIRO,
2013) – e tem contribuído para uma compreensão razoável do que foi o Mercosul,
em sua origem, como ele evoluiu, ao longo das duas primeiras décadas, e sobre
quais são seus principais problemas. A tarefa aqui, assim, será a de tentar
antecipar alguns de seus desenvolvimentos prováveis, com base tanto na
literatura consolidada, quanto no legado acumulado pelo bloco ao longo de seus
primeiros vinte anos (RESENDE- MALLMAN, 2013), mas também
apoiando-se na observação direta das políticas de integração seguidas pelos
seus membros e associados, ou seja, a prática efetivamente registrada dos
Estados Partes que possui incidência direta no e para o processo de integração.
Uma análise com tais
intenções teria de ser bem mais conceitual, e mais institucional, do que
propriamente focada nas políticas nacionais, uma vez que é o perfil geral do
edifício integracionista que deveria determinar o curso atual e futuro do
bloco. Ocorre, porém, que a presença política e o ativismo dos dirigentes
máximos dos países membros são de tal forma relevantes para a definição de suas
principais políticas, que a moldura institucional e os principais instrumentos
operacionais acabam sendo relegados a segundo plano nas reuniões definidoras
das grandes orientações do bloco. Desse ponto de vista, o Mercosul aparece como
bem menos institucionalizado – e dotado de menor respeito ao quadro legal – do
que outros esquemas de integração, mais ou menos profundos, como podem ser
experimentos complexos como o da UE, ou mesmo simples zonas de livre comércio,
como é o Nafta.
Não surpreende, assim,
que qualquer digressão sobre a evolução futura do Mercosul se apresenta como
difícil, senão impossível, pois que altamente dependente do comportamento
aleatório – por vezes até errático – das lideranças políticas em cada um dos
países, dada a personalização dos sistemas políticos nacionais e do próprio
processo de integração. O caráter oscilante da evolução do Mercosul pode
inclusive ser determinado por fatores totalmente contingentes, como ocorreu em
junho de 2012, na reunião de cúpula de Mendoza, quando o Paraguai foi suspenso
pelos três outros membros por suposta “ruptura democrática” – na verdade uma
crise política interna – interpretada e sancionada sem que necessariamente
tenham sido seguidos os requerimentos do próprio Protocolo de Ushuaia (1998),
que determinavam consultas com a parte afetada antes de qualquer aplicação de
sanções.
A despeito da adesão de
todos os países – até por rotina burocrática – a um conjunto mínimo de regras
de política comercial, estas vêm sendo alteradas de maneira crescente e
arbitrária pelo ativismo político-econômico de cada um dos Estados, na ausência
de mecanismos mais aperfeiçoados para uma melhor coordenação das políticas
econômicas nacionais, e até de vontade política para tanto (BARBOSA, 2007). Os
analistas isentos saberão reconhecer o desvio de rota registrado a partir do
início dos anos 2000, quando a componente comercial perdeu importância
relativamente aos elementos políticos, sociais e mesmo culturais do Mercosul, observando-se
ainda uma introversão de suas principais orientações negociadoras (ALMEIDA, 2011c).
Durante as primeiras
duas décadas de existência do Mercosul, o itinerário do bloco tinha sido
marcado por uma característica básica: suas configurações essenciais foram
construídas, não tanto a partir da arquitetura institucional ou do
funcionamento interno do bloco, mas sim com base nas orientações políticas,
sobretudo de política comercial, de seus dois principais membros, a Argentina e
o Brasil. De fato, esse foi o elemento definidor do itinerário do Mercosul,
desde suas primícias, até a crise de 1999, quando uma primeira ruptura ocorreu
no funcionamento do bloco, determinada pela crise cambial brasileira, seguida
da rápida deterioração da situação na Argentina e a total implosão do modelo
econômico posto em funcionamento no momento mesmo da criação do bloco, em 1991
(ALMEIDA, 2011b).
Os anos seguintes foram
não apenas de letargia nos entendimentos internos, como de retrocesso nos
compromissos de abertura recíproca, em grande medida provocado pela atitude da
Argentina de fechar seus mercados à competição setorial dos demais membros,
dada a preocupação com emprego e sobrevivência de indústrias numa conjuntura de
fortes ajustes pós-crise. Nova ruptura no funcionamento interno do bloco
ocorreu em meados de 2012, quando o processo foi alterado de forma substantiva,
a partir do ingresso irregular da Venezuela, admitida na ausência e contra a
opinião do Paraguai, temporariamente suspenso das reuniões do bloco en função
de uma crise política interna no país guarani, identificada pelos três outros
membros como constituindo uma “ruptura democrática”, no sentido definido pelo
Protocolo de Ushuaia de 1998 (PAZ, 2013). Tudo leva a crer que esse será o
molde formal no qual o Mercosul se desenvolverá – se desenvolvimento houver, no
sentido substantivo e cumulativo da palavra – no futuro previsível: a partir
das decisões políticas adotadas de forma voluntarista pelos três grandes sócios
do bloco.
Em outros termos, não
são tanto os atos constitutivos – Tratado de Assunção, Protocolo de Ouro Preto
– ou os instrumentos acessórios – protocolos e acordos setoriais, inclusive
sobre solução de controvérsias – ou sequer o conjunto de normas definidoras de
suas políticas setoriais – comerciais e outras – que determinarão o curso a ser
seguido pelo Mercosul, e sim as políticas internas dos três sócios maiores, com
seus reflexos no processo de integração. São estas políticas que se afiguram
decisivas, não exatamente para influenciar no que ele deveria, ou no que ele
poderia ser, mas para o que o bloco vai ser, concretamente.
2. Objetivos
comuns e convergência de politicas econômicas
A base de todo e
qualquer empreendimento integracionista é a existência de uma vontade comum aos
participantes, o mais possível convergente, no sentido de adotar as medidas
necessárias, no plano interno, de maneira a viabilizar os requerimentos do
processo de desmantelamento de barreiras à formação de um espaço econômico
comum. Esse foi, por exemplo, o quadro político que presidiu à primeira fase da
integração europeia, a partir da proposta de uma comunidade setorial afetando a
produção e comércio do carvão e do aço (1950-1951), assim como propósitos
semelhantes, embora simplesmente livre-cambistas, estiveram em atuação na
América do Norte, desde os primeiros ensaios de liberalização comercial entre
os Estados Unidos e Canadá (1965 e 1988) até a aprovação do Nafta, no início
dos anos 1990 (MAIA-CUNHA, 2013).
Se, em algum momento,
essa comunhão de propósitos existiu entre os membros do Mercosul – e ela foi
bem mais evidente na dramática conjuntura de saída dos regimes autoritários
militares, em meados dos anos 1980 – e se manifestou nos impulsos sucessivos
que levaram do PICE (1986), ao Tratado de Integração Bilateral Brasil-Argentina
(1988), logo depois à Ata de Buenos Aires (1990, que decidiu acelerar o
processo) e finalmente ao tratado quadrilateral de Assunção (TA-1991), que criou
o Mercosul em sua forma atual, essa vontade há muito parece ter deixado de
existir. Não é difícil de se chegar a esta conclusão ao se constatar, no
decurso da segunda década do bloco, a adoção progressivamente crescente, por
parte dos dois membros mais importantes, de medidas unilaterais de caráter
exclusivamente nacional que passaram a afetar o quadro regional no que ele
tinha de mais relevante: sua conformação jurídica enquanto personalidade de
direito internacional sob a forma de uma união aduaneira. Não é difícil
imaginar que o ingresso da Venezuela no bloco, em condições particularmente
bizarras, venha a contribuir para esse quadro errático no processo decisório e
de ambiguidades na implementação das medidas institucionais e de funcionamento
do Mercosul.
Em qualquer hipótese, é
indispensável lembrar que desde o seu início bilateral, o Mercosul pretendeu
seguir um modelo mais sofisticado do que os então existentes na região –
limitados a simples acordos preferenciais ou esquemas de livre comércio – para aproximar-se
de um padrão europeu de integração, adotando, desde o início, o objetivo final
de um mercado comum. Este era o objetivo declarado, aliás estabelecido
formalmente no TA, que devetia ser alcançado, otimistamente, em 1/01/1995.
Seria útil recordar, também, que a partir dessa data, o Mercosul foi declarado
“personalidade de direito internacional”, querendo isso presumivelmente
significar que o bloco estava pronto a negociar, em seu próprio nome, acordos
comerciais com terceiras partes e outros compromissos no plano multilateral.
De fato, o Mercosul
engajou-se em negociações coletivas – tanto no plano regional, com os demais
membros da Aladi, como no plano hemisférico, em especial no contexto do projeto
americano da Alca; mas também no inter-regional, entre o Mercosul e a UE; e,
mais importante, no contexto da rodada de negociações comerciais multilaterais
da OMC. Em todas essas ocasiões, com muito poucas exceções, a coordenação
interna ao Mercosul parece ter sido mais complicada do que as negociações com
os demais parceiros, stricto sensu.
Isso se deveu – e se deve, ainda agora, e talvez continue a se dar, no futuro –
a que os interesses nacionais, e as posições negociadoras dos membros do
Mercosul, são muito diferenciadas entre si, em função de posicionamentos
distintos quanto às opções de políticas econômicas de cada um deles, o que
apenas reflete tipos de inserção e de orientação em políticas macroeconômicas e
setoriais (especialmente comerciais e industriais) também muito diversos entre
si. Dentre as explicações levantadas para tratar desta questão, as “assimetrias
estruturais” têm sido aventadas como a causa principal dessas diferenciação de
objetivos, o que não parece constituir hipótese razoável para a origem das
dificuldades do bloco.
A disparidade de
políticas econômicas nacionais parece ser o elemento central que explica o
precário estabelecimento dos pilares essenciais do empreendimento
integracionista em sua segunda década de existência. É ela que fundamenta a
dúvida de saber se, no futuro de médio prazo, o Mercosul conseguirá, ou não,
cumprir os requisitos básicos de seu projeto constitutivo: o acabamento de sua
união aduaneira, com vistas a avançar para o prometido mercado comum. A
incapacidade dos países em completar o próprio programa estabelecido na origem,
para o Mercosul, constitui, atualmente, o elemento central de seu
desenvolvimento no futuro de curto e médio prazo, ou seja, a partir da terceira
década de sua existência.
Como seria possível
interpretar, assim, as vias prováveis de evolução futura do Mercosul, em face
dos problemas remanescentes e das tendências sistêmicas que se observam
atualmente no bloco, em especial, no que respeita o comportamento dos seus
protagonistas mais importantes? Duas linhas de explicações são aqui seguidas:
quanto aos procedimentos, e quanto à substância do processo de integração.
No que respeita, em
primeiro lugar, os procedimentos, e admitindo-se a premissa estabelecida ao
início – que condiciona a evolução do bloco às orientações políticas dos seus maiores
sócios, processo aliás vinculado ao alto grau de personalização do processo
decisório, típico do presidencialismo altamente instável que vige na região –
pode-se vincular o futuro do Mercosul ao que determinarem os presidentes e os
mais altos responsáveis econômicos do Brasil, da Argentina e, doravante, da
Venezuela. No que tange, em segundo lugar, à substância do processo, cabe
enfatizar que, a despeito de toda a retórica política em torno do Mercosul e
das iniciativas adotadas pelos governos dos Estados partes no terreno político
(e em suas derivações sociais, culturais, educacionais e outras), a essência do
processo só pode ser econômica e comercial: enquanto não se avançar nesse
terreno, é propriamente um engodo falar-se do reforço ou da ampliação da
integração.
Se estas linhas
explicativas guardam consistência com a realidade registrada em sua segunda
década de existência, cabe reconhecer que o Mercosul desviou-se
significativamente de seus objetivos originais, a ponto de raramente a agenda
de reuniões na fase recente ocupar-se do cumprimento das metas estabelecidas no
artigo 1o. do TA. O que deveria ser o ponto de partida da integração
– o livre comércio pleno e o correto funcionamento da união aduaneira – parecer
ter se convertido num objetivo distante, praticamente ausente dos discursos
políticos da fase recente. Este quadro não parece ter se alterado na atualidade
(MARQUES, 2011).
Resta saber, portanto,
se o futuro imediato (e o mediato também) confirmará a tendência ao
esvaziamento do processo econômico real – e sua conversão em um simples foro de
questões gerais lidando com a integração superficial de países contíguos –, ou
se o Mercosul conseguirá retornar, a partir de sua terceira década, a seu
projeto original. Para isso cabe considerar o que ele foi, até aqui, e quais
são os problemas e desafios que deveriam fazer parte de uma agenda real de
integração: um exercício retrospectivo, focando as políticas desenvolvidas nos
últimos anos, pode ajudar a antecipar o que pode – e o que deveria – vir pela
frente.
3. A
politização do Mercosul e o fantasma das assimetrias estruturais
A consequência mais
evidente derivada da ascensão de novas lideranças políticas no Brasil e na
Argentina – no caso, os já mencionados Lula e Kirchner – foi representada pelo
nítido afastamento desses países (e, no mesmo movimento, do Mercosul) dos
objetivos econômicos basilares do TA, em especial a liberalização comercial
recíproca e a continuidade da abertura econômica no plano global. Em seu lugar,
reingressaram na agenda velhas receitas substitutivas e industrializantes, sob
forte dirigismo estatal e protecionismo aos empresários nacionais; em suma, não
apenas um desvio em relação aos princípios “constitucionais” do Mercosul, mas
igualmente um retorno de quase meio século na história econômica desses países
(ALMEIDA, 2011c).
Esse movimento
regressista foi bem mais forte, numa primeira fase, na Argentina, do que no
Brasil, que não atravessou uma crise tão grave quanto aquela enfrentada pelo
país platino no início do novo milênio. No caso do Brasil, consoante a vontade
das novas lideranças do Partido dos Trabalhadores de exercer uma não-assumida
liderança política no continente – ou seja, ultrapassando inclusive o quadro
formal do Mercosul – o que se observou foi uma espécie de fuga para a frente,
em direção de objetivos sociais e políticos não concebidos originalmente como
partes essenciais do processo de integração: tratou-se nitidamente de um efeito
substituição.
Os governos dos países
membros favoreceram, em diversos setores da área econômica, o retorno a velhas
posturas nacionalistas e estatizantes, atitudes que estavam em nítida
contradição com os requisitos tradicionais da integração, que são a abertura
econômica e liberalização comercial. A incorporação da Venezuela às instâncias
deliberativas – ainda que não todos os procedimentos de adesão tenham sido
efetivamente ratificados e seguidos pelo novo membro – contribui para reforçar
os elementos constitutivos objetivamente anti-integracionistas no Mercosul.
Readaptando velhas
receitas de extração keynesiana, numa versão trabalhada outrora pela Cepal, os
países membros começaram a adotar, em diferentes medidas, prescrições
macroeconômicas fortemente embasadas nos modelos de industrialização à la List; a ênfase tornou-se essencialmente
nacional, ou até introvertida, continuando a adesão retórica a esquemas
integracionistas mas num formato o mais superficial possível. A despeito de
críticas acadêmicas quanto às insuficiências institucionais ou a um alegado
déficit democrático no Mercosul – ou talvez, por isso mesmo –, não ocorreu
nenhum esforço para caminhar-se na direção de um tipo “comunitário” de
integração, modelado segundo a experiência europeia; o sistema
intergovenamental, portanto, continuou como antes, mesmo se novas “instituições”,
de caráter puramente acessório, foram sendo criadas para dar a impressão de
“progressos” na integração.
No plano dos movimentos
hemisféricos e regionais, algumas tendências se revelaram ou se desenvolveram
no novo período: o Chile interrompeu seu movimento de aproximação econômica ao
Mercosul e deu início às negociações para o estabelecimento de um acordo de
livre comércio com EUA, no que foi seguido por outros países andinos, à exceção
dos “bolivarianos”; a Venezuela explicitou sua demanda de adesão ao Mercosul,
com o apoio de todas as lideranças executivas, mas sob intenso escrutínio dos
movimentos de oposição no Brasil e no Paraguai, que questionavam as credenciais
democráticas do candidato, quando o relevante, na verdade, seria a incorporação
plena de todas as normas de política comercial; o Brasil tomou diferentes
iniciativas para afastar os EUA da região, propondo instituições exclusivamente
sul-americanas (como a Comunidade Sul-Americana de Nações, oportunamente
transformada em União, Unasul, segundo proposta e ativismo do coronel Hugo
Chávez).
No contexto específico
do Mercosul, o governo brasileiro apoiou ativamente a constituição de novos
órgãos – Instituto Social, Parlamento, esforços adicionais de “inserção
social”, etc. – mesmo quando os objetivos primários do TA, que são o livre
comércio e a união aduaneira, continuaram submetidos a contínua erosão, tanto
pelas crescentes restrições adotadas no plano interno, quanto pelo
protecionismo ampliado no plano externo (RIBEIRO, 2012). A Argentina foi bem
mais enfática, e explícita, nos mecanismos defensivos do seu mercado interno,
sob o olhar complacente do governo brasileiro, mesmo contra os interesses de
seus exportadores em geral, dos industriais em particular. A despeito de todas
as políticas defensivas da Argentina, e do fato que elas foram e continuam
sendo ilegais e abusivas, os fluxos do intercâmbio bilateral – que constituem
ainda o grosso do comércio intra-Mercosul – continuaram a beneficiar os
exportadores do Brasil, cujos superávits com o vizinho permanecem
significativos.
A acumulação de saldos
comerciais e a volta ao crescimento dos fluxos intra e extra-regionais não
impediram que a parte do comércio regional recíproco dos países do Mercosul
diminuísse em relação ao volume global dos intercâmbios do bloco, em especial
no caso do Brasil (CURZEL, 2013). A Argentina se mantém ainda na condição que já
foi várias vezes caracterizada como de “Brasil dependência”, que ela se esforça
em diminuir, mas recorrendo a métodos claramente anti-integracionistas, no
limite antibrasileiros. Desde meados dos anos 1990 que ela recorre – no início
moderadamente, nos anos 2000 de forma intensa e aberta – a diferentes
mecanismos protecionistas (como antidumping, salvaguardas, licenças de
importação, quotas informais, etc.), muitas vezes de forma ilegal e abusiva,
não apenas contra o espírito e a letra dos instrumentos constitutivos do
Mercosul, mas também em oposição a dispositivos do sistema multilateral de
comércio (como o Código de Salvaguardas, por exemplo).
Mas é também um fato que
a parte do Mercosul no comércio global brasileiro, depois de ter aumentado em
dez pontos percentuais, a partir de sua pequena base de 4% ao início da criação
do bloco, tornou a diminuir na segunda década; ainda que os valores absolutos
tenham voltado a crescer a partir de meados dessa década, relativamente eles
passaram a representar parte decrescente do comércio exterior brasileiro
(CURZEL, 2013, p. 86-87). Isto significa que o Mercosul continua a ser
significativo no plano microeconômico – ou seja, representa um importante
mercado para empresas individuais – mas já não é macroeconomicamente relevante
para o Brasil quanto foi nos primeiros oito ou nove anos.
Para assegurar, ainda
assim, sua pretensão à liderança dentro do bloco, e na região como um todo, bem
como para apoiar projetos específicos ou diminuir reclamações de parceiros e
resistências a suas iniciativas políticas, o Brasil começou a desenvolver o que
foi chamado de “diplomacia da generosidade”. Esta foi feita de diferentes
elementos não recíprocos no relacionamento regional, a começar por um duvidoso
programa de “substituição de importações”, que consistiria na importação
voluntária, por parte dos empresários brasileiros, de produtos dos países
vizinhos, mesmo que eles “fossem mais caros”, mas seria para “ajudar países
mais ‘pobres’ do que o Brasil, segundo os argumentos do presidente Lula. Como
os empresários privados não se entusiasmaram muito pela ideia – de fato,
inconsistente, no plano da lógica, e economicamente prejudicial a seus
interesses de capitalistas – o ministério das Relações Exteriores implementou
ele mesmo um programa destinado a ajudar os vizinhos a exportar para o Brasil,
numa notável demonstração de “promoção comercial” ao revés.
Todavia, a iniciativa
mais consistente com a pretensão à liderança regional por parte do governo Lula
– e supostamente para sanar diferenças estruturais entre os países membros, que
estariam, ao que parece, dificultando a integração – consistiu no desenho e
implementação de um programa de correção das “assimetrias estruturais”
existentes no Mercosul, criado e financiado à razão de 70% de seus montantes
pelo próprio Brasil. Justamente por ser grande, extremamente bem dotado de
recursos e industrialmente mais avançado, o Brasil passou a ser visto, pelos
seus parceiros do bloco, como o “fazedor de normas”, o principal beneficiado e,
segundo alguns, o “aproveitador”, de todo o processo do Mercosul.
O “Fundo para a
convergência estrutural e o fortalecimento da estrutura institucional do
Mercosul (Focem)” parte de um diagnóstico, alegadamente empírico, segundo o
qual as fontes dos problemas de integração no Mercosul estariam nas chamadas
“assimetrias”, ou seja, diferentes dotações de fatores e especializações
distintas, em cada um dos países, que redundariam em benefícios distintos para
cada um. Sem análises fundamentadas em estudos econômicos mais rigorosos, o
Brasil foi apontado como o principal provedor de recursos e designado candidato
a ser o pagador líquido de todos os mecanismos corretivos de supostas
desigualdades – tendo inclusive assumido voluntariamente esses papeis, por
iniciativa do próprio governo –, numa reprodução tentativa de instrumentos
existentes na União Europeia, como se o Brasil dispusesse da maior renda per
capita do bloco ou como se ele já não exibisse algumas das maiores
desigualdades sociais e regionais de toda a região.
Em qualquer hipótese, o
Focem não apenas reproduz, como também mimetiza e duplica funções que seriam
melhor assumidas por entidades tecnicamente mais sólidas, como os bancos e
fundos financeiros multilaterais e regionais – tipo Bird, BID, CAF e outros – dispondo,
por outro lado, de bem menos recursos e expertise na área do que os órgãos já
consolidados como esses. Não é menos verdade que a capacidade de “correção de
assimetrias” de um fundo sumamente modesto como o Focem aparece como ínfimo em
face do potencial de necessidades visíveis em todos os países, a começar pelo
próprio Brasil.
Economistas dotados de
concepções menos dirigistas em matéria de políticas públicas concordariam em
que não são exatamente as “assimetrias estruturais”, em sua dimensão própria,
que constituem obstáculos aos avanços da integração; as diferenças sistêmicas
entre países formam, aliás, a base mesma das especializações setoriais e
regionais e são o fundamento do próprio comércio internacional (que só existe,
por sinal, graças a essas “desigualdades” produtivas). A pretensão à
uniformidade ou à homogeneização dos fatores produtivos constitui um
contrassenso econômico e um empreendimento de Sísifo, que só existe em mentes
dirigistas.
Por fim, mas não menos
importante, bem mais relevantes do que as alegadas diferenças “estruturais”, ou
seja, materiais, entre os países membros, são as “assimetrias” de políticas
econômicas, estas sim as responsáveis pelas maiores dificuldades de integração
no Mercosul. Elas se manifestam não apenas em termos de diferenças de
orientação nas principais políticas macroeconômicas – em especial, as de tipo
fiscal, monetário e cambial – mas também no que respeita políticas setoriais,
geralmente na indústria e na agricultura, onde mecanismos defensivos ou claramente
protecionistas são constantemente mobilizados por grupos de interesse para
tentar manter antigas posições nos mercados nacionais. Ora, todo e qualquer
processo de integração implica, necessariamente, transformações produtivas e
reconversão de unidades empresariais: se o esforço se dá no sentido de manter o
cenário habitual, não há razão para se iniciar um processo de integração.
Duas das principais
virtudes de qualquer processo de integração são, justamente, a indução à
modernização do sistema produtivo e a quase obrigatoriedade de reformas
institucionais e setoriais, de maneira a adaptar o parque produtivo nacional ao
novo cenário criado pela liberalização ampliada dos mercados; se os governos
hesitam ou relutam em empreender reformas, todo o empreendimento pode estar
condenado ao fracasso. Esse é o aspecto que deve ser agora abordado, com vistas
a determinar possíveis caminhos para o Mercosul a partir de sua terceira
década.
4. O que o
futuro reserva ao Mercosul e ao processo de integração?
Cabe, agora sim,
adentrar no campo prospectivo e tentar antecipar, com base nos argumentos
expostos nas seções precedentes, o que poderá ocorrer – e, talvez até, o que
deveria ocorrer – no Mercosul, com apoio na experiência acumulada do próprio
bloco, nas tendências detectadas nas seções precedentes e, também, no
conhecimento das políticas em curso nos países membros. Independentemente,
porém, do perfil econômico de médio e de longo prazo do Mercosul, e das
características políticas e institucionais que ele poderia assumir, em
decorrência das ações futuras dos governos dos Estados partes, um aspecto
parece seguro, qualquer que seja seu itinerário no horizonte previsível: o
Mercosul não corre qualquer risco de desaparecer pela vontade deliberada de
seus membros (ALMEIDA, 2011a). Nenhum dos líderes políticos,
atuais ou futuros, parece pronto a descartá-lo como projeto, ou estaria
disposto a assumir o ônus de decretar seu fracasso, apenas por ineficiência
relativa de seus mecanismos ou devido ao aumento das irracionalidades
econômicas acumuladas nos últimos anos.
O fato é que,
considerando-se os experimentos de integração respectivos da Ásia e da América
Latina em perspectiva comparada, a conclusão a que se poderia chegar, com base
unicamente nos volumes envolvidos e na intensidade de comércio registrado, bem
como em sua composição, é que os esquemas latino-americanos, em sua grande
maioria, carecem de densidade e de profundidade, quando confrontados aos
asiáticos. Não se trata exatamente de esquemas diferentes em sua estrutura e
características – uma vez que em ambas as regiões predominam os acordos
puramente preferenciais, com uma ou outra manifestação de livre comércio – mas
de disposição efetiva para um real processo de liberalização comercial e de
integração com o mundo, ou seja, o fenômeno que já foi chamado de regionalismo
aberto.
Na América Latina, em
geral, e na América do Sul em especial, as únicas manifestações de regionalismo
aberto são representados por aqueles acordos que unem os países,
individualmente, de um lado, e os Estados Unidos, de outro, e cujas
disposições, até por exigência dos EUA, cobrem uma vasta gama de áreas
(incluindo serviços, investimentos e propriedade intelectual) e tendem a
admitir menor número de exceções. Nos casos exclusivamente latino-americanos,
as preferências são mínimas, muitas vezes fixas, as exceções são muitas, e a
abrangência desses acordos costuma limitar-se ao comércio de bens.
Em consequência, o
comércio global dos países asiáticos tende a se expandir exponencialmente – inclusive
roubando parcelas dos intercâmbios globais aos latino-americanos – com ampla
cobertura de setores e intensa integração de cadeias produtivas, pela via dos
próprios investidores diretos e de suas decisões microeconômicas. A América
Latina, em contrapartida, parece se contentar com modestos acordos
preferenciais e abertura muito limitada aos investimentos e aos fluxos de livre
comércio, que dependem sempre do dirigismo macroeconômico de seus governos. Na
região, um dos poucos países a libertar-se dessas características introvertidas
é o Chile, que possui mais de 90% de seu comércio ao abrigo de acordos de livre
comércio, tendo assegurado – por meio da assinatura de dezenas desses acordos
com os mais importantes países do mundo – o acesso consolidado aos mercados de
países que devem representar cerca de 80% do PIB mundial; o Peru, o México e a
Colômbia pretendem seguir os seus passos, mediantes negociações
trans-Pacíficas. Em contrapartida, Brasil e Argentina são os países da região
que menos comércio exibem ao abrigo de acordos preferenciais, com a possível
exceção dos EUA (mas neste caso em virtude de seu imenso mercado interno, o que
diminui seu coeficiente de abertura externa).
Estas evidências –
absolutamente claras quanto a suas manifestações concretas, sob a forma de
crescimento do PIB e da renda per capita, numa e na outra região – poderiam
estimular Brasil e Argentina – ou uma Venezuela “pós-socialista” – a
empreenderem novas rodadas de liberalização comercial, tanto recíprocas, quanto
na América do Sul e externamente, como ocorreu ao início dos anos 1990, quando
da criação do Mercosul. É, no entanto, pouco provável que isto ocorra, tendo em
vista as políticas econômicas em curso nos dois países desde o início do
milênio e suas reações ao que vem sendo apontado como “concorrência predatória
de produtos estrangeiros”, em face do que as respostas tem sido mais
protecionismo e tendências ao enclausuramento. No final de 2011, se saudou a
constituição da Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe – Celac –
cujos objetivos primordiais parecem ser mais os de realizar reuniões retóricas
nas quais se enaltece a capacidade da região de buscar sua união sem “tutelas
externas” e de praticar um pouco mais de introversão econômica, do que de
abrir-se às “multinacionais do Império” e intensificar os laços econômicos de
todos os tipos, em especial os de comércio e investimentos, como se faz na
Ásia. As reuniões seguintes da Celac confirmaram a redundância na retórica
vazia.
Ainda que os países do
Mercosul pretendessem fechar-se aos desafios da competição chinesa – que vem
conquistando posições cada vez mais significativas em toda a região – seria
normal esperar que, valorizando como o fazem os “benefícios” do Mercosul, eles
decidissem reforçar os laços de abertura recíproca e de liberalização
comercial, ou seja: decidissem simplesmente atender aos requisitos mínimos do
artigo 1o. do TA, ainda carente de implementação em seus pontos
essenciais. Independentemente de algum novo cronograma que Brasil e Argentina
decidissem fixar – a primeira fase de transição era, obviamente, muito curta,
de apenas quatro anos –, seria preciso um engajamento credível com os objetivos
por eles mesmos fixados no instrumento original. Não parece provável, contudo,
que isto ocorra no horizonte visível, tendo em vista as tendências
crescentemente “separatistas” em vigor entre os dois mais importantes sócios do
bloco. Não seria tampouco a Venezuela, cuja economia encontra-se praticamente
desmantelada, depois anos de política econômica “socialista”, que poderia
trazer algum alento nesse particular.
Depois de vários anos de
restrições ilegais à importação de produtos brasileiros em seu mercado, a
Argentina caminha no sentido, não de desmantelar, mas de “aperfeiçoar” os
mecanismos defensivos e protecionistas: ademais do recurso habitual a
salvaguardas e antidumping, o governo argentino tem apelado para licenciamentos
não automáticos e outros expedientes restritivos do acesso de produtos
brasileiros a seus mercados. Ocasionalmente, se faz recurso a algum tipo de
retaliação, mediante a aplicação similar de restrições nas fronteiras, numa
demonstração pouco eficiente de “machismo comercial”. Quando os estoques de
produtos barrados aumentam dos dois lados da fronteira, uma reunião política
desarma o potencial de conflitos durante algum tempo, até a próxima contenção
ilegal. Eventualmente, os supremos mandatários dos dois países se reúnem,
anunciam algum “plano estratégico”, e prometem que, no futuro, “tudo vai ser
diferente”.
Em outros termos, não
existem muitas perspectivas de que os grandes parceiros do Mercosul, na
vigência dos instintos protecionistas vigentes atualmente, se reconciliem no
liberalismo comercial “neoliberal” dos anos 1990, o que não permite, portanto,
prenunciar a retomada da construção do projetado mercado comum bilateral – e
menos ainda plurilateral – prometido desde os anos 1980. Não é, por outro lado,
previsível – e, de certa forma, é praticamente impossível – que o acesso de
novos membros plenos ao esquema do Mercosul, sobretudo em se tratando dos
“bolivarianos”, como a Venezuela, a Bolívia ou o Equador, venha a resultar em
livre comércio ampliado. Ao contrário: o que se prevê é mais comércio
administrado, mais regulações intrusivas na atividade empresarial, mais
inserção social e distribuição de benefícios estatais, em uma palavra: maior
controle dos mercados, de maneira a permitir um espaço econômico equilibrado,
dotado de salvaguardas necessárias ao fluxo responsável de bens e serviços, sem
que os benefícios sejam concentrados em algum parceiro, dotado de vantagens
indevidas em função de “assimetrias estruturais”.
Se não existe
liberalização ampliada dos intercâmbios no Mercosul, mas apenas comércio
administrado ou monitorado pelas autoridades econômicas – sempre preocupadas em
corrigir os desequilíbrios –, não existem motivos suficientes ou os requisitos
necessários para a chamada coordenação de políticas macroeconômicas ou a
harmonização de políticas setoriais. Isso afasta ainda mais os países de um
saudável processo de reformas que eles deveriam de toda forma empreender,
apenas para manter condições de competitividade de molde a prepará-los para
enfrentar concorrentes externos. Isso, obviamente, no caso de os parceiros do
Mercosul pretenderem praticar o regionalismo aberto, o que talvez não seja o
caso. Não se pode, por outro lado, culpar a falta de institucionalização no
Mercosul por essas carências detectadas na liberalização recíproca, uma vez que
são as próprias políticas nacionais que obstaculizam o bom funcionamento da
zona de livre comércio ou a plena implementação da união aduaneira.
Em última instância, o
que está em jogo, em cada um dos países, são os instintos soberanistas de cada
um dos parceiros, sentimentos bastante exacerbados nos dois grandes sócios do
empreendimento integracionista. O retraimento na defesa dos mercados nacionais
e a proteção dos produtores locais ainda são iniciativas mais fortes, e de
forte apelo político, do que as dolorosas decisões pela abertura e pelo
desmantelamento de barreiras, ainda que apenas e tão somente no bloco,
exclusivamente. Compreende-se que a ausência de reformas dificulte a abertura,
o que por sua vez reforça a tendência à inércia: reformar a estrutura fiscal,
renunciar a tributos, eliminar controles que servem aos instintos burocráticos
das corporações estatais, modificar os direitos sindicais que produzem reservas
de mercado (e, de fato, desempregos setoriais), alterar a paridade do câmbio ou
deixá-lo flutuar sem controles, todas essas medidas são extremamente difíceis de
serem tomadas, e não é provável que Brasil e Argentina consigam se entender
sobre uma plataforma comum de reformas internas e sobre uma agenda partilhada
de retomada do processo de integração.
Na verdade, os dois
países – e outros países na região – não deixam de fazer ajustes, cada vez que
circunstâncias inesperadas alteram as condições do jogo econômico num ou noutro
país. Mas essas medidas são adotadas de forma ad hoc, sem obedecer a uma visão compartilhada de quais medidas são
favoráveis, ou não, ao processo de integração, o que afasta ainda mais a
perspectiva de uma coordenação de políticas entre os dois grandes parceiros do
Mercosul. Uma simples listagem de todas as medidas de política fiscal,
tributária, cambial, comercial ou industrial adotadas em cada um dos países
permitiria que se chegasse à constatação que sua orientação se deu, não num
sentido integracionista, mas objetivamente com propósitos restritivos ou
protecionistas: de fato, o grau de proteção efetiva aumentou, não diminui,
desde 1995, e não apenas para terceiros países, mas internamente ao Mercosul
igualmente.
A reunião de cúpula de
dezembro de 2011 em Montevidéu consolidou, de certa forma, essa visão
regressista do processo de integração, uma vez que não apenas se permitiu a
escalada tarifária até o máximo permitido pela consolidação aduaneira do
Mercosul junto ao sistema multilateral de comércio, como se abriu também a
possibilidade de os países, individualmente, elegerem setores supostamente
ameaçados pela competição “predatória” do exterior para fins de proteção, no
mesmo estilo primitivo que era adotado nos anos 1960-70. Assim, ao lado – e a
despeito – da retórica integracionista que permeia todos e cada um dos
encontros de cúpula, o processo de integração parece não mais constituir uma
prioridade real nas agendas de políticas econômicas de cada um dos países.
A reunião de cúpula de
Mendoza, por sua vez, em junho de 2012, exacerbou no voluntarismo político, ao
terem os três outros membros considerado que a crise política interna no Paraguai
– conduzida inteiramente segundo normas constitucionais, ainda que
apressadamente aplicadas – constituía uma “ruptura democrática”, tal como
vagamente definida no Protocolo de Ushuaia (1998): a suspensão do país guarani
foi no entanto adotada em violação das próprias normas de Ushuaia, tanto quanto
o “ingresso pleno” da Venezuela, adotada na imediata sequência, foi feito ao
arrepio das demais normas constantes do Tratado de Assunção e do Protocolo de
Ouro Preto. Criou-se um impasse político e diplomático que contaminou durante
mais de um ano o itinerário decisório e institucional do Mercosul (PAZ, 2013).
Para não dar a impressão
de imobilismo, ou até de retrocesso, se adota nova estratégia de “fuga para a
frente”, deslocando os objetivos do processo para a ampliação do bloco, não
para a sua consolidação ou aprofundamento. Não se vê, aliás, em que medida, e
com quais objetivos, o ingresso de novos membros em condições facilitadas – ou
seja, sem passar pela adoção obrigatória
da TEC – possa reforçar o Mercosul, em lugar de debilitá-lo. Aparentemente, o
Mercosul está se transformando numa Aladi sub-regional, quase um simples
cartório de registro de atos de natureza diversa, de implementação
relativamente vaga e de obrigações muito tênues. Tampouco se imagina como a
extrema flexibilidade na implementação das disposições essenciais do Mercosul
possa contribuir para o outro objetivo alegadamente importante, que é a redução
das “assimetrias estruturais” entre os membros. Cada vez que a qualquer um dos
membros é permitido seguir uma implementação “flexível” das normas comuns, o
que se tem é um reforço de assimetrias, não sua atenuação, inclusive devido ao
fato de que as “assimetrias” mais relevantes são aquelas derivadas de políticas
econômicas, não de supostas dotações diferentes de fatores (que são elementos
sistêmicos, ou seja, presentes em qualquer relação comercial, em todas as
demais partes do mundo).
O mais surpreendente é
que o processo de integração tenha sido iniciado em fases de alta instabilidade
política e de enormes dificuldades para se lograr a estabilidade
macroeconômica, com crises internas e externas que impactaram severamente cada
um dos países. Numa fase em que os valores da estabilidade econômica parecem
ter conseguido prevalecer sobre os desajustes do passado – com impulsos inflacionários,
troca de moedas e insolvências ocasionais – seria de se esperar que a
construção de um espaço econômico comum caminhasse com maior celeridade, ou
que, pelo menos, dispusesse de uma agenda
minimamente consensual para sua implementação.
Uma análise realista do
“estado da arte” no Mercosul poderia, por exemplo, chegar à conclusão de que o
projetado mercado comum, ou sequer a união aduaneira proclamada são factíveis,
de fato, cabendo, então, dar lugar a uma discussão sobre os meios e os
procedimentos aplicáveis a um processo ordenado de construção de uma simples
zona de livre comércio, formato que é, de longe, um dos mais comuns – junto com
os simples esquemas de preferências tarifárias – dos experimentos de integração
conhecidos no sistema multilateral de comércio. Seria um reconhecimento de que
a arquitetura concebida no momento da redemocratização dos países do Cone Sul
foi ambiciosa demais para as capacidades organizacionais dos parceiros nesse
tipo de empreendimento, cabendo, assim, reconhecer as virtudes mais modestas
dos esforços de cooperação focados em metas realistas de liberalização
comercial de escopo mais limitado ou de alcance não tão profundo.
Se o Mercosul quiser ser
bem sucedido ele tem de voltar ao básico, e cumprir o acordado no artigo 1o.
do TA, ou então começar por assumir a responsabilidade de efetuar uma reforma
profunda de seus instrumentos constitutivos. A reprodução mimética de um
esquema do tipo europeu sempre foi uma quimera do ponto de vista prático, e não
existem soluções institucionais indolores que consigam fazer do Mercosul um
edifício integracionista para o qual lhe carecem fundações apropriadas.
Um bom começo de um
processo de reformas seria um diagnóstico realista dos impedimentos sistêmicos
ou contingentes ao acabamento da união aduaneira, a partir do qual se poderia
prescrever uma arquitetura institucional com a qual as autoridades políticas
dos atuais parceiros poderiam concordar em dar o seu apoio. Nenhuma solução
“cooperativa” em torno de um processo de integração elude, porém, a necessidade
de reformas internas em cada um dos países participantes. E um compromisso
inquebrantável com o respeito à legalidade democrática e aos bons princípios do
Estado de direito seria uma condição essencial para o sucesso de todo e
qualquer esquema integracionista que se empreenda na região.
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RESENDE, Erica Simone Almeida; MALLMAN,
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_______ (coord.). Direito do Mercosul. Curitiba: Editora Appris, 2013.
+ Doutor em Ciências
Sociais pela Universidade de Bruxelas, diplomata de carreira e professor de
Economia Política nos programas de Mestrado e Doutorado do Centro Universitário
de Brasília (UNICEUB).
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