domingo, 10 de agosto de 2014

A economia política das eleições: uma análise quase marxista - Paulo Roberto de Almeida


A economia política das eleições: uma análise quase marxista

Paulo Roberto de Almeida
  
1. O que elege um candidato?
Na verdade, a pergunta exata a fazer seria esta: por que alguns candidatos ganham, e outros perdem, uma eleição majoritária? A resposta parece óbvia, no domínio estrito da política democrática: candidatos (ou políticos que buscam reeleição) ganham (ou perdem) as eleições na razão direta de conseguir convencer (ou não) a clientela, ou seja, os eleitores, de que eles são capazes de “entregar” aquilo que se espera deles, que é, em geral e resumidamente, o maior bem-estar para o maior número (emprego, renda, escolas, hospitais, casas, segurança, etc.). Imagino que o eleitor médio pensa mais no bem-estar imediato, deixando de lado grandes considerações filosóficas sobre o voto.
Se a mensagem for suficientemente credível, e possuir alguma substância (no caso de políticos já dotados de mandato), então a vitória, ou a continuidade, pode estar assegurada. Dificilmente candidatos de um governo instalado perdem eleições, se este souber “comprar” um volume suficiente de eleitores para a sua causa. Já o candidato de oposição pode ganhar o almejado cargo se ocorrerem duas hipóteses: se o governo e seus candidatos se mostrarem incompetentes em defender suas políticas, ou em provar que não conseguiram, por tais e tais razões, entregar tudo o que prometiam lá atrás, e se o candidato de oposição conseguir convencer a mesma clientela de que ele poderia (ou poderá) fazer melhor.
Dito assim, o jogo político parece de uma simplicidade arrasadora, quando na verdade as variáveis que entram em jogo são múltiplas e imprevisíveis. Fatores extra-eleitorais podem desequilibrar a partida, assim como determinados traços de caráter dos candidatos e acidentes de campanha também alteram o resultado final, pegando de surpresa os institutos de pesquisa e os próprios candidatos. Evidências quanto a isso abundam, desde o triunfo surpreendente de Truman, em 1948, até recentes viradas eleitorais na sequência das graves crises econômicas que atingiram vários países da zona do euro. Crises econômicas, externas ou internamente induzidas, podem ser um fator desestabilizador. Mas o mais comum são os elementos puramente domésticos do jogo político, particularmente aqueles vinculados à empatia que os candidatos despertam nos eleitores, ou seja, a existência, ou não, de uma identificação mais direta entre “vendedor” e “clientela”. Em alguns casos, a rejeição pode ser fatal.

2. A campanha eleitoral como estratégia de marketing
A disputa política poderia (o uso de itálico é importante), em princípio, ser vista como um mercado como outro qualquer, de compra e venda de bens e serviços públicos. Os ativos são as políticas já em curso – que também podem representar passivos a serem cobertos – e as que os candidatos se propõem realizar no período à frente; os agentes são os mesmos que intervêm em qualquer mercado: de um lado os candidatos-vendedores (muitas vezes de ilusões), de outro os compradores-eleitores. O “contrato” é concluído na urna; mas será descontado aos poucos, no curso do mandato. Como nos mercados de bens e serviços correntes, os “produtos” dos candidatos são geralmente apresentados com apoio em grandes doses de publicidade, de preferência a mais abrangente possível e divulgada da forma mais compreensível para o público pagante, ou seja, os consumidores-eleitores.
Comunicação é, portanto, um ativo extremamente importante, assim como a percepção de que o consumidor não será enganado. Daí a importância crescente dos chamados estrategistas eleitorais, que se encarregam de dourar a pílula, ou seja, de apresentar um candidato como sendo muito melhor do que ele realmente é (algumas vezes de um modo até revolucionário, capaz de alterar completamente a imagem de um determinado candidato, realizando a proeza fantástica de vender gato por lebre, o que ocorre até com certa frequência). Entretanto, qualquer que seja a imaginação criativa de um desses especialistas em travestir candidatos, dificilmente sua capacidade de persuasão será capaz de superar a máquina de distribuir bondades governamentais, quando esta é colocada inteiramente a serviço do candidato do poder.
Aqui, justamente, está o elemento diferenciador que faz com que o mercado político não seja o exato equivalente do mercado de bens e serviços correntes, que é, em princípio, caracterizado pela atomização dos ofertantes e pela livre disposição de seus recursos da parte dos demandantes. Por isso, o verbo, em seu modo correto, como figura ao início desta seção, deve ser colocado na condicional, uma vez que o mercado político possui características que o distinguem dos demais mercados.
O mercado político não é igual ao mercado de bens e serviços correntes por um motivo simples: embora o Estado possa interferir tanto num quanto noutro – por meio de regras quanto ao seu funcionamento, ou por meio de impostos sobre as transações, por exemplo –, nos mercados puramente econômicos, os compradores dispõem (pelo menos nos sistemas capitalistas e razoavelmente democráticos) de liberdade completa para determinar quantidades, tipos e formatos das prestações dos bens e serviços aos quais pretendem alocar seus ativos financeiros. O consumidor é, em princípio, soberano nas suas escolhas e atua com base nas informações disponibilizadas pelos produtores, que teoricamente concorrem entre si pelas preferências do primeiro. Economistas liberais tendem a considerar a economia dos livres mercados como sendo uma espécie de “ditadura do consumidor” (Ludwig von Mises), o que se aproxima apenas parcialmente da realidade (já que cartéis, monopólios, coalizões e colusões de produtores deformam as condições de concorrência, em detrimento dos consumidores, obviamente). Na prática, todos os mercados são imperfeitos, como sabem, aliás, os economistas, liberais ou não.
Nos mercados políticos, ao contrário dos de natureza econômica (ou com bem maior ênfase do que nestes), o Estado é, não apenas um interlocutor incontornável e um regulador necessário, como atua, também, como agente de seus próprios interesses, não exatamente enquanto Estado, mas enquanto governo (ainda mais exatamente, enquanto políticos e partidos que controlam o governo, ainda que temporariamente). O Estado é, em grande medida, uma figura abstrata, virtual ou, em certo sentido, quase ficcional; ele existe, obviamente pelas suas instituições e pelo conjunto de leis e normas que regulam a ação de seus agentes permanentes, mas ele se expressa de modo muito mais afirmado enquanto ator de primeiro plano em suas roupagens de governo e em nome da coalizão de forças a serviço dos partidos e dos grupos de interesse representados e ocupando as instituições de Estado dotadas de capacidade política.
Nessa condição, o Estado deixa de ser um ente abstrato para passar a representar interesses políticos, econômicos e projetos tangíveis e intangíveis vinculados aos líderes políticos que ocupam temporariamente suas alavancas de comando. Isto é básico e elementar, conhecido de qualquer estudante de graduação que tenha lido seus manuais de ciência política ou se debruçado sobre a obra de Max Weber. Aliás, até mesmo Marx, nas páginas muito rudimentares do Manifesto Comunista, ou naquelas melhor elaboradas do 18 Brumário, já tinha detectado essa captura do Estado por forças políticas ou por personagens excepcionais – nem todos representando as “elites” tradicionais – que se movimentam no grande palco das lutas pelo poder.

3. O que Marx teria a dizer a propósito dos embates eleitorais?
Justamente, se Marx fosse chamado a reescrever suas obras políticas mais conhecidas – como os já citados Manifesto e 18 Brumário, acrescidos do Luta de Classes na França – adaptando-as ao cenário do Brasil atual, ele talvez tivesse ensinamentos interessantes a dar aos marxistas de carteirinha, que são abundantes no Brasil, aliás amplamente representados por um largo espectro do leque partidário. Desculpe o leitor não especialmente simpático ao cenário em questão por esta derivação marxista em torno da economia política das eleições, mas é que tenho observado como diversos comentaristas do cenário político brasileiro ainda formulam seus argumentos sobre o cenário eleitoral com base em velhos conceitos que pertencem a esse universo conceitual: classes sociais, direita, esquerda, capitalismo, redistribuição de renda, justiça social, direitos dos trabalhadores, especuladores financeiros, e por aí vai. Vamos então reformular o debate em termos que poderiam ser encontrados naquelas obras de Marx.

Se considerarmos o estado atual da luta de classes no Brasil, depois de anos e anos de afirmação de uma liderança cesarista e carismática, o que se pode dizer é que as ditas classes subalternas se renderam ao Bonaparte do momento. Não ocorreu, para todos os efeitos, qualquer golpe na trajetória política recente do país, algo inesperado como um raio caído de um céu azul. Não; tudo foi o resultado racional-legal da lenta ascensão de classes supostamente trabalhadoras ao pináculo do poder, o produto final da lenta acumulação de forças pelo partido que aparentemente os representa. O final lógico desse teatro de lutas contra os burgueses liberais nos últimos anos já era o esperado: o manto imperial caiu, finalmente, nos ombros do pequeno Bonaparte, sem sequer algum gesto dramático, menos ainda com qualquer sinal de tragédia. Foi, assim, um triunfo de comédia.
Todas as classes, com exceção de uma fração extremamente reduzida de ideólogos da pequena burguesia libertária, se renderam ao líder aclamado; a minoria que o ataca não tem qualquer força social atrás de si para contestar o seu domínio completo sobre a sociedade. A máquina burocrático-sindical já estava ganha desde o início, pois foi dela mesmo que o novo Cesar emergiu para uma ascensão lenta, mas irresistível. Os movimentos desorganizados do lumpesinato e do proletariado não sindicalizado foram os que convergiram em segundo lugar, pois eles encontraram no Tesouro da República a justa compensação pela escolha judiciosa que fizeram.
Não foi preciso repetir a história, sequer como farsa, no caso da grande burguesia industrial e dos representantes da alta finança: eles já tinham sido convencidos, desde antes da ascensão do imperador, de que seus interesses de classe seriam regiamente compensados, como de fato o foram, pela fidelidade demonstrada ao novo esquema de poder. Todos eles foram colocados na mesma categoria de apoiadores, meras figuras decorativas na urna de votos do novo Cesar, como se fossem simples unidades indistintas de um grande saco de batatas.
O fato é que até mesmo o antigo partido da mudança foi parar nesse saco de batatas, e virou o partido da conservação, submisso ao poder do chefe supremo. As bases de seu poder são relativamente transparentes, pois basta seguir o itinerário do dinheiro que escorre dos cofres públicos para os aliados privilegiados. No entanto, como sabem os economistas burgueses, esses recursos, na verdade, escorrem dos bolsos da burguesia e da pequena burguesia, dos grandes proprietários fundiários, dos caixas das empresas da burguesia industrial, e até mesmo dos parcos tostões do proletariado e seus aliados menores. Temos, em primeiro lugar, a plutocracia financeira, aquela que sempre se opôs ao partido da mudança, quando este era desestabilizador, mas que logo se acomodou, ao constatar que o grande líder propunha, na verdade, uma coalizão diferente para manter o mesmo esquema de poder real; ela foi contemplada, como sempre, com os juros da dívida pública, sem precisar fazer qualquer esforço no mercado de capitais ou na busca de clientes para seus empréstimos extorsivos. A grande burguesia das fábricas e dos negócios comerciais também soube encontrar o seu nicho no novo esquema de poder: um mercantilismo renascido com um Estado ainda mais forte, capaz de dispensar empréstimos facilitados, isenções fiscais, tarifas protetoras e toda sorte de prebendas e subsídios que tinham uma existência mais modesta na antiga República neoliberal.
Vem em seguida a nova aristocracia sindical, que já não era operária havia anos, provavelmente a décadas; sua fração burocrática converteu-se em parte integrante da nomenklatura estatal, a nova classe privilegiada, que alguém já chamou de “burguesia do capital alheio”. A maior parte, porém, continuou nas corporações sindicais, agora locupletando-se de fundos públicos, que lhe são repassados sem qualquer controle. Junto com os militantes do antigo partido da reforma, eles constituem os elos mais relevantes do novo peronismo em construção, uma nova força política que é puro movimento, sem qualquer doutrina ou construção teórica mais elaborada.
Os aliados da academia, que poderiam fornecer uma base intelectual para o antigo partido da mudança, os universitários gramscianos, estes parecem singularmente estéreis na produção de novas ideias, pois ficam repetindo velhos slogans do socialismo do século 19, sem qualquer originalidade ou refinamento. São tão atrasados, e alienados, esses acadêmicos repetitivos, que terminaram por ver num coronel golpista, de notórias tendências fascistas, um líder progressista do novo socialismo; o êmulo de Mussolini pretendia que o seu socialismo fosse do século 21, quando este nada mais constituiu senão uma confusão mental e uma construção estatal digna do que havia de pior no sovietismo esclerosado. Os resultados estão à vista de todos.
Outros componentes do mesmo saco de batatas são os funcionários públicos, alguns verdadeiros mandarins, a maioria simples beneficiários da prodigalidade estatal, que, na média, recebem o dobro do que ganhariam na iniciativa privada, para níveis de produtividade que são, na média, menos da metade daquelas do setor privado. Figuram ainda no saco, finalmente, os recipientes do maior programa social do mundo, que vem a ser, também, um grande curral eleitoral: o lumpesinato, de forma geral, e os vários lumpens urbanos, em particular, com alguns pequeno-burgueses espertalhões aqui e ali. Não se deve esquecer, tampouco, tubérculos igualmente vistosos, como os beneficiários de bolsas para diversas categoriais sociais ou as cotas para os representantes do Apartheid em formação, os promotores do novo racismo oficial.
Ficam de fora do saco de batatas apenas e tão somente 3 ou 4% do eleitorado, representado politicamente por figuras teimosas, que recusam inexplicavelmente o mito do demiurgo e que pretendem continuar o combate de retaguarda, sem qualquer esperança de reverter o curso do processo político no futuro previsível. Esses novos mencheviques intelectuais também fazem sua própria história, mesmo se eles ainda não têm consciência disso: eles não podem, contudo, esperar fazer sua revolução a partir de um passado já enterrado; apenas em direção ao futuro, embora o caminho seja longo e os resultados muito incertos.
Mas atenção, alto lá: o cenário econômico e político parece estar mudando, uma vez que as fórmulas milagrosas e a conjuntura favorável que prevaleciam anteriormente já não estão produzindo o mesmo efeito favorável ao partido da mudança convertido em partido da conservação. Uma conjuntura de transformação parece estar se abrindo no horizonte político do país: tudo o que parecia sólido se desmancha no ar, e o lento desabrochar de novas forças produtivas parece estar forçando uma mudança radical nas relações sociais. Os oprimidos do momento já não tem mais nada a perder, senão os seus grilhões. Um espectro assusta o partido da conservação: o da sua derrota eleitoral, como resultado da ascensão de novas forças no teatro da república.
O que parece certo é que a mistura de pequeno Napoleão com um Perón improvisado também terá um dia sua estátua derrubada do alto da coluna Vendôme, não tanto como resultado de uma nova luta de foices e martelos, mas como o produto de uma lenta evolução educacional. Esta é a revolução mais difícil de ser provocada, mas constitui, legitimamente, o único processo revolucionário de que o Brasil necessita.


Paulo Roberto de Almeida
[Hartford, 10/08/2014; com base em texto anterior, escrito em Zhengzhou, em 24.08.2010, revisto em: Shanghai, 26.08.2010]

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