A economia política das eleições: uma análise
quase marxista
Paulo
Roberto de Almeida
1. O que elege um candidato?
Na verdade, a pergunta exata a fazer seria
esta: por que alguns candidatos ganham, e outros perdem, uma eleição
majoritária? A resposta parece óbvia, no domínio estrito da política
democrática: candidatos (ou políticos que buscam reeleição) ganham (ou perdem)
as eleições na razão direta de conseguir convencer (ou não) a clientela, ou
seja, os eleitores, de que eles são capazes de “entregar” aquilo que se espera deles,
que é, em geral e resumidamente, o maior bem-estar para o maior número
(emprego, renda, escolas, hospitais, casas, segurança, etc.). Imagino que o
eleitor médio pensa mais no bem-estar imediato, deixando de lado grandes
considerações filosóficas sobre o voto.
Se a mensagem for suficientemente credível, e
possuir alguma substância (no caso de políticos já dotados de mandato), então a
vitória, ou a continuidade, pode estar assegurada. Dificilmente candidatos de
um governo instalado perdem eleições, se este souber “comprar” um volume
suficiente de eleitores para a sua causa. Já o candidato de oposição pode
ganhar o almejado cargo se ocorrerem duas hipóteses: se o governo e seus
candidatos se mostrarem incompetentes em defender suas políticas, ou em provar
que não conseguiram, por tais e tais razões, entregar tudo o que prometiam lá
atrás, e se o candidato de oposição conseguir convencer a mesma clientela de
que ele poderia (ou poderá) fazer melhor.
Dito assim, o jogo político parece de uma
simplicidade arrasadora, quando na verdade as variáveis que entram em jogo são
múltiplas e imprevisíveis. Fatores extra-eleitorais podem desequilibrar a
partida, assim como determinados traços de caráter dos candidatos e acidentes
de campanha também alteram o resultado final, pegando de surpresa os institutos
de pesquisa e os próprios candidatos. Evidências quanto a isso abundam, desde o
triunfo surpreendente de Truman, em 1948, até recentes viradas eleitorais na
sequência das graves crises econômicas que atingiram vários países da zona do
euro. Crises econômicas, externas ou internamente induzidas, podem ser um fator
desestabilizador. Mas o mais comum são os elementos puramente domésticos do
jogo político, particularmente aqueles vinculados à empatia que os candidatos
despertam nos eleitores, ou seja, a existência, ou não, de uma identificação
mais direta entre “vendedor” e “clientela”. Em alguns casos, a rejeição pode
ser fatal.
2. A campanha eleitoral como estratégia de
marketing
A disputa política poderia (o uso de itálico é importante), em princípio, ser vista
como um mercado como outro qualquer, de compra e venda de bens e serviços
públicos. Os ativos são as políticas já em curso – que também podem representar
passivos a serem cobertos – e as que os candidatos se propõem realizar no
período à frente; os agentes são os mesmos que intervêm em qualquer mercado: de
um lado os candidatos-vendedores (muitas vezes de ilusões), de outro os compradores-eleitores.
O “contrato” é concluído na urna; mas será descontado aos poucos, no curso do
mandato. Como nos mercados de bens e serviços correntes, os “produtos” dos
candidatos são geralmente apresentados com apoio em grandes doses de
publicidade, de preferência a mais abrangente possível e divulgada da forma mais
compreensível para o público pagante, ou seja, os consumidores-eleitores.
Comunicação é, portanto, um ativo extremamente
importante, assim como a percepção de que o consumidor não será enganado. Daí a
importância crescente dos chamados estrategistas eleitorais, que se encarregam
de dourar a pílula, ou seja, de apresentar um candidato como sendo muito melhor
do que ele realmente é (algumas vezes de um modo até revolucionário, capaz de
alterar completamente a imagem de um determinado candidato, realizando a proeza
fantástica de vender gato por lebre, o que ocorre até com certa frequência).
Entretanto, qualquer que seja a imaginação criativa de um desses especialistas
em travestir candidatos, dificilmente sua capacidade de persuasão será capaz de
superar a máquina de distribuir bondades governamentais, quando esta é colocada
inteiramente a serviço do candidato do poder.
Aqui, justamente, está o elemento diferenciador
que faz com que o mercado político não seja o exato equivalente do mercado de
bens e serviços correntes, que é, em princípio, caracterizado pela atomização
dos ofertantes e pela livre disposição de seus recursos da parte dos
demandantes. Por isso, o verbo, em seu modo correto, como figura ao início
desta seção, deve ser colocado na condicional, uma vez que o mercado político
possui características que o distinguem dos demais mercados.
O
mercado político não é igual ao mercado de bens e serviços correntes por um
motivo simples: embora o Estado possa interferir tanto num quanto noutro – por
meio de regras quanto ao seu funcionamento, ou por meio de impostos sobre as
transações, por exemplo –, nos mercados puramente econômicos, os compradores
dispõem (pelo menos nos sistemas capitalistas e razoavelmente democráticos) de
liberdade completa para determinar quantidades, tipos e formatos das prestações
dos bens e serviços aos quais pretendem alocar seus ativos financeiros. O
consumidor é, em princípio, soberano nas suas escolhas e atua com base nas
informações disponibilizadas pelos produtores, que teoricamente concorrem entre
si pelas preferências do primeiro. Economistas liberais tendem a considerar a
economia dos livres mercados como sendo uma espécie de “ditadura do consumidor”
(Ludwig von Mises), o que se aproxima apenas parcialmente da realidade (já que
cartéis, monopólios, coalizões e colusões de produtores deformam as condições
de concorrência, em detrimento dos consumidores, obviamente). Na prática, todos
os mercados são imperfeitos, como sabem, aliás, os economistas, liberais ou não.
Nos
mercados políticos, ao contrário dos de natureza econômica (ou com bem maior
ênfase do que nestes), o Estado é, não apenas um interlocutor incontornável e
um regulador necessário, como atua, também, como agente de seus próprios
interesses, não exatamente enquanto Estado, mas enquanto governo (ainda mais
exatamente, enquanto políticos e partidos que controlam o governo, ainda que
temporariamente). O Estado é, em grande medida, uma figura abstrata, virtual
ou, em certo sentido, quase ficcional; ele existe, obviamente pelas suas
instituições e pelo conjunto de leis e normas que regulam a ação de seus
agentes permanentes, mas ele se expressa de modo muito mais afirmado enquanto
ator de primeiro plano em suas roupagens de governo e em nome da coalizão de
forças a serviço dos partidos e dos grupos de interesse representados e
ocupando as instituições de Estado dotadas de capacidade política.
Nessa
condição, o Estado deixa de ser um ente abstrato para passar a representar
interesses políticos, econômicos e projetos tangíveis e intangíveis vinculados
aos líderes políticos que ocupam temporariamente suas alavancas de comando.
Isto é básico e elementar, conhecido de qualquer estudante de graduação que
tenha lido seus manuais de ciência política ou se debruçado sobre a obra de Max
Weber. Aliás, até mesmo Marx, nas páginas muito rudimentares do Manifesto Comunista, ou naquelas melhor
elaboradas do 18 Brumário, já tinha
detectado essa captura do Estado por forças políticas ou por personagens
excepcionais – nem todos representando as “elites” tradicionais – que se
movimentam no grande palco das lutas pelo poder.
3. O que Marx teria a dizer a propósito dos embates eleitorais?
Justamente,
se Marx fosse chamado a reescrever suas obras políticas mais conhecidas – como
os já citados Manifesto e 18 Brumário, acrescidos do Luta de Classes na França – adaptando-as
ao cenário do Brasil atual, ele talvez tivesse ensinamentos interessantes a dar
aos marxistas de carteirinha, que são abundantes no Brasil, aliás amplamente
representados por um largo espectro do leque partidário. Desculpe o leitor não especialmente
simpático ao cenário em questão por esta derivação marxista em torno da
economia política das eleições, mas é que tenho observado como diversos
comentaristas do cenário político brasileiro ainda formulam seus argumentos sobre
o cenário eleitoral com base em velhos conceitos que pertencem a esse universo
conceitual: classes sociais, direita, esquerda, capitalismo, redistribuição de
renda, justiça social, direitos dos trabalhadores, especuladores financeiros, e
por aí vai. Vamos então reformular o debate em termos que poderiam ser
encontrados naquelas obras de Marx.
Se
considerarmos o estado atual da luta de classes no Brasil, depois de anos e
anos de afirmação de uma liderança cesarista e carismática, o que se pode dizer
é que as ditas classes subalternas se renderam ao Bonaparte do momento. Não
ocorreu, para todos os efeitos, qualquer golpe na trajetória política recente
do país, algo inesperado como um raio caído de um céu azul. Não; tudo foi o
resultado racional-legal da lenta ascensão de classes supostamente
trabalhadoras ao pináculo do poder, o produto final da lenta acumulação de
forças pelo partido que aparentemente os representa. O final lógico desse
teatro de lutas contra os burgueses liberais nos últimos anos já era o
esperado: o manto imperial caiu, finalmente, nos ombros do pequeno Bonaparte,
sem sequer algum gesto dramático, menos ainda com qualquer sinal de tragédia.
Foi, assim, um triunfo de comédia.
Todas
as classes, com exceção de uma fração extremamente reduzida de ideólogos da
pequena burguesia libertária, se renderam ao líder aclamado; a minoria que o
ataca não tem qualquer força social atrás de si para contestar o seu domínio
completo sobre a sociedade. A máquina burocrático-sindical já estava ganha
desde o início, pois foi dela mesmo que o novo Cesar emergiu para uma ascensão
lenta, mas irresistível. Os movimentos desorganizados do lumpesinato e do
proletariado não sindicalizado foram os que convergiram em segundo lugar, pois
eles encontraram no Tesouro da República a justa compensação pela escolha
judiciosa que fizeram.
Não
foi preciso repetir a história, sequer como farsa, no caso da grande burguesia
industrial e dos representantes da alta finança: eles já tinham sido
convencidos, desde antes da ascensão do imperador, de que seus interesses de
classe seriam regiamente compensados, como de fato o foram, pela fidelidade
demonstrada ao novo esquema de poder. Todos eles foram colocados na mesma
categoria de apoiadores, meras figuras decorativas na urna de votos do novo
Cesar, como se fossem simples unidades indistintas de um grande saco de
batatas.
O
fato é que até mesmo o antigo partido da mudança foi parar nesse saco de
batatas, e virou o partido da conservação, submisso ao poder do chefe supremo.
As bases de seu poder são relativamente transparentes, pois basta seguir o
itinerário do dinheiro que escorre dos cofres públicos para os aliados
privilegiados. No entanto, como sabem os economistas burgueses, esses recursos,
na verdade, escorrem dos bolsos da burguesia e da pequena burguesia, dos
grandes proprietários fundiários, dos caixas das empresas da burguesia
industrial, e até mesmo dos parcos tostões do proletariado e seus aliados
menores. Temos, em primeiro lugar, a plutocracia financeira, aquela que sempre
se opôs ao partido da mudança, quando este era desestabilizador, mas que logo
se acomodou, ao constatar que o grande líder propunha, na verdade, uma coalizão
diferente para manter o mesmo esquema de poder real; ela foi contemplada, como
sempre, com os juros da dívida pública, sem precisar fazer qualquer esforço no
mercado de capitais ou na busca de clientes para seus empréstimos extorsivos. A
grande burguesia das fábricas e dos negócios comerciais também soube encontrar
o seu nicho no novo esquema de poder: um mercantilismo renascido com um Estado
ainda mais forte, capaz de dispensar empréstimos facilitados, isenções fiscais,
tarifas protetoras e toda sorte de prebendas e subsídios que tinham uma
existência mais modesta na antiga República neoliberal.
Vem
em seguida a nova aristocracia sindical, que já não era operária havia anos,
provavelmente a décadas; sua fração burocrática converteu-se em parte
integrante da nomenklatura estatal, a
nova classe privilegiada, que alguém já chamou de “burguesia do capital
alheio”. A maior parte, porém, continuou nas corporações sindicais, agora
locupletando-se de fundos públicos, que lhe são repassados sem qualquer
controle. Junto com os militantes do antigo partido da reforma, eles constituem
os elos mais relevantes do novo peronismo em construção, uma nova força
política que é puro movimento, sem qualquer doutrina ou construção teórica mais
elaborada.
Os
aliados da academia, que poderiam fornecer uma base intelectual para o antigo partido
da mudança, os universitários gramscianos, estes parecem singularmente estéreis
na produção de novas ideias, pois ficam repetindo velhos slogans do socialismo
do século 19, sem qualquer originalidade ou refinamento. São tão atrasados, e
alienados, esses acadêmicos repetitivos, que terminaram por ver num coronel
golpista, de notórias tendências fascistas, um líder progressista do novo
socialismo; o êmulo de Mussolini pretendia que o seu socialismo fosse do século
21, quando este nada mais constituiu senão uma confusão mental e uma construção
estatal digna do que havia de pior no sovietismo esclerosado. Os resultados
estão à vista de todos.
Outros
componentes do mesmo saco de batatas são os funcionários públicos, alguns
verdadeiros mandarins, a maioria simples beneficiários da prodigalidade
estatal, que, na média, recebem o dobro do que ganhariam na iniciativa privada,
para níveis de produtividade que são, na média, menos da metade daquelas do
setor privado. Figuram ainda no saco, finalmente, os recipientes do maior
programa social do mundo, que vem a ser, também, um grande curral eleitoral: o
lumpesinato, de forma geral, e os vários lumpens urbanos, em particular, com
alguns pequeno-burgueses espertalhões aqui e ali. Não se deve esquecer,
tampouco, tubérculos igualmente vistosos, como os beneficiários de bolsas para
diversas categoriais sociais ou as cotas para os representantes do Apartheid em
formação, os promotores do novo racismo oficial.
Ficam
de fora do saco de batatas apenas e tão somente 3 ou 4% do eleitorado,
representado politicamente por figuras teimosas, que recusam inexplicavelmente
o mito do demiurgo e que pretendem continuar o combate de retaguarda, sem
qualquer esperança de reverter o curso do processo político no futuro
previsível. Esses novos mencheviques intelectuais também fazem sua própria
história, mesmo se eles ainda não têm consciência disso: eles não podem,
contudo, esperar fazer sua revolução a partir de um passado já enterrado;
apenas em direção ao futuro, embora o caminho seja longo e os resultados muito
incertos.
Mas
atenção, alto lá: o cenário econômico e político parece estar mudando, uma vez
que as fórmulas milagrosas e a conjuntura favorável que prevaleciam
anteriormente já não estão produzindo o mesmo efeito favorável ao partido da
mudança convertido em partido da conservação. Uma conjuntura de transformação
parece estar se abrindo no horizonte político do país: tudo o que parecia
sólido se desmancha no ar, e o lento desabrochar de novas forças produtivas
parece estar forçando uma mudança radical nas relações sociais. Os oprimidos do
momento já não tem mais nada a perder, senão os seus grilhões. Um espectro
assusta o partido da conservação: o da sua derrota eleitoral, como resultado da
ascensão de novas forças no teatro da república.
O
que parece certo é que a mistura de pequeno Napoleão com um Perón improvisado
também terá um dia sua estátua derrubada do alto da coluna Vendôme, não tanto
como resultado de uma nova luta de foices e martelos, mas como o produto de uma
lenta evolução educacional. Esta é a revolução mais difícil de ser provocada,
mas constitui, legitimamente, o único processo revolucionário de que o Brasil
necessita.
Paulo Roberto de Almeida
[Hartford, 10/08/2014; com base em texto
anterior, escrito em Zhengzhou, em 24.08.2010, revisto em: Shanghai, 26.08.2010]
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