Confesso não saber ao certo se caio na gargalhada ou se enxugo uma furtiva lágrima toda vez que ouço os arautos da sabedoria convencional – fronte alta e voz empostada – proclamarem que, a despeito dos escândalos éticos e das crises políticas da atualidade, “as nossas instituições permanecem sólidas”.
Deveras? Ora, NÃO permanecem sólidas, simplesmente porque nunca o foram! Se não, o que dizer de um sistema político que já experimentou quase TODOS os tipos de regimes políticos catalogados pela história, a saber: monarquia absoluta; monarquia constitucional; república presidencialista; ditadura civil; novamente república presidencialista; parlamentarismo; uma vez mais república presidencialista; ditadura militar; e, pela terceira vez, república presidencialista? Ou do fato de que, anteriormente à passagem da faixa presidencial de Lula para Dilma, em 2011, a última vez em que um antecessor diretamente eleito pelo povo havia transferido o poder a um sucessor idem, sob idênticas regras sucessórias, fora o ano de 1926 – de Arthur Bernardes (1875-1955; governou de 1922 a 1926) para Washington Luiz (1869-1957; derrubado pela Revolução de 30)? (Aqui, vale recordar que tanto FHC quanto Lula foram eleitos diretamente, mas que o governo do primeiro, rompendo com a tradição republicana, emendara a Constituição para instituir a possibilidade de uma reeleição consecutiva.) Ou ainda da inquietante constatação de que, desde o referido Bernardes, os únicos presidentes escolhidos em pleito popular direto que lograram concluir seus mandatos foram apenas quatro: Eurico Gaspar Dutra (1883-1974, de 1946 a 1951); Juscelino Kubitschek de Oliveira (1902-1976, de 1956 a 1961); Fernando Henrique Cardoso (de 1995 a 2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (de 2003 a 2010).? Dilma Vana Rousseff foi destituída por impeachment na primeira metade do seu segundo mandato...
A um tempo efeito e causa dessa instabilidade é a recorrente necessidade de um Poder Moderador ser chamado a intervir para preencher os vácuos de legitimidade resultantes de choques entre Executivo, Legislativo e Judiciário. E pouco importa se esse quarto poder esteja oficialmente inscrito no texto constitucional, como rezavam os artigos 98 a 101 da Constituição Política do Império do Brasil, carta outorgada em 1824 por dom Pedro I, após ter dissolvido a nossa primeira assembleia constituinte, ou se é operado informalmente pelos ‘salvadores’ da hora, papel que em passado não muito distante foi desempenhado pelo Exército. Desta feita, o pêndulo parece estar se deslocando rumo ao Judiciário e ao Ministério Público, e, para complicar ainda mais as coisas, os atuais aspirantes ao exercício do Poder Moderador dilaceram-se em disputas internas ao sistema de Justiça: ministros do STF versusProcuradoria-Geral da República; instâncias judiciais superiores contra inferiores; até mesmo rusgas entre esferas e níveis do Ministério Público. O que resultará do presente imbróglio, ninguém pode prever com exatidão, todavia a experiência republicana ensina que aqueles grupos que empalmaram o Poder Moderador acabavam mandando a moderação às favas até mergulharem o país em novos ciclos de conflito e instabilidade. Se, como alertou Douglass North no seu discurso de recepção do prêmio Nobel de Economia (1993), as instituições são “regras do jogo” modeladas pela cristalização dos costumes e hábitos de uma sociedade, numa palavra, da sua cultura, então as vicissitudes das nossas repúblicas de sempre encontram explicação nas hipóteses de Raymundo Faoro, em Os Donos do Poder (2ª edição, 1975), e de Roberto DaMatta, em “Você sabem com quem está falando?...” (1979). Governantes e burocratas consideram-se mais importantes e ‘maiores’ que os cargos que exercem e abusam de sua autoridade, apropriando-se patrimonialisticamente dos recursos públicos. Para aquilatar esse problema em toda a sua gravidade, basta contrastar esse vezo aristocrático do comportamento dos mandantes em relação aos mandados com o respeito reverencial que os titulares do poder público nos Estados Unidos – noves fora Donald Trump – devotam às instituições que representam. Não se trata apenas da perene engenhosidade dos checks and balances projetados pelos pais da constituição de 1787, como James Madison (1751-1836), co-autor, com Alexander Hamilton e John Jay, dos magistrais Artigos Federalistas, quarto presidente americano (de 1809 a 1817), arguto leitor de Montesquieu (1689-1755), que no clássico O Espírito das Leis(1748), introduziu a teoria de divisão/separação de poderes no debate político moderno como antídoto ao despotismo – por definição, uma modalidade imoderada de governo. Trata-se, isto sim, da disciplina habitual de respeito mútuo entre os poderes, assegurada pela certeza da punição aos agentes políticos que se atrevam a exorbitar das suas prerrogativas.
Aqui e agora, a desmoralização de todas as instituições políticas sob o presidencialismo de coalizão, ou de cooptação, ou de corrupção, tanto faz – levada ao paroxismo nos períodos Lula e Dilma –, perpetua uma vergonhosa dependência em relação a qualquer Poder Moderador. Ela permanecerá entre nós enquanto as autoridades republicanas continuarem a exercer seu poder... imoderadamente.
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*Paulo Kramer é analista de riscos e professor de Ciência Política da UnB.
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