terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Grande empresa e Estado: a promiscuidade "natural" - Augusto de Franco

DAGOBAH

NL 0039 - 31/01/2017


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Grandes empresas: pouco de mercado, muito de poder

As grandes corporações empresariais do capitalismo não são propriamente entes de mercado e sim estruturas hierárquicas de poder autocrático. O assunto já foi tratado na introdução do artigo Reflexões sobre a natureza das empresas, sobre os casos da Odebrecht e da Oi, no Brasil. 

Quem analisar o caso da Odebrecht verá que não há nada ali que se possa chamar de livre mercado. O mesmo vale para a OAS, para a Carmargo Correia, para a Andrade Gutierrez, para a Engevix, para a Galvão Engenharia e a Queiroz Galvão, para a Iesa, para a Mendes Junior e para a UTC-Constran e dezenas de outras. Não são só as empreiteiras: existem centenas de empresas com o mesmo perfil, como a AG, a Alumni Engenharia, GDK, Promon Engenharia, Fidens Engenharia, Sanko Sider e SOG Óleo e Gás e a Schahin envolvidas no Brasil das últimas duas décadas em escândalos de corrupção. 

Mas a questão central não é a corrupção e sim a autocratização dos modos de regulação de conflitos que esses entes monstruosos, invariavelmente associados ao Estado, introduzem na sociedade. O mesmo que vale para as empresas que, no Brasil, se organizam e atuam como verdadeiras máfias, valia para empresas como a Krupp, a Ig Farben (Agfa, Casella, Basf, Bayer, Hoeschst, Huels, Kalle) e Siemens na Alemanha hitlerista. E vale para as atuais Exxonmobil, Apple inc., BHP, Billiton, Royal Dutch Shell, Chevron, Microsoft, General Electric, Berkshire Hathaway, Nestlé, IBM, Gazprom, JP Morgan Chase, HSBC, Wal-Mart, AT&T, Procter & Gamble, Oracle, Vale do Rio Doce, Wells Fargo, Johnson & Johnson, Pfizer, Coca Cola, Google, Vodafone, Rio Tinto, Novartis, Total, Toyota, Samsung Group, Roche, Schlumberger e, novamente… para a Siemens e centenas de milhares de outras menores. Petrochina, ICBC e China Construction Bank, se organizam e se comportam exatamente da mesma maneira. 

O capitalismo realmente existente (não o dos livros dos ideólogos da Economics) é, geneticamente, o fruto de uma associação entre a empresa monárquica e o Estado hobbesiano (no caso, a forma que conhecemos como Estado-nação). 

A grande empresa do capitalismo jamais foi violada pela ideia de democracia. Aliás, este é o conselho que o tarado Michael Porter deu a milhares de empresários do mundo todo que foram lá nos USA frequentar seus cursos nos últimos 40 anos: “se vocês quiserem vencer, esqueçam completamente a ideia de democracia”. Sim, Porter e seus empregados repetiam essa frase, literalmente. 

Os que acham que democracia é apenas um modo político de administração do Estado – e não um processo de desconstituição de autocracia – têm dificuldade de entender isso. Pensam que se a grande empresa hierárquica e autocrática for honesta, respeitar as leis, tudo bem (formalmente, porque elas nunca respeitam). Acham que se esses organismos sociais (na verdade, antissociais) monstruosos se subordinarem ao Estado democrático de direito, podem se organizar de forma hierárquica e se regular de modo autocrático. 

Mas não, não está tudo bem. A deformação no campo social que uma empresa desse tipo provoca é desumanizante. 

Num comentário a um resumo deste artigo no Facebook, Tito Costa Santos escreveu: 

Concordo com a crítica ao “capitalismo de compadres”. Entendo que a solução é mais livre mercado e menos intervenção estatal. 

Partindo do pressuposto de que uma organização em rede tende a gerar mais valor e a ser mais eficiente do que uma empresa autocrática e centralizada, se não houver proteção estatal aos “amigos do rei” através de isenções fiscais, crédito subsidiado, regulações tendenciosas, barreiras de entrada a novos empreendimentos e inovações etc, as corporações centralizadas tendem a perder competitividade, clientes, diminuir e mudar (ou morrer). 

Sim, mas é mais do que isso, muito mais. Há um embricamento entre grande empresa e Estado que vai além da proteção aos “amigos do rei”. Não se trata apenas da Odebrecht associada ao governo do PT, nem das empresas da curriola de Hugo Chávez na Venezuela, nem das empresas que se associaram à FSB (ex-KGB) de Putin (ou foram roubadas por ele) – sobretudo no setor de petróleo e gás, embora as relações do Estado russo protoditatorial com os chamados oligarcas sejam um capítulo a parte bastante instrutivo. Uma análise das trajetórias de Mikhail Khodorkovsky (Yukos), Vagit Alekperov e Leonid Fedun (Lukoil), Boris Berezovsky e Roman Abramovich (Sibneft), Mikhail Fridman e Viktor Vekselberg (TNK-BP) e Vladimir Bogdanov (Surgutneftgaz) seria capaz de revelar a mistura maligna de autocracia estatal e hierarquia empresarial ou vice-versa. 

Banditismo de Estado à parte (como ocorreu no Brasil, e ainda ocorre na Venezuela ou na Rússia), o mesmo padrão se repete nas mega-empresas consideradas normais, sediadas em Estados democráticos de direito. Porque o problema é a estrutura e a dinâmica da grande empresa e do Estado (cujos isomorfismos permitem a manifestação de fenômenos que não dependem da vontade dos atores, sejam ou não corruptos os dirigentes empresariais e os funcionários estatais: não se trata de simbiose alcançada por sintonia e sinergia e sim de uma espécie de coniunctioperversa ou degenerada, a custa de reverberação). São organismos que mutuamente se predam, se retroalimentam, se parasitam e, entre tapas e beijos, terminam abraçados copulando indecentemente (às vezes em praça pública, como se fosse a coisa mais normal do mundo). A corrupção ativa e passiva de funcionários empresariais e estatais é um mero efluxo do que está reverberando lá dentro, na intimidade do conúbio. 

Uma grande empresa é uma aberração que, em geral, não surge e se mantém “naturalmente”, sem a participação do Estado como tronco gerador de programas verticalizadores (ou de outro centro qualquer com alta gravitatem, em alguns casos históricos é possível encontrar uma igreja ou alguma ordem religiosa, como os Templários – mas mesmo assim há sempre alguma forma de Estado presente). 

O fluxo do mercado impede que se chegue a um nível de concentração capaz de gerar uma grande empresa. Isso só pode ocorrer quando se erigem armadilhas para capturar fluxos e quando há reverberação entre a dinâmica própria da estrutura que foi erigida com base na desigualdade de renda e riqueza, com a dinâmica própria de outra estrutura que foi erigida com base na desigualdade de poder (ou seja, em desliberdade). 

O fluxo do mercado não coagula, dissolve. A vida média das empresas (tomando-se como base um levantamento de 2011 feito nas 500 Standard & Poor’s) caiu de 75 anos em 1937 para 15 anos no final de 2011.

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Assim, um empreendimento – deixado ao sabor da dinâmica puramente mercantil – tende a morrer pelo esgotamento do seu ciclo de vida (e aí entra tudo, desde a aparição de novas tecnologias até a inviabilidade econômico-financeira por imperícia de gestão ou em razão do aumento dos chamados custos invisíveis, como os de transação, de atritos de gestão e de sinergia, até a conformação de ambientes desfavoráveis ao seu funcionamento – mas sempre por deficit de adaptação ou de capacidade de mudar tempestivamente em congruência com a mudança das circunstâncias). Quando não morre é porque virou outro empreendimento, seja por aquisição (por outra empresa), fusão ou por reinvenção. Para coagular a ponto de se agigantar – mantendo-se como foi (em vez de se adaptar continuamente para ser o que será) – é necessário capturar o fluxo, obrigá-lo a ficar rodando dentro de um mesmo ambiente, à revelia do mercado. Ora isso não se consegue por processos intrínsecos às condições variacionais do mercado. Isso só se consegue com poder (ou seja, com centralização da rede promovida por exclusão de nodos, eliminação de conexões ou desatalhamento de clusters, que é tudo que as mega-empresas fazem, no seu interior e no ecossistema de seus stakeholders, deformando o campo social no seu entorno próximo e distante e, assim, nos atingindo – reduzindo os graus de nossa liberdade, em especial da liberdade de empreender -, mesmo que não sejamos seus clientes ou consumidores). 

A introdução deste texto foi publicada originalmente no Face em 24/01/2016.

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