Servidor do Estado, não de governo:
algumas reflexões de circunstância (e de sempre)
Paulo Roberto de Almeida
Sou servidor do Estado,
mais exatamente um funcionário concursado em uma das carreiras do Estado,
especificamente no Serviço Exterior do Brasil, um país que dizem que é
federativo, e no qual deveriam coexistir harmoniosamente uma União e os outros
entes federados. Escrevo deveriam porque me parece que o Brasil ainda não é um
mercado comum, uma vez que existem legislações tributárias diferentes em cada
um dos estados da federação. Pelo menos é a impressão que me dá quando, ao
viajar, deparo com aqueles sinais na estrada que obrigam os caminhões a serem
inspecionados por sua carga. Por força de meu aprendizado da história, sempre
penso na Idade Média, quando os senhores de terra cobravam pedágio pelo uso de
uma ponte, de uma travessia de rio, pela simples passagem inocente nos caminhos
do seu feudo. Enfim, passons...
Segundo a Receita Federal,
a minha classificação, no serviço público federal começa pelo número 21, “Membro
ou servidor público da administração direta federal”, e termina pelo número
106, “Diplomata e afins”. Nunca soube, exatamente, o que queria dizer “afins”,
mas suponho que o termo se refira a oficiais de chancelaria, a assistentes de
chancelaria e outros afins. Enfim, suponho, mas deve ser isso. A Receita
Federal, como todos sabem, é um órgão sempre atento e atencioso para com todos
nós, desde que não deixemos de cumprir nossos deveres e obrigações; sim, claro,
a Receita só costuma cuidar dos nossos deveres e obrigações, não dos direitos e
vantagens. Mas a vida é assim mesmo. Passons,
mais uma vez...
Na União existe um Governo.
No Governo deveriam conviver harmoniosamente os famosos três poderes (e mais
alguns que vão sendo acrescentados sem que a gente perceba) e ao que parece é o
que eles mais fazem: parece que, de fato, eles convivem harmoniosamente, sem
esquecer da possibilidade eventual de algum desentendimento tópico, mas isso
não é da nossa conta, a não ser que você seja o responsável por um dos três poderes
(ou de algum outro, que dizem existir). Enfim, a Constituição federal diz exatamente
o que cada um dos poderes deve fazer, e acho que isso basta, embora eu esteja
em desacordo com um bocado de coisas que existe na carta constitucional, em
especial na sua parte econômico, mas isso não vem ao caso agora. Passons, encore...
Volto ao meu caso. Sou
portanto servidor do Estado, o que não me converte automaticamente em funcionário
do governo, o que ocorreria se eu estivesse ocupando algum cargo público que
responde diretamente a alguma diretiva do governo. Aqui cabem algumas
distinções. Servidores de Estado cumprem as funções burocráticas que estão
previstas nas leis e nos regulamentos, independentemente de quem exerce um determinado
governo momentaneamente. Juízes julgam, policiais policiam, investigadores investigam,
cobradores de impostos cobram impostos, carcereiros encarceram, segundo as
ordens que recebem de outros funcionários de Estado, e não de governo. Como
esses dignos colegas, eu sou um agente do Estado, não do governo, nas minhas
atuais funções, e apenas espero não ter de servir a um governo com o qual eu
tenho contradições fundamentais, como diriam os marxistas (pelo menos antigamente). Já vou me explicar
como isso acontece, mas antes cabe um esclarecimento sobre minha situação
pessoal.
Trabalhando atualmente
como agente do Estado num modesto consulado de província, sigo fielmente
as leis e regras do meu serviço atual, ajudando todos os brasileiros que se
apresentam para cumprir suas obrigações (alistamento eleitoral, militar,
inscrição na Receita Federal, etc.), para exercer os seus direitos (entre eles
o de votar, mas este também é uma obrigação), ou que necessitem de quaisquer
atos notariais para os quais estamos habilitados (procurações, autorizações,
declarações, etc.). Até aí vão as obrigações, mas sempre procuramos fazer um
pouco mais, pois é dura a vida de um emigrado – voluntário ou não, isso não vem
ao caso agora – num país distante, sem domínio perfeito da língua, sobretudo
quando se é um ilegal, sem autorização de residir. A gente sempre tenta ajudar
mais um pouco, consoante aqueles velhos valores da solidariedade humana que não
fogem à nossa consciência. Tudo bem: até aí chega a minha condição de agente do
Estado.
E o
que isso tem a ver com a segunda parte do meu título: “não de governo”? Aparentemente
nada, pois se trata de algo objetivo, que ocorreria com qualquer um que
estivesse ocupando as funções de agente do Estado brasileiro, não como servidor
de um governo específico, para cuja função se requereria uma designação formal,
em ato de governo, colocando um servidor do Estado (mas também pode ser um
cargo de confiança, ou seja, de pessoa alheia ao quadro funcional do Estado)
numa das funções previstas ou existentes num determinado governo. Por sorte a
minha, não me cabe fazer isso, pois é muito provável que eu enfrentasse certos
dilemas morais, como podem acontecer com funcionários de Estado, como eu, que
são obrigados a desempenhar certos papeis, ou a empreenderem certas atividades,
com os quais eles estão em profundo desacordo.
Dou um exemplo concreto da
minha carreira, da minha condição funcional, das minhas atividades normais, mas consideradas hipoteticamente. O
que aconteceria comigo se, designado para uma função de governo, eu fosse
obrigado, por exemplo, a defender uma ditadura abjeta, que viola os mais
sagrados valores da democracia e dos direitos humanos, impondo sacrifícios de
diversos tipos à sua própria população? Eu provavelmente objetaria a isto, e
por isso seria sancionado pelo governo que me deu tais instruções, ao me
recusar a desempenhar uma função que eu acharia execrável e violadora de
princípios aos quais julgo que todo cidadão normal, em sã consciência, deve se
ater, para seu conforto pessoal e sua plena tranquilidade psicológica. Representaria
uma violação desses princípios e valores eu ser obrigado, como disse, a
defender algo que se choca diretamente com certas coisas nas quais acredito,
entre elas a de que certas normas de comportamento civilizado devem ser
compatíveis com nossa dignidade pessoal. Acho que fui bastante claro quanto ao
que eu faria e quanto ao que eu não faria, certo?
Pois bem, ao recusar a
cumprir determinadas ordens, ou instruções, considero que o governo, qualquer
governo, está inteiramente correto ao punir seus funcionários, servidores do
Estado ou não, que incorrerem nessa
postura de rebeldia contra ordens legítimas (desde que não ilegais,
obviamente). Mas algumas distinções podem ajudar na avaliação desse tipo de
antagonismo, ou contrarianismo, que surge inevitavelmente em situações que se
abrem a variantes interpretativas, ou em função das quais resultados diferentes
podem ser esperados. Um soldado, na frente de combate, por exemplo, não pode
recusar-se a cumprir ordens de seu comandante, com o que o conjunto da operação
pode sofrer danos irreparáveis. Mas aqui estamos falando de uma situação
limite, na qual está em causa o próprio conceito de segurança nacional, ou algo
que o valha.
Diferente é o cenário no
caso da maior parte das escolhas de políticas públicas, onde uma diferente
composição de mecanismos, de insumos, ou de atores, pode levar a resultados
completamente diferentes, segundo os caminhos adotados, embora talvez nada que
comprometa o conjunto, uma vez que opções de políticas públicas estão sempre
sendo integradas a um complexo maior de determinações e investimentos sociais.
Ainda que fosse o caso, e a determinação por uma política, e não outra, seja
decisiva, pode-se sempre substituir o funcionário relutante, que é uma mera
correia de transmissão num processo decisório geralmente mais vasto. Sempre
existem vontades concordantes e espíritos submissos em quaisquer
empreendimentos humanos, a fortiori
naqueles identificados com determinadas opções políticas ou ideológicas (que
são as que existem normalmente, e estão à disposição de qualquer ser pensante e
atuante).
É exatamente por isso que
disse que tive a sorte – mas também sempre tem o outro lado da situação – de
não ter de enfrentar escolhas difíceis no plano moral, ao me terem sido negadas
quaisquer chances de servir o governo, além de minhas funções normais de
servidor do Estado. Talvez já imaginando como eu poderia me posicionar,
evitaram de me convidar para exercer determinadas funções ou ocupar certos
cargos, digamos assim. Também não imagino quais poderiam ser os dilemas éticos
e morais que enfrentaria estando colocado em determinadas posições. Ou imagino
sim, mas não é o caso aqui de entrar numa discussão específica. O exemplo,
citado acima, de um tipo qualquer de pronunciamento, ou posicionamento, em
relação a uma ditadura ordinária, repulsiva, violadora das normais mais
elementares do comportamento democrático ou do devido respeito aos direitos
humanos, pode ilustrar o que estou dizendo.
Pode inclusive ocorrer que
normas constitucionais, ou tratados internacionais, solenemente assinados e
devendo ser observados pelo país, podem estar sendo violados, de maneira
deliberada ou mesmo indireta pela ditadura abjeta em hipótese, o que aliás
justificaria alguma atitude de rebeldia de qualquer funcionário público dotado
de um mínimo de consciência e responsabilidade em relação a padrões aceitáveis de
comportamento individual ou até estatal. Ainda no terreno das hipóteses, todo
mundo sabe da existência de cláusulas democráticas em diversos instrumentos
internacionais, pelas quais cabe zelar, uma vez que elas integram o patrimônio
jurídico da nação.
Venho à conclusão: servidores
do Estado podem ser cingidos, ocasionalmente, a também servir um governo cujas
políticas eles desaprovam. Cabe fazer uma avaliação ponderada quanto ao alcance
global e os impactos implícitos, e até indiretos, dessas políticas, para ver se
elas são legais, legítimas, não se chocam com alguma norma constitucional ou
não afrontam nenhum compromisso internacional livremente assumido pelo Estado
em nome da nação. Para isso existe a necessária transparência nos negócios públicos,
o que me parece totalmente contrário à existência de empréstimos secretos,
sobretudo quando são feitos para ditaduras abjetas ou regimes deploráveis.
Creio ter deixado muito
claro o que é e o que não é aceitável na função pública, e na condição de
servidor do Estado. Esta é uma situação a que se chega numa base totalmente
impessoal, uma vez que o Estado é uma instituição permanente, a princípio a
serviço de toda a comunidade. Diferente é a situação, geralmente
circunstancial, de servir a um determinado governo, que é passageiro, e pode
estar ele mesmo submetido a forças políticas que de ordinário mereceriam o
nosso repúdio como democratas sinceros ou como simples cidadãos respeitadores
de determinados valores cívicos. Dou mais um exemplo: corrupção nos assuntos
públicos é algo moralmente abjeto, sobretudo quando é praticada por
funcionários públicos encarregados de zelar pelo bom uso dos recursos da
coletividade. Aceitar que isso seja considerado um simples “malfeito” e obstar
a que se conduza um processo adequado de investigação e de punição, me parece
uma atitude violadora não apenas de normas legais, mas de simples preceitos
éticos e morais. Eu não aceitaria, em nenhuma hipótese, trabalhar para um
governo desse tipo.
Voilà: estão feitas estas reflexões de circunstância, mas que
servem igualmente para expressar meu posicionamento concreto em face de
qualquer Estado e de qualquer governo. Quando as coisas ficam claras, a gente
se sente infinitamente melhor. E neste caso, não existe, nem pode existir, a
famosa sigla, S.M.J. (salvo melhor juízo), pela qual funcionários públicos, se
expressando burocraticamente, costumam concluir eventuais expedientes que
alimentam o processo decisório. A decisão aqui já foi tomada, e ela vai sem
qualquer outro juízo de valor: os meus estão claramente expressos no que
precede.
Vale!
Paulo Roberto de Almeida
Hartford, 2787: 7 de março de 2015, 5 p.
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