Comentarei mais adiante.
Paulo Roberto de Almeida
Será que houve uma verdadeira surpresa quando o Brasil constatou, na sequência da segunda vitória eleitoral de Dilma Rousseff, em 2014, que as condições de governabilidade do país, em lugar de terem sido potenciadas pelo banho de legitimidade do sufrágio, mostraram, quase de imediato, uma significativa degradação, com efeitos visíveis na coesão da base político-partidária com que a reeleita presidente partia para o seu segundo mandato?
Não parece seguro. O que se passou a partir daí terá surpreendido muita gente pela forma como ocorreu – crises sucessivas no executivo, reforço inédito dos bloqueios parlamentares, impactos diários dos escândalos financeiros na máquina política – mas, verdadeiramente, fica a sensação de que o país pressentia que a estabilidade formal saída das urnas teria, mais cedo do que tarde, uma resultante que seria debilitante para a própria presidente.
O Brasil tinha assistido, na sua história contemporânea, a atos eleitorais muito tensos e divisivos, com momentos de agitação e até fortes clivagens em estruturas institucionais centrais. A eleição presidencial de 2014 não foi nisso diferente de algumas outras. Porém, pressentia-se, desde o início, que esta eleição tinha lugar num ambiente político, económico e social muito atípico. E que isso não deixaria de ter importantes consequências no futuro.
A crise económico-social
O Brasil das presidências de Dilma Rousseff foi quase sempre, no plano dos equilíbrios sociais, um país instável e imprevisível. Ela subiu ao poder quando os efeitos da crise internacional eram já muito patentes e o Brasil disso dava sinais, quando o glamour internacional dos países emergentes se tinha esbatido, com diretas consequências nos fluxos de investimento, efeitos cambiais subsequentes e impactos claros na capacidade orçamental para continuar a desenvolver o ambicioso corpo de políticas sociais em que assentara o sucesso dos anos Lula. Logo depois, viria o arquivar do sonho do biodiesel e a quebra no preço das commodities, com a queda do petróleo a colocar a exploração do pré-sal na prateleira e as receitas do país a caírem fortemente.
Os tumultos urbanos que o ano de 2013 testemunhou, e que 2014 reeditou, revelaram uma sociedade que, de uma forma politicamente difusa, atravessava um tempo de crescente mal-estar, de insatisfação perante o afloramento da inflação e um tecido de políticas públicas cuja qualidade e oferta se situavam muito longe da imagem que o Brasil político havia projetado do país e que a esperança numa vida bem melhor havia fixado nos anseios dos brasileiros. Cruzam-se pela primeira vez, nessas expressões agitadas de rua, diversas variáveis e vontades, com as redes sociais a amplificarem a revolta e os apoiantes do poder a revelarem a sua debilidade como contraponto político.
Estiveram por ali bem patentes as desilusões de uma crescente classe média que se confronta com gritantes deficiências nos sistemas de transportes, na saúde, na educação, na segurança pública e que, ao mesmo tempo, assiste, com escândalo, ao eclodir de casos flagrantes de apropriação privada de bens públicos, por uma pletórica classe política cumulada de mordomias. Dia após dia, o boca-a-boca do Twitter e os mídia, estes últimos aliados a um sistema de justiça que estimula os julgamentos de rua, foram criando um caldo de insatisfação que as “boas palavras” da direção política do país não conseguia atenuar.
A ausência de qualquer “estado de graça” posterior às eleições revela assim que o processo de legitimação que os sufrágios tradicionalmente reforçam cedeu de imediato o passo a esse mal-estar endémico, fruto de uma descrença na capacidade autorregeneradora do sistema político e na fiabilidade dos seus titulares.
A crise institucional e política
A crise política que o Brasil hoje atravessa é também marcada pela aparente incapacidade da sua atual matriz institucional para conseguir gerar soluções que, simultaneamente, respondam às necessidades imediatas em termos de governança do país, e que se apresentem com um mínimo de condições de sustentabilidade em termos de aceitação popular futura.
Se o modelo constitucional brasileiro, em especial o cariz presidencial do regime, não pareceu nunca em sério risco, já o sistema de representação partidária, com expressão parlamentar, que vive sob fortes e generalizadas críticas, não se afigura dar mostras de conseguir decantar uma fórmula alternativa, com possibilidade de uma estável aceitação.
Os apelos à “reforma política” – expressão que faz parte do mantra regenerador com que a classe política há vários anos quer dar mostras de ser capaz de evoluir – confrontam-se com o peso esmagador do sistema instalado, quer ao nível federal, quer a nível dos Estados. Não é, por ora, previsível até onde poderá ir a vontade para uma efetiva reforma, sendo no entanto claro que, na óbvia ausência de uma pulsão constituinte de largo espetro, ela dificilmente ultrapassará algumas mudanças adjetivas.
A associação do Partido dos Trabalhadores (PT), principal suporte da presidente, aos escândalos mais recentes parece uma evidência incontestável, sendo embora verdade que os estilhaços da corrupção se espalham por muitas outras áreas do sistema partidário.
De certo modo, se olharmos para o primeiro mandato de Dilma Rousseff, há que reconhecer que a sua atitude de ir afastando do executivo todas as figuras associadas a ilícitos graves foi o primeiro passo positivo para o “saneamento” ora em curso. Com toda a evidência, a limpeza desse sistema está a ser mais profunda do que a presidente teria previsto, sendo que, por ora, o seu próprio nome nunca foi objeto de acusações de impropriedade pessoal, não obstante a sua responsabilidade política esteja cada vez mais passível de inculpação.
Para agravar a posição de Dilma Rousseff, o PT, de onde deriva o seu principal suporte político, está a ser objeto de uma diabolização que, tendo muito de oportunismo ideológico em momento de refluxo de poder, configura igualmente uma compreensível reação geral de repúdio face às revelações de que esse partido deu provados passos no sentido de criar um “aparelhamento” da máquina político-administrativa do país. Nada que fosse novo no Brasil, embora talvez com uma expressão quase inédita de utilização partidária de recursos públicos. Mas o facto de isso ser assumido por uma formação política que, na sua origem, se fez passar por um modelo de ética e pureza ideológica, confere-lhe uma imagem de insuportável hipocrisia.
O fator Lula
A mitologia política brasileira defendia que “Lula elege um poste”. Não sendo as coisas necessariamente assim, Lula acabou por ser o fator decisivo, quer na primeira eleição de Dilma Rousseff – onde a “vendeu” a um país onde, à partida, era bem menos conhecida do que o seu opositor, José Serra –, quer, talvez de forma ainda mais decisiva, na disputada e tensa eleição de 2014. O carisma do antigo presidente, que mostrou sempre uma grande lealdade face à sua “criação”, terá sido o elemento diferenciador que permitiu a Rousseff arregimentar grande parte dos setores do eleitorado que se mantém tributário do imaginário do sucesso das políticas sociais dos “anos Lula”.
A grande questão que se coloca no Brasil pós-Dilma voltará a ser o papel de Lula da Silva. Depois de ter sido um, nem sempre discreto, back-seat driver em certos momentos dos consulados da sua sucessora, o antigo presidente dá mostras de uma clara apetência para regressar à ribalta política, tendo as eleições de 2018 como uma meta cada vez mais evidente.
Não é, porém, nada claro que Lula da Silva consiga vir a transportar a sua imagem vitoriosa do passado para esse futuro ainda distante, num tempo em que os escândalos em torno de Dilma Rousseff e do PT se colam, dia após dia, à imagem da sua própria administração. Se, no passado, parte do Brasil havia separado, de uma forma quase deliberada, o anterior presidente das evidências criminosas do “mensalão”, a lealdade demonstrada por Lula à gestão de Dilma não parece deixar-lhe espaço para vir a definir um rumo autónomo, e visivelmente diverso, no caminho para um possível regresso ao poder. Se Lula vier a ser candidato em 2018, só o poderá ser reivindicando o saldo dos mandatos de Dilma Rousseff – e vê-se mal como isso poderá funcionar em favor do seu prestígio.
Contudo, uma coisa parece hoje clara. Se foi Lula quem historicamente criou o Partido dos Trabalhadores, depois deste evidente fracasso de Dilma Rousseff só Lula parece ainda possuir a residual chave da “salvação” de um partido que, sem ele, pode ter destruído, por muitos anos, as hipóteses do regresso ao poder de uma esquerda popular, de matriz socializante. E que, colocado na oposição, tem condições para se tornar um fator de instabilidade político-social muito forte, em especial num Brasil onde as clivagens sociais tenham tendência a não se atenuarem.
A hora do PMDB ?
Se Lula da Silva e o PT surgiram, por alguns anos, no palco da evidência política e doutrinária do Brasil contemporâneo, isso só foi possível porque contaram, para além de um conjunto de pequenas formações partidárias a quem foram distribuídas “fatias” de poder, com o apoio institucional daquele que, desde a reimplantação da democracia, é o eixo central da vida política brasileira – o Partido do Movimento Democrático Brasileiro, PMDB.
Torna-se difícil explicar, sob uma matriz europeia, a génese de uma formação que, historicamente, tem podido estar, simultaneamente, no poder e manter alguns dos seus setores e das suas figuras próximos da oposição ou, outras vezes, exercendo uma pontual obstrução reivindicativa aos executivos, titulando interesses muito variados e, não raramente, algo contraditórios.
Nascido do MDB, a formação que a ditadura militar fez criar como contraponto da sua dócil “Arena”, por forma a manter a ficção de um “congresso” que sempre manipulou a seu bel-prazer, o PMDB é hoje o maior partido brasileiro. Pode dizer-se que grande parte das forças políticas do Brasil democrático são originárias do PMDB, com destaque para o PSDB (Partido da Social-Democracia Brasileira), que tem como figura tutelar Fernando Henrique Cardoso e apresentou como seu candidato às eleições presidenciais de 2014 o antigo governador de Minas Gerais, Aécio Neves.
Poucas vezes, desde o restabelecimento da democracia em 1985, o PMDB teve uma expressão institucional tão forte, em especial no seu peso político a variados níveis. Presente em pastas importantes do governo e fazendo formalmente parte da “base governista” apoiante de Dilma Rousseff, em especial através do vice-presidente Michel Temer, o partido, que hoje lidera o Congresso (Câmara de Deputados e Senado, de que detém as presidências), parece dar mostras de querer forçar uma pouco subtil deriva parlamentarista, claramente explorando a fragilização política da presidente. Não é muito claro até onde esta tensão pode levar, parecendo evidente a muitos observadores que Michel Temer não se exclui como solução para um cenário extremo de crise.
As eleições de 2014 revelaram um país fortemente dividido, regional e socialmente. Em caricatura, com algumas manchas de diferenciação no modelo, o sufrágio levou a constatar que há uma linha divisória que separa o Brasil que conseguiu fazer eleger Dilma de uma outra parte do país onde o seu voto foi muito mais escasso e o poder do PT parece estar em forte perda, mesmo em áreas onde, no passado, tinha uma histórica implantação.
Não é claro o que o opositor presidencial de Dilma, Aécio Neves, poderá vir a fazer com o excelente resultado que conseguiu obter nas urnas e, em especial, se o PSDB virá a revelar, em futuros sufrágios, um potencial de afirmação que lhe permita sugerir-se como o sucessor natural, no exercício do poder, do eventual declínio do PT.
É que os últimos tempos parecem revelar que o PMDB poderá vir a abandonar o seu tradicional modelo contido de afirmação institucional e revelar ambições maiores na assunção de responsabilidades políticas a todos os níveis do poder. Mas esta é uma questão a que só o futuro poderá responder.
*****
Brasil – Portugal
A eclosão da crise económica, com os seus efeitos diferenciados em ambos os países, bem como a saída de Lula da Silva da presidência parece terem tido um impacto negativo na atual densidade das relações entre o Brasil e Portugal, da política à economia.
Dilma Rousseff não herdou, claramente, a afetividade que o seu antecessor tinha por Portugal e, numa administração como a brasileira, isso tem imediatas repercussões no comportamento de todos os agentes públicos. Nenhum sinal exterior contraria, aliás, esta generalizada perceção.
Alguns dossiês bilaterais parece terem ficado reféns desta nova atitude: as questões do reconhecimento de diplomas, a imposição de um novo regime de bolsas de estudo, especialmente gravoso para as universidades portuguesas, bem como a persistência ou emergência de dificuldades de natureza não-pautal que afetam o acesso de produtos nacionais ao mercado brasileiro, em especial na área agroalimentar.
Também em algumas dimensões multilaterais, em que a Portugal era importante garantir o empenhamento brasileiro (CPLP e Comunidade ibero-americana), a chefe do Estado brasileiro parece dar nota de algum desinteresse, que, aliás, vai de par com a sua atitude geral de menor atenção pelas relações externas.
No investimento, depois do ciclo de privatizações brasileiras dos anos 90 ter conduzido a um fluxo importante de capitais portugueses, seguido por um surto de PME locais criadas com dinheiros idos de Portugal, vem a assistir-se, nos últimos anos a uma acentuada retração, em praticamente todos os setores. Em direção oposta, o capital brasileiro, que não tinha uma tradição significativa de expansão para o mercado português, viu reforçada a sua presença no nosso país.
Os fluxos comerciais sofreram um forte impulso, muito embora uma análise fina desses movimentos continue a revelar a predominância de produtos com escasso valor acrescentado.
Finalmente, os fluxos turísticos brasileiros para Portugal mantêm uma expressão muito interessante, graças à importante “estrada” aberta pela consagração da TAP como o grande transportador entre o Brasil e a Europa.
Francisco Seixas da Costa
Nota biográfica
Francisco Seixas da Costa é embaixador aposentado, tendo chefiado as representações portuguesas na ONU, na OSCE, no Brasil, em França e na UNESCO. É atualmente docente da UAL, consultor e administrador de empresas. Entre outros livros, publicou “Tanto Mar? – Portugal, o Brasil e a Europa” (Brasília, Thasaurus, 2008)
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