Paulo Roberto de Almeida
Bretton Woods: o aprendizado
da economia na prática
Paulo Roberto de Almeida
Publicado in: Ives Gandra da Silva Martins e Paulo
Rabello de Castro (orgs.), Lanterna na
Proa: Roberto Campos ano 100 (São Luís, MA: Resistência Cultural Editora,
2017, 344 p; ISBN: 978-85-66418-13-2), p. 52-56. Relação de Publicados n. 1257.
Em maio de 1944, o
presidente Franklin D. Roosevelt, no seguimento de preparativos que vinham sendo
feitos desde longos anos pelo Departamento de Estado, sob a liderança de
Cordell Hull, formula um convite a 44 “nações unidas e associadas”, entre elas o
Brasil, para discutir a reconstrução econômica do pós-guerra, por meio de uma
conferência diplomática que deveria reunir-se em Bretton Woods e dedicar-se a
superar o quadro de anomia institucional que prevalecia no mundo desde a crise
de 1929 e a depressão dos anos 1930. Tratou-se de um momento único, de certa
forma ainda prevalecente, na história das relações econômicas internacionais
contemporâneas, uma vez que dessa conferência emergiram as mais importantes
instituições da cooperação monetária e financeira entre as principais economias
de mercado do pós-guerra, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD). A reunião, realizada
num “bucólico hotel desse vilarejo, nas montanhas do New Hampshire” (Campos, A Lanterna na Popa; Rio de Janeiro:
Topbooks, 1994: p. 62), constituiu, igualmente, uma oportunidade inédita oferecida
a uma comunidade diversificada de importantes economistas e de diplomatas
experimentados de estar “presente na criação” do mundo atual, como relatado
mais tarde por um dos Secretários de Estado do país anfitrião, Dean Acheson.
Roberto Campos foi um desses homens, a despeito de não ser, ainda, nem um
importante economista, nem um diplomata experimentado.
Assim que foi removido
para os Estados Unidos, nos primeiros meses do envolvimento americano na
Segunda Guerra Mundial, na sequência do ataque japonês a Pearl Harbor, e já se
ocupando, quando na Secretaria de Estado, dos pedidos de abastecimento ao
Brasil em materiais essenciais à sua economia junto ao governo americano,
Roberto Campos começou seriamente a estudar economia. Ele, que reconhecia “não ter
entrado na diplomacia por vocação e ter estudado economia por acidente” (1994,
p. 110), logo teria oportunidade de aprender economia na prática, pois, menos
de dois anos depois de removido para os EUA, foi designado para integrar, na
qualidade de assessor, a delegação brasileira.
O Brasil esteve
representado em Bretton Woods pelo ministro da Fazenda do governo Vargas,
Arthur de Souza Costa, que chegou a presidir um dos comitês (o de “organização
e administração”) da Comissão I da Conferência (que tratava do próprio FMI).
Acompanhavam-no, como delegados, entre outros, Francisco Alves dos Santos
Filho, da Carteira de Câmbio do Banco do Brasil; Valentim Bouças, à época
pertencente à Comissão bilateral de Controle dos Acordos de Washington sobre a
dívida brasileira; Eugenio Gudin, membro do Conselho Econômico e Financeiro e
do Comitê de Planejamento Econômico da presidência da República; Octávio
Gouveia de Bulhões, da Divisão de Estudos Econômicos e Financeiros do
Ministério da Fazenda; e Vitor Bastian, Diretor do Banco da Província do Rio
Grande do Sul (de onde vinha Souza Costa antes de ser convidado por Vargas para
substituir Oswaldo Aranha na Fazenda). Fazia ainda parte da delegação um jovem economista
do Banco do Brasil, Santiago Fernandes, ademais, obviamente, de Roberto de
Oliveira Campos, então segundo secretário da Embaixada em Washington. Sua
integração à delegação brasileira foi solicitada pelo próprio ministro da
Fazenda, Arthur da Souza Costa, provavelmente sob recomendação de outros
membros mais influentes da equipe negociadora.
A delegação brasileira
propôs uma conferência específica para promover a estabilidade nos preços dos
produtos de base, ideia que seria retomada na Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Emprego em Havana e em diversas reuniões econômicas que, nos
anos 50 e começo dos 60, levam à constituição da Conferência das Nações Unidas
sobre Comércio e Desenvolvimento. No entanto, os esforços do Brasil e de outros
países para viabilizar medidas em prol do desenvolvimento econômico não
encontraram eco nos debates em Bretton Woods. Os acordos de constituição do FMI,
assim como o Acordo Geral de 1947, negociado três anos depois em Genebra, não
fizeram nenhuma distinção entre países desenvolvidos e em desenvolvimento.
Não se tratava, no
entanto, de uma discriminação voluntariamente perversa: o problema simplesmente
não se colocava, na ótica dos que convocaram a Conferência de Bretton Woods. A
reorganização econômica e monetária do mundo era um problema a ser resolvido
basicamente entre as grandes potências, que se consideravam como as únicas
“responsáveis pela ordem internacional”. Em Bretton Woods atuaram
essencialmente os EUA e a Grã-Bretanha: todos os demais participantes eram
meros figurantes. O fato de os acordos de Bretton Woods não trazerem nenhuma
distinção entre países avançados e países em desenvolvimento pode ser explicado
pelo contexto da época, quando a questão prioritária era a da reconstrução
econômica dos países em guerra, a começar pelas potências capitalistas da
Europa.
A par de assistir, ainda
que como mero assistente da delegação, a importantes debates entre as
principais personalidades presentes, Campos travou relações com técnicos
brasileiros, com os quais viria a trabalhar ou a colaborar nos anos seguintes
(entre eles Eugênio Gudin, Valentim Bouças, Octavio Gouvêa de Bulhões e Vitor
Bastian Pinto) e com grandes economistas internacionais, com os quais também
manteve relações em sua carreira ulterior, como Edward Bernstein, do
Departamento do Tesouro americano, ou Lionel Robbins, do Reino Unido, que ele depois
recebeu várias vezes na embaixada em Londres, quando representante do Brasil
(1974-1982).
Gudin e Bulhões, os
verdadeiros articuladores das posições brasileiras em Bretton Woods, argumentaram
em prol de um esquema de estabilização dos preços e de controle dos estoques
dos produtos de base, de maneira a evitar as flutuações erráticas que pudessem
perturbar as receitas de exportação, a estabilidade de preços e o próprio
crescimento do comércio de matérias primas. No entanto, o máximo que se
conseguiu obter em Bretton Woods nesse particular foi um chamamento à
organização de uma nova conferência das Nações Unidas para tratar dessas
questões, que foram, todavia, apenas parcialmente encaminhadas em Havana.
De volta à rotina de
Washington, para tratar dos suprimentos para Volta Redonda e para outras
carências essenciais da “economia de guerra” no Brasil, Campos confirmou sua
“profunda e penosa impressão da dependência brasileira em relação a suprimentos
externos” (1994: 74):
Literalmente,
a economia brasileira paralisaria, não fossem os fornecimentos americanos. Além
de produtos como aço, celulose e papel de imprensa, produtos químicos de base,
máquinas e equipamentos, havia uma fundamental dependência em relação ao
petróleo importado.
Convenci-me
então da extrema urgência de desenvolvimento do petróleo nacional no prazo mais
curto possível, pouco importando a origem dos capitais. Nunca entendi, por
isso, durante as discussões do Estatuto do Petróleo, no governo Dutra, os
devaneios nacionalistas, segundo os quais a exploração de petróleo por empresas
estrangeiras, os chamados ‘trustes do petróleo’, significariam uma espécie de
penhora da independência.
Para
mim, ao contrário, a forma mais humilhante de dependência estratégica era não
ter o petróleo produzido localmente. Tê-lo produzido no país, ainda que por
capitais estrangeiros, seria uma forma de diminuir a dependência. E uma forma
extremamente racional, pois, dado o alto risco da exploração petrolífera, seria
melhor reservar os escassos capitais nacionais para atividades de remuneração
certa. (...)
A
experiência de Washington vacinou-me assim contra o ‘nacionalismo petrolífero’,
que seria mais tarde objeto de passionais debates, ao longo de trinta anos de
história brasileira. (1994: 74-5)
Essa rara combinação de
sólida formação teórica, no campo da economia, com a experiência prática
adquirida na diplomacia, e seu envolvimento em conferências diplomáticas em
momentos decisivos da formulação e implementação da ordem econômica mundial
que, de certa forma, ainda é a nossa – qual seja, o universo conceitual e
organizacional de Bretton Woods e do sistema multilateral de comércio –
permitiu que Roberto Campos combinasse essa expertise nascida do estudo da
economia com a vivência real em instâncias definidoras da estrutura
contemporânea da economia mundial para exercer seus talentos na burocracia
pública o com brilho invulgar que sempre o caracterizou, e que o marcaram como
um dos homens públicos que mais influência exerceram tanto sobre o ambiente
regulatório brasileiro dessas décadas, quanto sobre o próprio debate público na
área econômica (e até política), ou seja, sobre o pensamento econômico
brasileiro da segunda metade do século 20 (e de certa forma ainda hoje).
Paulo Roberto de Almeida, diplomata de carreira e Diretor
do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, IPRI-Funag/MRE.
[Brasília, 7 de fevereiro de 2017]
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