Paulo Roberto de Almeida
No Haiti, após uma década
Zero Hora, 15/06/2014
Com saída prevista para se iniciar em 2016,missão da ONU deixa dúvidas sobre seu mérito. Chefiada pelo Brasil, é vista por uns como orgulho nacional e, por outros, como fracasso
Dez anos depois de o Conselho de Segurança da ONU ter implementado a Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah), em 1º de junho de 2004, poucos lembram que a iniciativa havia sido aprovada, em 30 de abril do mesmo ano, para durar seis meses.
A possibilidade de renovação existia. Mas, passados o terremoto devastador, a implacável epidemia do cólera e o agravamento da miséria, a missão completa uma década sob a polêmica entre quem vê avanços na segurança interna de um dos países mais pobres do mundo e quem critica a intromissão militar que inibiria a autonomia institucional.
A longevidade da missão, com seus 30 mil militares no período, provoca protestos de alguns haitianos. Parte deles quer tomar conta do próprio destino. Mas entre 65% e 80% da população planeja se mudar para o Brasil, conforme Ricardo Seitenfus, representante no Haiti da Organização dos Estados Americanos (OEA) entre 2009 e 2011.
Em setembro de 2011 e em maio de 2013, o senado haitiano aprovou resoluções exigindo o fim da Minustah. A ONU, porém, pretende manter as tropas no país até 2016, algo que, na definição do senador haitiano Jean-Charles Moise, equivale já a uma "ocupação", que deveria ser encerrada pela "substituição dos tanques de guerra por tratores agrícolas".
Seitenfus, que está lançando o livro Haiti: Dilemas e Fracassos Internacionais (Editora da Unijuí), define a Minustah como "uma das piores missões de paz da história".
– Foram enviados soldados para onde não havia e não há guerra. Portanto, o desafio haitiano é socioeconômico e institucional. Não há como estabilizar um país com 80% de desemprego, com 50% de analfabetismo – critica Seitenfus.
Além da situação socioeconômica e da necessidade de tomar conta do próprio destino, os haitianos se amparam em estudos para reclamar que a bactéria do cólera foi levada por militares nepaleses da Minustah.
É algo que a ONU jamais reconheceu, rejeitando indenizações. Mas não fica nisso. Haitianos relatam casos de abuso sexual e excessos na repressão por integrantes da missão. E fazem coro com Seitenfus: criticam a instituição da Minustah, sob o capítulo 7 da Carta da ONU, que sustenta o uso da força em caso de "ameaça à paz, ruptura da paz ou ato de agressão". Por que a crítica? Porque dizem não haver justificativa para a intervenção internacional, nem antes nem depois da queda do presidente esquerdista Jean-Bertrand Aristide.
Governo viu chance de ser referência regional
Seitenfus ainda vê um vício de origem. Refere-se ao acordo de 9 de julho de 2004 entre a ONU e o governo haitiano. O documento foi assinado pelo então premier, Gérard Latortue, e não pelo presidente, como previa o artigo 139 da Constituição.
Pelo Brasil, a Minustah foi vista como oportunidade. Era a chance de projetar o país como líder regional, numa missão de estabilização depois da frustração em relação à do Timor Leste, que não prosperou em razão da crise econômica de 1999. O país foi ao Haiti de olho na cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Antônio Jorge Ramalho, assessor do governo e professor de Relações Internacionais na Universidade de Brasília (UnB), considera positiva a participação brasileira.
– O Brasil projetou sua imagem e sua bandeira. Mostrou capacidade de ação, o que é muito relevante. Conteve uma violência disseminada sem danos colaterais. Isso o coloca como um país respeitado quando se cita operações das Nações Unidas – diz.
Quando os militares brasileiros chegaram ao Haiti, a vulnerabilidade era tal que o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, cogitou ser uma missão com data para começar, mas não para terminar. Hoje, mesmo reconhecendo a importância da Minustah, os analistas coincidem quanto à necessidade de criar um planejamento para deixar o país, dando a suas instituições a tão sonhada autonomia.
Entrevista com Antônio Jorge Ramalho, especialista em Relações Internacionais
Antônio Jorge Ramalho, professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB), foi diretor de cooperação do Ministério da Defesa e implantou o Centro de Estudos Brasileiros em Porto Príncipe. Vê a Minustah como positiva.
Como o senhor avalia a participação brasileira?
O Brasil deu uma contribuição positiva e projetou sua imagem. Mostrou capacidade de ação, o que é muito relevante. Conteve uma violência disseminada sem danos colaterais. Isso coloca o Brasil como um país respeitado quando se citam operações das Nações Unidas. O país deixou uma imagem de profissionalismo. Não por acaso, a ONU escolheu o general brasileiro Carlos Alberto dos Santos Cruz (que, inclusive, comandou as tropas da Minustah entre 2006 e 2009) para comandar a brigada de intervenção na República Democrática do Congo, com autorização de usar a força para impor a paz. Claro que isso se deve ao bom desempenho do Brasil no Haiti.
Como será a saída?
É um fim pausado, cauteloso, com parcimônia. Há transferência para a polícia nacional do Haiti. No ano que vem, haverá eleições. O trabalho não termina. Há já uma mudança de foco, da ajuda militar de combate para a de engenharia, além de ajuda na saúde, na agricultura e outros setores. Ações vão continuar.
O que se pode esperar que ocorra no Haiti a partir da retirada da missão?
Vamos ver como o Haiti absorve essa retirada gradual, com a redução da missão internacional. Kofi Annan (ex-secretário-geral da ONU) chegou a dizer que havia ali uma tarefa para duas décadas. Por essa perspectiva, estamos, em tese, no meio do caminho. O objetivo da missão é de que haja autonomia de gestão por parte dos haitianos. Muitos dos empreendendores, dos profissionais mais capacitados, deixaram o país, naquilo que chamamos de fuga de cérebros. Trata-se de um problema e de um desafio. Tenho dúvidas sobre o real interesse da elite haitiana em promover a estabilidade do país.
Qual é o problema envolvendo a elite do Haiti?
É uma elite dividida, parte dela vive às custas da ajuda internacional. Há muito ceticismo quanto a ela, até porque é uma elite que domina o país desde a ditadura de Duvalier (François Duvalier, conhecido como Papa Doc, apoiado pelos Estados Unidos no contexto da Guerra Fria, instaurou uma ditadura feroz, sendo substituído pelo filho, Jean-Claude Duvalier – o Baby Doc). É possível que a saída da missão brasileira ocorra gradualmente a partir de 2016, mas precisávamos já ter um plano de saída claro, porque se trata de um trabalho continuado.
Entrevista com Ricardo Seitenfus, especialista em Relações Internacionais
Ricardo Seitenfus, doutor em Relações Internacionais e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), representou a Organização dos Estados Americanos (OEA) no Haiti entre 2009 e 2011. É um crítico da Minustah.
Como o senhor vê a perspectiva de saída em 2016?
O desenvolvimento do Haiti tem de ser feito pelos haitianos. Ser solidário não é substituir, é acompanhar. É bom que se acene com a restauração da soberania haitiana e se ponha termo à presença militar estrangeira da Minustah. Deve-se respeitar a autodeterminação do povo e do Estado haitiano com o processo de apropriação de seu país.
Quando deve ser a retirada?
Discutíamos um modelo de saída quando o terremoto de 12 de janeiro de 2010 jogou o debate para as calendas gregas. Agora se retorna a ele, felizmente. Mais do que uma data-limite, o que importa são as condições da saída, como sair. O desafio haitiano é socioeconômico e institucional. Não há como estabilizar um país com 80% de desemprego e com um Estado que é muito mais uma ficção do que uma realidade. É importante a ONU deixar o Haiti. O país precisa ter tempo para construir a democracia deles. Querem democracia perfeita em um país onde há 50% de analfabetismo?
Como o senhor vê a missão?
A missão no Haiti é uma das piores missões de paz da história da ONU. Se saírem em 2016, deixarão um país pior do que encontraram em 2004. Saí do Haiti porque me opunha à intervenção na política interna do país, me desentendi por causa disso. Até o cólera foi levado para lá. Essa intervenção foi triste e pesarosa. Nada melhorou.
O que o Brasil deve fazer?
Deve liderar o debate com seus parceiros por uma solução rápida. Se isso não ocorrer, o Brasil deve renunciar ao comando da Minustah e retirar seu contingente. Cada dia que passa nos desgasta mais. Gasta-se um capital imenso de reconhecimento e respeitabilidade.
O que deve fazer o Haiti?
Uma reforma constitucional, para desincompatibilizar as funções de presidente e primeiro-ministro (nomeado pelo presidente). O presidente acaba precisando de uma maioria parlamentar, e o parlamento considera o premier um contrapoder. A ONU deve garantir um pacto de governabilidade.
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