Paulo Roberto de Almeida
Entrevistamos o historiador Francisco Doratioto, professor da Universidade de Brasília. Doratioto é um dos principais expoentes da chamada “Nova História da Guerra do Paraguai”. Em 2014, o conflito sul-americano completa 150 anos de seu início.
Com um trabalho baseado em farta documentação, Francisco Doratioto, professor da Universidade Nacional de Brasília e do Instituto Rio Branco, se tornou um dos principais especialistas em História da Guerra do Paraguai. Mais do que batalhas e personagens, suas pesquisa trazem o lado humano, social e político do conflito. Em 2002, Doratioto lançou pela Companhia das Letras o livro “Maldita Guerra”, que rapidamente se tornou um livro de referência na área, especialmente daquilo que convencionou chamar de “nova história da Guerra do Paraguai”. Se você ainda acha que o Brasil foi forçado a fazer a guerra pelo imperialismo britânico ou que o Paraguai era uma ilha de prosperidade que ameaçava ingleses na América do Sul, você vai se surpreender.
Bruno Leal: Professor, em abril de 1863, no Uruguai, o Partido Colorado, apoiado pelo Brasil Imperial e pela Argentina de Bartolomeu Mitre, se rebelou contra o Partido Blanco, eleito em 1860. Acuados, os blancos, então, foram atrás do apoio de Solano López, presidente do Paraguai. Um ano depois começava a Guerra do Paraguai, conflito que durou seis anos e que neste ano de 2014 completa 150 anos de seu início. Por que o Paraguai (Solano López) apoiou os blancos contra oponentes tão poderosos? Até que ponto esta decisão se deu pela oportunidade do Paraguai conquistar acesso ao mar e/ou pelo medo de um provável desmantelamento das nações menores do Cone Sul, oriundo de uma aliança entre Brasil e Argentina?
Francisco Doratioto: Não se tem certeza sobre a motivação do Francisco Solano López em envolver-se na questão uruguaia; não temos documento escrito ou testemunho que permita dar uma resposta taxativa. No entanto, há uma concordância de que interessava a López a manutenção dos blancos no poder em Montevidéu, de modo a utilizar este porto para o comércio externo paraguaio, de modo a dar continuidade à inserção do Paraguai no comércio internacional iniciada no governo de Carlos Antonio López. Os blancos procuraram, é verdade, convencer López de que a Argentina e o Brasil pretendiam pôr fim à independência do Uruguai, dividindo entre si o território uruguaio e, depois, se voltariam contra o Paraguai. Teria ele acreditado nisso? Possivelmente não, mas com certeza se deu conta que a derrota dos blancos uruguaios fragilizaria o Paraguai frente à Argentina e ao Império, que passariam a atuar coordenadamente no Prata em lugar de rivalizarem-se e isso quando ambos tinham litígio de fronteiras com o país guarani.
Bruno Leal: Nas décadas de 1960 e 1970, uma certa leitura historiográfica obteve bastante êxito ao explicar a Guerra do Paraguai como fruto imperialismo inglês na região do Cone Sul, como se o Brasil tivesse sido arrastado para a guerra por uma Inglaterra temerosa com o crescimento econômico do Paraguai na região. O senhor é bastante crítico desta teoria, não? Qual foi exatamente o papel da Inglaterra no conflito e porque essa teoria teve e ainda tem tanto sucesso?
Francisco Doratioto: Não sou eu que sou crítico a essa explicação mas, sim, os fatos. Não existe lógica e nem um fiapo de prova nesse sentido. Ademais, não sou o único que afirma isso; outros colegas no Brasil e em outros países também criticam essa explicação. Quanto à Inglaterra, há que se distinguir o seu governo de seus banqueiros. O governo inglês manteve-se neutro no conflito – aliás, foi ele que tornou público o Tratado da Tríplice Aliança, que era secreto -, enquanto seus diplomatas no Rio da Prata eram antipáticos à Solano López, pelas características da ditadura que ele impunha ao Paraguai. Já os banqueiros ingleses fizeram o que todo banqueiro faz: tentaram ganhar dinheiro com a guerra. Assim, emprestaram dinheiro para aqueles governos que tivessem condições de pagar os empréstimos, ou seja, para o Império e para a Argentina, mas não para o Paraguai. Registre-se, porém, que apenas uns 12% dos gastos brasileiros com a guerra foram financiados por esses empréstimos, enquanto o restante foi obtido internamente por meio de impostos, empréstimos, desvio de recursos do orçamento público, etc.
Bruno Leal: Professor, é bastante conhecida a participação de negros, ex-escravos ou não, na Guerra do Paraguai. Na historiografia sobre o tema, no entanto, parece não haver um consenso quanto ao número de soldados negros na frente de batalha. Como o senhor avalia a participação desse contingente na Guerra do Paraguai? A vitória do exército brasileiro na guerra impactou na forma como o negro ou mesmo a escravidão era vista pelas elites do país?
Francisco Doratioto: A falta de consenso não é somente quanto ao número de soldados negros na guerra, mas quanto ao número de brasileiros que foram para a guerra. Se fala de 100.000 até 150.000; também não sabemos ao certo qual foi o número de mortos brasileiros, com os estudiosos citando algo entre 50.000 e 100.000, uma enormidade se considerarmos que o Império tinha 9.000.000 de habitantes (cerca de um terço da população escrava). O Conde d’Eu elogiou o valor da participação dos “zuavos” na guerra, enquanto Caxias e outros chefes militares, em suas correspondências privadas, criticaram os negros. Suspeito que negros e brancos não se diferenciaram muito: a guerra foi duríssima, as condições do teatro de operações eram terríveis e, a partir do final de 1866, o desalento era geral, independente da cor da pele do soldado brasileiro.
Bruno Leal: Quando o assunto é Paraguai, fala-se muito na destruição do país após os anos de conflito, desde a destruição completa de cidades até a morte de boa parte de sua população, passando por operações que hoje, talvez, poderia ser classificadas como “crimes de guerra”. O que há de exagero e o que há de real nessas imagens de terra arrasada?
Francisco Doratioto: Seria um anacronismo falar em “crimes de guerra”. Esse é um conceito desenvolvido no século XX; no século XIX era comum o saque, os abusos contra mulheres e civis em geral, a morte do prisioneiro ou seu uso em trabalho forçado. Os paraguaios saquearam Corumbá e Uruguaiana, perpetraram violências contra os civis e, ainda, contra prisioneiros. As forças brasileiras saquearam Assunção e também fizeram violências prisioneiros e civis. Após 6 anos de guerra o Paraguai ficou, de fato, arrasado. Há polêmica sobre qual seria o número de habitantes do país no pré-guerra, mas há concordância percentual, ou seja, de que o país perdeu mais de metade da população e mais de 2/3 dos homens. No entanto, tal qual ocorreu entre as forças Aliadas, a maior parte da mortandade paraguaia foi causada por doenças ou fome, esta decorrente da migração imposta por López que obrigava a população a ir para o interior do país, na medida em que as forças aliadas avançadas. Era uma política de terra arrasada, ou seja, de esvaziar o território paraguaio de recursos humanos e alimentícios para que os soldados aliados que avançavam não os utilizassem no esforço de guerra.
Bruno Leal: Embora a guerra tenha terminado em 1870, O Brasil manteve um efetivo de aproximadamente 2 mil soldados no país por seis anos. Esse é um dado que nem todos conhecem. Professor, o senhor pode falar mais um pouco dessa ocupação? Quer dizer, porque um período tão longo? O Paraguai perdeu sua autonomia política neste período? Qual era a missão das forças brasileiras em solo paraguaio no pós-guerra?
Francisco Doratioto: Entre 1870 e 1876, o Paraguai foi praticamente um protetorado brasileiro. O governo imperial agiu para evitar que se instalasse no país um governo que fosse composto por homens favoráveis ao fim de sua independência, mediante a incorporação à Argentina. Os governantes brasileiros estavam convencidos de que esse era o plano do governo argentino e nesse período agiu para conter a influência argentina no Paraguai. Além de uma eficiente ação diplomática nesse sentido, o Império se respaldava em uma Divisão de Ocupação, aquartelada a poucos quilômetros de Assunção. Para o governo imperial essa tropa, um instrumento de manter a ordem política em Assunção, favorável ao Brasil, e, ainda, para impedir uma eventual ação sustentada pela Argentina no sentido de impor pela força um governo paraguaio com homens que fossem favoráveis a ela.
Bruno Leal: Geralmente, conflitos contra países estrangeiros produzem sentimentos nacionalistas, criam comunidades imaginadas, enfim, geram sentimentos de unidade. A Guerra do Paraguai gerou esse tipo de sentimento no Brasil?
Francisco Doratioto: Não vejo que isso tenha ocorrido de forma significativa, inclusive porque a guerra tornou-se impopular e, a partir de 1868, todos eram favoráveis a uma solução negociada, inclusive Caxias. No entanto, Pedro II exigiu que a guerra terminasse somente quando fosse cumprido o que estabelecia o Tratado da Tríplice Aliança, ou seja, a saída de Solano López do poder.
Bruno Leal: Professor, quais eram as principais leituras historiográficas sobre a Guerra do Paraguai quando o senhor começou a pesquisar o tema? Em que medida os seus trabalhos divergem destas leituras?
Francisco Doratioto: Na realidade, minha única leitura era a que eu tinha feito no curso de graduação em História, no final dos anos 1970: a guerra tinha sido causada pelo imperialismo britânico e Brasil e Argentina tinham sido marionetes dos interesses ingleses. Eu dei aula no 2º. Grau, em São Paulo, apresentando essa explicação! Posteriormente, fui fazer meu Mestrado na Universidade de Brasília e o tema que propus inicialmente era sobre as relações entre o Brasil e o Paraguai no pós-guerra pois, pensava eu então, o que ocorrera na guerra já se sabia. No entanto, ao ir às fontes primárias (documentação diplomática brasileira e argentina) percebi que eu tinha de entender qual tinha sido o relacionamento entre Brasil e Argentina durante a guerra, para poder compreender a origem e a lógica da disputa entre os dois países pela influência sobre o Paraguai no pós-guerra. Fui, então, ler a documentação sobre a guerra e seu contexto e ela desmentia o que revisionismo brasileiro afirmava, quer quanto ao suposto imperialismo inglês, quer quanto à leitura maniqueísta de que Francisco Solano López tinha sido um governante progressista, quase socialista, vítima de seus dois poderosos vizinhos. Esse revisionismo, em sua versão mais maniqueísta, apresenta a guerra quase como uma disputa entre um “mocinho”, López, e bandidos, a Argentina e o Brasil.
Bruno Leal: Em geral, conhecemos o que a produção historiográfica brasileira produz sobre a Guerra do Paraguai. Como o tema é tratado, de uma forma geral, atualmente, pela historiografia de países como Argentina, Uruguai e Paraguai? Há grandes diferenças de abordagem em comparação com o Brasil?
Francisco Doratioto: No Brasil, no meio acadêmico, há consenso entre historiadores que se dedicam ao estudo da guerra de que suas origens se encontram no próprio processo histórico regional e não no imperialismo inglês. Na Argentina, no Uruguai e no Paraguai essa interpretação também está presente entre os maiores estudiosos do conflito, mas há personagens influentes, nem sempre historiadores, que persistem na explicação imperialista. Para tanto há, inclusive, motivos políticos, como é o caso do governo argentino que estimula a interpretação revisionista por ser antiliberal quando o peronismo também o é. O mesmo ocorre no Paraguai, onde a mistificação da figura de López, de sua ditadura e de seu papel na guerra, tornou-se ideologia oficial da ditadura de Alfredo Stroessner. Um ditador buscou legitimidade em outro... A redemocratização paraguaia alterou um pouco essa situação, mas, afinal, Solano López foi construído como herói nacional nos governos de três militares: Rafael Franco, em 1936; Higino Morínigo (1941-1948) e Alfredo Stroessner (1954-1989).
Bruno Leal: Professor, sabemos que há uma defasagem significativa entre aquilo que é produzido em âmbito acadêmico e aquilo que está nas salas de aula. Que leituras tradicionalistas ou já questionadas por pesquisas acadêmicas sobre a Guerra do Paraguai ainda sobrevivem no ensino de história?
Francisco Doratioto: Não tenho acompanhado diretamente essa questão; sei dela por meio de meus ex-estudantes, que hoje são professores, e alunos que fazem estágio nas escolas de primeiro e segundo grau. Noto que há, crescentemente, o abandono da explicação imperialista e um ou outro livro didático que ainda a sustenta. Na realidade, há uma grande defasagem cronológica do que é produzido pela historiografia acadêmica ser incorporado no ensino fundamental e secundário. Em parte isso se explica pela dificuldade que o professor desses níveis de ensino tem para atualizar-se. Esse professor é um verdadeiro herói, pois para sobreviver tem de dar uma enormidade quantidade de aulas semanais, não lhe restando tempo para fazer cursos de atualização ou recursos financeiros para comprar livros com os avanços historiográficos. Vejo, porém, que as novas gerações de professores já tiveram acesso, nas Universidades, a esses avanços e, mais, estes já estão incorporados no conteúdo dos vestibulares em todo o país.
Bruno Leal: Ano passado, o Museu Imperial, em Petrópolis, região serrada do Rio de Janeiro, fez um levantamento de mais de 3 mil documentos sobre a Guerra do Paraguai, muitos dos quais desconhecidos por boa parte dos historiadores. Entre o material, por exemplo, estão várias cartas de Solano López e um diário do Conde d’Eu. Professor, em que medida essa documentação pode acrescentar ou até mesmo mudar nossos conhecimentos sobre a história do conflito?
Francisco Doratioto: Toda documentação inédita e, mesmo, a releitura daquela já pesquisada pode trazer novas informações e, portanto, ampliar nosso conhecimento sobre a história da Guerra do Paraguai. Há vários aspectos dela a serem melhor estudados: estatísticos; financeiros; tecnologia do armamento empregado; processos decisórios; o papel dos negros, dos índios; questões de gênero, etc. Acredito que a nova geração de historiadores que hoje está fazendo Mestrado ou Doutorado produzirão trabalhos que avançarão no conhecimento sobre a guerra. Veja bem que utilizo a palavra “avançarão”, ou seja, não retornaremos à explicação imperialista e, menos ainda, à explicação “patriótica” que havia predominado antes. No entanto, por questão de justiça, quero ressaltar que mesmo no início do século XX, tivemos trabalhos muito cuidadosos sobre o tema como, por exemplo, o admirável “História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai”, do general Tasso Fragoso, ou as memórias do barão de Jaceguai.
Bruno Leal: E sobre a polêmica envolvendo a desclassificação de documentos sigilosos no Brasil sobre a Guerra do Paraguai? O senhor acha que medidas como essas são diplomaticamente delicadas ou deve-se mesmo tornar acessível todo tipo de material sobre a questão?
Francisco Doratioto: Essa é uma “lenda urbana”. Não existe um arquivo secreto “Guerra do Paraguai” no Arquivo Histórico do Itamaraty, mas isso é afirmado e reafirmado por aqueles que não são estudiosos do assunto. De todo modo, como historiador e cidadão sou favorável ao acesso a todos os documentos públicos, exceto aqueles que tratam de assuntos do presente que podem ocasionar graves danos à sociedade brasileira. É normal que seja sigilosa por algum tempo a documentação diplomática e aquelas referentes a negociações econômicas internacionais e à segurança do país. Nossa Lei de Acesso à Informação não encontra equivalente nos países vizinhos.
Bruno Leal: Professor, chegamos ao fim de nossa conversa. Para finalizar, voltemos a um dos motivos que nos motivou a procura-lo para a conversa: os 150 anos da Guerra do Paraguai. Que eventos importantes a respeito ocorreram ou ainda vão ocorrer este ano, tanto no âmbito acadêmico quanto fora dele? Como o senhor avalia esse momento de lembrança? A historiografia ainda pode revelar muito mais coisas sobre a guerra?
Francisco Doratioto: Há vários seminários sendo feitos no Brasil e a TV Escola, do MEC, apresentou um excelente documentário, em três episódios, sobre a guerra, com pesquisas realizadas em todos os países envolvidos na guerra. Sei que também está sendo produzido um documentário sobre o tema para o History Channel. Este momento e os próximos anos, até 2020, quando então teremos os 150 anos do fim da guerra, devem ser motivo de reflexão e de encontro dos países que participaram da guerra. Penso no que ocorreu na Europa, onde Alemanha e França preocuparam-se em entender a I e da II Guerra Mundial a partir da metodologia histórica e não de um nacionalismo pernicioso, mostrando o sofrimento de suas populações e seus soldados e as consequências dessas guerras. Essa postura favoreceu a integração europeia, a construção de um espaço de paz em um continente que, até então, vivenciara guerras seguidas desde a criação do Estado Nação. Também para nós, na América Meridional, a Guerra do Paraguai deve ser motivo de reflexão que permita-nos superar preconceitos e avançar no processo de conhecimento mútuo e de integração regional.
Francisco Doratioto: Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo (1979), graduação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (1982), mestrado em História pela Universidade de Brasília (1988) e doutorado em História pela Universidade de Brasília (1997). É Professor Adjunto, de História da América, no Departamento de História da Universidade de Brasília; atua no programa de Pós-Graduação em História da mesma instituição e leciona História das Relações Internacionais do Brasil e História da América do Sul no curso de formação de diplomatas do Instituto Rio Branco (Ministério das Relações Exteriores). Trabalha com História do Rio da Prata; História das Relações Internacionais do Brasil, com ênfase nas relações com os países da América Meridional, e com História Militar do Brasil. É membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; da Academia Paraguaya de la Historia, Paraguai, e da Academia Nacional de la Historia, Argentina, e do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil.
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