813. “Ideologia da política externa: sete teses idealistas”, Washington, 2 outubro 2001, 10 p.; série “Cousas Diplomáticas” (n. 2); Ensaio reelaborado a partir de trabalho n. 508, de 1996, publicado em versão original no livro Relações internacionais e política externa do Brasil: dos descobrimentos à globalização (Porto Alegre: UFRGS, 1998). Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, a. 1, n. 5, outubro de 2001; link para o artigo: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35899; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35899/20924).
Ideologia da política
externa: sete teses idealistas
Paulo Roberto de Almeida
[Publicado
na revista eletrônica Espaço Acadêmico
(Maringá: UEM, Ano I, nº 5, Outubro de 2001 -
ISSN: 1519.6186).
Relação de Trabalhos nº 813; Publicados nº 280.
Le canon a tué le
féodalisme.
L’encre à écrire va
tuer la société moderne. *
Napoleão
A reflexão irônica de Napoleão – já imperador,
solidamente instalado no comando de seu império europeu e exercendo plenamente
o poder – era dirigida, não sem ironia e desdém, contra aqueles que começavam a
ser designados, segundo a expressão então cunhada por Destutt de Tracy, pelo
conceito de ideólogos. Para Napoleão,
esses litterati nouvelle manière –
que de maneira otimista ou ingênua, acreditavam que poderiam influenciar a
política dos príncipes – viviam concebendo grandes projetos de reforma da
sociedade sem qualquer embasamento na realidade ou sem atender um mínimo
compromisso com a coerência.
A situação não modificou-se substancialmente desde
aqueles dias e a classe dos ideólogos
– uma subespécie da categoria mais ampla dos trabalhadores intelectuais –
proliferou de maneira extraordinária na era contemporânea. Alguns ideólogos
consideram-se a si mesmos “intelectuais independentes”, muito embora vários
deles sejam propensos a trocar voluntariamente essa condição pela carreira mais
emocionante de “conselheiro de príncipes” (desde, é claro, que estes últimos
estejam dispostos a ouvi-los e a acatar seus conselhos aparentemente sensatos e
descompromissados).
De certa forma, os diplomatas constituem, no plano da
política externa, os ideólogos dos estados modernos. Eles estão sempre
procurando soluções inovadoras a velhos e novos problemas das relações
internacionais, combinando propostas singelas de melhoria da situação mundial
com a expressão mais imediata dos interesses concretos de seus países
respectivos. Ao fazê-lo, ele operam um mélange
de Idealpolitik com Realeconomik, o que não deixa de
representar uma aplicação ponderada da tradicional receita de equilíbrio entre
os requerimentos de mudança e as pressões do status quo.
Se os fundamentos da ação diplomática não estiverem
contaminados pela ambigüidade ou pela incoerência, tal tipo de atuação
representaria nada mais do que uma demonstração do mais puro bom senso. Mas, se
é verdade também que a política externa nada mais é do que a continuidade da
política interna por outros meios, é mais fácil ser ideólogo no plano nacional
ou doméstico do que no das relações internacionais, inclusive porque, pelo
menos desde a ruptura renascentista do monopólio papal sobre a legitimidade dos
estados, não existem mais príncipes com estatura internacional. Daí porque,
mesmo ideólogos da política externa como os diplomatas devem desviar muito de
sua atenção para os fatores domésticos da política internacional de seus
estados, o que no caso deste texto é assumido de forma explícita.
As reflexões que se seguem buscam, precisamente,
discutir as raízes internas das posições internacionais assumidas pelo Brasil
ou, de outra forma, recolocar no plano nacional alguns dos fundamentos da
atuação externa do Brasil, que muitos julgam poder apreender apenas na
interação com outros estados e no contexto exclusivamente externo. Não é esta a
posição do autor, que apenas considera compreensível a política externa de um
estado quando os diplomatas que a aplicam são capazes de situá-la no contexto
dos interesses domésticos e da “ideologia nacional” que a sustenta.
A diplomacia brasileira, por exemplo, sempre ostentou em
suas bandeiras ideológicas os princípios da independência e da soberania
nacionais, o que nos parece muito sensato e compreensível. Nada nos deveria
impedir, contudo, enquanto “ideólogos” da diplomacia, de contestar alguns dos
fundamentos dessas idéias e de discuti-las abertamente. Ao fazê-lo confessamos
candidamente que pretendemos colocar em causa algumas dessas idées reçues sobre a inserção
internacional do Brasil e os requerimentos para uma eventual mudança de status. Assim, as sete teses
“idealistas” relacionadas abaixo pretendem comentar, se não discutir, velhos
princípios da política externa brasileira que costumam ser reafirmadas de
tempos em tempos. O objetivo é confessadamente provocador.
1. Os objetivos
nacionais permanentes
Nunca é demais lembrar: esses objetivos precisam ser
permanentemente reafirmados, sobretudo para diplomatas, que vivem num mundo em
estado de mutação permanente. Entretanto, alguém, na Casa de Rio Branco, ainda
sabe quantos ou quais são eles? Tinham certamente uma presença mais vigorosa na
época em que os militares ocupavam o poder político, quando a Escola Superior
de Guerra, uma espécie de “Sorbonne” do pensamento estratégico nacional,
convidava anualmente o ministro das relações exteriores a pronunciar
conferência magistral sobre o assunto: invariavelmente, o discurso começava por
retomar os fundamentos desses objetivos nacionais permanentes, como recomendavam
aliás os próprios manuais da ESG, o bastião conceitual mais visível da
ideologia do poder nacional.
Mas, o fato é que, hoje, o tema está visivelmente em
baixa, e ninguém mais se lembra de retomar a lista para verificar se estamos ou
não indo pelo bom caminho. Esses objetivos pareciam ter algo a ver com a
preservação da segurança da pátria frente às ameaças externas, com a afirmação
e a defesa do interesse do país, a preservação da integridade do território
nacional, a projeção internacional do estado brasileiro, a consolidação de seu
potencial econômico e militar e o desenvolvimento integral da nação, fazendo do
Brasil uma sociedade mais justa e mais humana. Em outros termos, nada de muito démodé, ao contrário, uma agenda
perfeitamente atual, compatível com programas eleitorais de centro, esquerda ou
direita.
Em função desses objetivos ainda válidos, como situar o
papel e a função da política externa brasileira? Ela poderia ser definida,
parafraseando Clausewitz, como a continuação da política interna por outros
meios. Adotando, em conseqüência, uma visão mais idealista (mas não menos
“utilitarista”) da diplomacia brasileira, o objetivo precípuo da política
externa não deveria ser, unicamente, o de representar o país no exterior e
menos ainda o de contribuir para uma pretendida grandeza nacional, a exemplo do
slogan “Brasil grande potência” típico daquele passado militar.
Se examinarmos a lista, a constatação que se poderia
fazer é a de que, atualmente, nada parece afetar a integridade do território
nacional, nem parece existir qualquer ameaça externa à segurança da pátria ou à
consolidação de seu potencial econômico e militar, a não ser, talvez, nossa
própria capacidade, domesticamente fabricada, de provocar danos ao meio
ambiente nacional ou de colocar em risco a saúde e o bem estar da população.
Bem mais difícil, contudo, seria apontar precisamente o que poderia constituir
o chamado “interesse nacional”, pois cada grupo social ou movimento político
parece ter sua própria definição do que seja um “projeto nacional” estabelecido
em função dos “interesses do país”.
Se conseguirmos, entretanto, reduzir a um denominador
comum as aspirações dos mais diversos setores ou partidos no que se refere ao
interesse público nacional, a expressão mais frequente a ser ouvida seria,
muito provavelmente, a noção de “desenvolvimento”. Este é o leit-motiv e o verdadeiro fulcro da
ideologia nacional, como aliás já tinham constatado, meio século atrás,
filósofos como Álvaro Vieira Pinto e sociólogos como Alberto Guerreiro Ramos.
Nesse contexto, a função mais importante e fundamental da política externa
deveria ser, tão simplesmente, a de coadjuvar o processo de desenvolvimento
econômico e social da nação. Assim, o critério essencial pelo qual deveria
pautar-se a atuação de cada diplomata brasileiro é a promoção do progresso
material e cultural da sociedade brasileira, objetivo de alguma forma
intangível e certamente mais fácil de ser pregado do que efetivado, ou ainda de
ser opercaionalizado na prática. Em outros termos, não existe um critério
unívoco de transposição de “oportunidades externas” em “possibilidades
internas”, para utilizar conceitos caros a Celso Lafer. O que remete o
diplomata à esfera do bom senso, ou então, à situação de ele ter capacidade de
perceber e identificar, na trama por vezes complexa da agenda internacional, o
que exatamente correponde ao interesse nacional e que tipo de inserção externa
seria mais suscetível, preferencialmente a outras alternativas, de conduzir o
Brasil no caminho do desenvolvimento sustentável. Ainda incerto quanto ao
roteiro a ser seguido? Isto é compreensível, mas a solução consiste, tão
simplesmente, em conhecer profundamente o Brasil e ter uma visão clara da
economia política de nosso desenvolvimento social.
2. A
independência nacional
No passado, esse conceito já foi equalizado ao
exercício pleno da soberania, o que tanto tinha a ver com a capacidade de o
estado manter abertas todas as opções possíveis para a demonstração de seu
poder, como com a não dependência de qualquer fonte de abastecimento externa.
Historicamente, nem o primeiro objetivo foi jamais alcançado, nem o segundo,
que é não apenas ilusório como economicamente irracional, apresenta qualquer
viabilidade prática ou finalidade instrumental, do ponto de vista do sistema
produtivo. Em termos estritamente econômicos, o conceito pode ser traduzido
pelo coeficiente de abertura externa, que representa a parte do comércio
exterior na formação do produto. No Brasil, a noção assume ares de imperativo
categórico, a ponto de figurar, na Carta de 1988, como um dos princípios
constitucionais que guiam as relações internacionais do país, como se os
líderes do país – ou, vá lá, os diplomatas – fossem capazes de colocá-la em
risco.
Durante os períodos de fechamento da economia internacional,
como a partir da crise de 1929 e durante a depressão dos anos 1930 e os anos de
guerra, não havia mesmo outra opção senão a chamada self-reliance, ou seja, o recurso a fontes alternativas internas de
suprimento e a ênfase no mercado interno. No atual contexto internacional,
contudo, esse objetivo permanente deveria ser procurado não necessariamente na
direção da independência econômica stricto
sensu, mas sim mediante uma ativa interdependência com os grandes centros
da economia mundial, quando não através de uma internacionalização cada vez
mais intensa da economia brasileira. A globalização torna irrelevante qualquer
diferenciação entre o mercado interno e o externo e, se alguma distinção pode
haver, ela sempre resultaria em destacar a superioridade do mercado externo,
tanto em termos de renda agregada como em função da demanda ampliada e do upgrade tecnológico.
A antiga concepção da independência nacional – entendida
em determinadas épocas como a realização da plena autonomia decisória em
matéria econômica, quase como a conformação de uma espécie de autarquia
produtiva –, nunca contribuiu, de fato, para a verdadeira independência
nacional, mas sim a fragilizou, a ponto de tornar o País menos propenso a
responder aos desafios da competição externa. Apenas uma espécie de substrato
inconsciente da antiga “prevenção contra o estrangeiro” ou a manifestação
delongada de um complexo de inferioridade hoje aparentemente superado – e aos
quais não são alheios certos equívocos de nossas elites políticas – têm impedido
a necessária (e inevitável) internacionalização mais intensa do sistema
produtivo brasileiro ou a afirmação desinibida da presença cultural no
exterior.
Da mesma forma, é carente de sentido a noção de que o
país necessita primeiro afirmar-se economicamente ou de que suas empresas devem
capacitar-se tecnologicamente ou fortalecer-se financeiramente antes de que
possam ser colocadas em prática políticas de abertura econômica e de
liberalização comercial. Em outros termos: globalização sim, mas ainda não,
esperemos mais um pouco para resolver problemas imediatos. Ao contrário: a
multinacionalização das empresas brasileiras ocorrerá no bojo e pari-passu ao processo de
internacionalização da economia brasileira. A globalização pode não ser o
objetivo final, mas representar tão simplesmente um meio de alcançar
determinados objetivos, que não são os da internacionalização em si, mas os do
aumento da eficiência e da capacidade de competição dos agentes econômicos
nacionais.
3. O interesse
nacional e a cooperação internacional
A cooperação internacional costuma ser identificada com
a disponibilidade de “excedentes nacionais”, isto é, o fato de um determinado
país, após sua fase de “acumulação primitiva”, ter deixado de ser recipiendário
de assistência financeira ou técnica externa para tornar-se, ele mesmo,
provedor de ajuda ao desenvolvimento, a exemplo dos membros do Comitê de Ajuda
ao Desenvolvimento da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE). Na verdade, o processo é mais difuso, como indica o fato de o Brasil
ter aderido, em 1960, à Associação Internacional de Desenvolvimento (do Banco
Mundial) na condição de contribuinte líquido, ao mesmo tempo em que recebia,
para o Nordeste por exemplo, ajuda assistencial sob a forma de alimentos ou
outros tipos de doações. Os dois lados da equação “cooperação internacional” se
confundem por vezes, não havendo uma função de substituição que corresponde
exatamente ao processo histórico mediante o qual o sistema econômico de um país
passa, numa determinada etapa, de recipiedário líquido de recursos externos à
condição de exportador de capitais.
O interesse nacional não deve ser concebido como uma
busca egoísta de vantagens exclusivas para o país, no contexto regional ou
internacional, mas como um processo de seleção de benefícios crescentes para a
nação no quadro da cooperação externa, bilateral ou multilateral. A cooperação
internacional, em ambos os sentidos, corresponde ao interesse nacional, tanto
mais quanto ela se desdobrar em projetos de maior intensidade, que a
transcendam, rumo a processos de associação política ou de integração
econômica. Assim, é do interesse do Brasil o desenvolvimento harmônico do maior
número possível de estados-nações, muito embora não esteja ao alcance dos
representantes brasileiros, em foros internacionais ou em países estrangeiros,
a realização de mudanças estruturais ou o atingimento de transformações
econômicas e políticas internas nessas nações, ainda que para fins de
desenvolvimento. Em todo caso, o interesse nacional confunde-se, em grande
medida, com o interesse da comunidade internacional.
A cooperação externa, tanto a recebida quanto aquela
generosamente prestada aos países de menor desenvolvimento relativo, é,
contudo, acessória ao projeto nacional de desenvolvimento econômico e social,
que passa pela auto-capacitação tecnológica e a formação interna de capital
humano. Em qualquer hipótese, quanto mais ajuda o Brasil prestar a países de
menor desenvolvimento relativo, maiores condições ele terá de lograr avanços para
si mesmo nos campos tecnológico, financeiro e comercial.
4. A “graduação”
e o status de país em desenvolvimento
O sistema de comércio internacional do pós-Segunda
Guerra foi construído com base em regras de reciprocidade, ou seja, no
pressuposto de um tratamento igualitário para todos os países, ricos ou pobres,
agrários ou industrializados, avançados ou atrasados. Uma das lutas mais
consistentes empreendidas pela diplomacia econômica brasileira nos anos 50 e 60
foi levada justamente no sentido de buscar um tratamento diferencial, ou seja,
preferencial e mais favorável, para os países em desenvolvimento, o que foi
obtido a partir das reformas do sistema multilateral a partir de 1964, com as
reformas do GATT e a atuação inovadora da Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento, a UNCTAD. Desde então a não-reciprocidade assegura
um certo acesso de produtos desses países aos mercados desenvolvidos – embora
segundo uma relação unilateral, condicionada e assistencialista – bem como a
derrogação ou redução de certas obrigações normativas. O sistema vem sendo
preservado tal qual, praticamente desde essa época, com algumas modificações
menores introduzidas no curso de rodadas de negociações comerciais, geralmente
no sentido de ser efetuada a graduação dos mais industrializados, como o
Brasil, mantendo preferências para os de menor desenvolvimento relativo.
O tratamento preferencial pode trazer algumas vantagens
setoriais, mas não constitui, por si só, elemento impulsor do desenvolvimento
econômico. Nessas condições, a afirmação, sempre reiterada pela diplomacia
brasileira, de nosso status de “país
em desenvolvimento” e a conseqüente busca, ou preservação, das vantagens
inerentes a tal condição constituem, paradoxalmente, os meios mais seguros de perpetuar
o Brasil nesse estado desconfortável – e, em grande medida, falso – de “país em
desenvolvimento”. Em determinadas conjunturas históricas, como a que atravessou
o Brasil na passagem para o século XXI, de transformação estrutural ou de
transição para uma nova etapa de desenvolvimento econômico, uma mudança
auto-assumida de paradigma oferece uma chance única para uma melhor inserção
internacional.
A liberalização comercial unilateral dos anos 90, por
exemplo – como aliás, na mesma linha, a assunção irrestrita do princípio do free trade na Inglaterra vitoriana de um
século e meio atrás –, fez mais para aumentar a competitividade externa do
Brasil no mercados internacionais do que o suposto tratamento favorável
concedido a um certo número de produtos manufaturados por parte de alguns
países desenvolvidos. Da mesma forma, o ajuste fiscal e as reformas econômicas
internas fazem parte da nova inserção internacional do Brasil. A melhor forma
de graduação é aquela auto-assumida, não a imposta pelos parceiros mais
desenvolvidos.
5. A integração
regional e o ingresso em foros restritos
A economia mundial do final do século XX e início do XXI
tem sido caracterizada pelos processos de globalização e de regionalização, que
não são contraditórios entre si ou apresentando-se como alternativas
excludentes. De fato, o que caracteriza a economia mundial da atualidade é o
extraordinário aumento da interdependência entre os países, sejam eles membros
ou não de algum bloco de comércio ou sistema de aliança política. O Brasil
participa de ambos os processos, tendo logrado superar pruridos nacionalistas
para engajar-se resolutamente na globalização e dirigido, de forma
relativamente exitosa em seus primeiros dez anos, a consolidação do Mercosul em
direção de uma união aduaneira.
Os processos de integração regional, possuidores de uma
racionalidade econômica stricto sensu,
devem ser perseguidos como objetivos funcionais ou correlativos ao processo de
desenvolvimento nacional, mas não necessariamente como um fim em si, na medida
em que sua vertente política e institucional deve ser confrontada aos custos
sociais (inclusive financeiros e diplomáticos) de sua realização efetiva. Da
mesma forma, a busca seletiva de adesão a (ou de aceitação em) determinados
clubes seletos – como podem ser o MTCR, o CSNU, a OCDE – devem ser vistos antes
como o resultado do que como a causa
de determinados processos estruturalmente vinculados aos objetivos nacionais
permanentes.
A busca do prestígio pelo prestígio introduz custos
adicionais ao esforço interno de ajuste, custos que devem ser confrontados aos
benefícios esperados ou à capacidade do país em produzir excedentes líquidos
para sua projeção internacional. Em princípio, é o desenvolvimento interno,
econômico e social, da nação que trará o reconhecimento externo, e com ele
determinados convites à assunção de responsabilidades maiores na comunidade
internacional, e não o contrário. O discurso democrático e universalista da
diplomacia brasileira, basicamente orientado para a ação multilateral, deve
guardar coerência com sua forma de atuação nos mais diferentes foros abertos à
nossa presença. O objetivo último de uma política externa “globalizada” e
“integracionista” é o aumento do bem-estar da população brasileira, não o
internacionalismo abstrato, a integração pela integração ou a incorporação em
foros restritos apenas pelo prestígio parente que isso comporta.
6. A imagem
internacional do Brasil
Ela é certamente falha, injusta, incorreta, por vezes
difamatória: o Brasil geralmente aparece na imprensa internacional mais pelo
lado de suas mazelas sociais e ambientais do que pelos aspectos exitosos de seu
desenvolvimento ou pelas realizações materiais e artisticas de seu povo. Muitas
vezes isso se dá por perversidades próprias à nossa estrutura econômica e
social, outras vezes por incompetência dos agentes públicos brasileiros na
apresentação de nossas realidades. O aperfeiçoamento dessa imagem não deveria
contudo ser buscado pelo mero investimento nos meios, isto é, pela promoção de um retrato “mais fiel” do Brasil,
mas por uma ativa política corretiva nas fontes
do problema. Do incômodo de conviver com certas realidades, possivelmente
vexatórias do ponto de vista internacional, nascem determinadas posições
principistas que apenas eludem alguns problemas cruciais de ordem política ou
social; nessa ordem de idéias pode ser colocada a visão jurisdicista que ainda
anima nossa política de direitos humanos.
Um certo investimento em “imagem” vem sendo feito
junto a interlocutores externos, sem que se possa medir muito bem o retorno
efetivo dos recursos engajados nessas formas sutis de propaganda. Alguma
satisfação, pelo menos no plano individual, pode resultar dessas ações, mas
tais recursos estariam certamente melhor empregados se fossem canalizados para
as tarefas de educação e de promoção da cidadania ou da preservação ambiental
no próprio Brasil, em lugar de serem direcionados para o exterior.
7. Avaliação do
instrumento diplomático brasileiro
Depois do “mito do Barão”, a afirmação da “excelência do
Itamaraty” é certamente uma das crenças mais arraigadas em nosso estamento
profissional, tendo obtido um grau razoável de aceitação pública, interna e
externamente. A autocomplacência com nossas supostas boas qualidades pessoais,
ótima formação acadêmica e alto desempenho profissional parece constituir uma
espécie de “pecado original virtuoso”, tendo sido constantemente estimulada por
uma dessas frases grandiloqüentes cuja origem é creditada ao imediato entorno
regional: “El Itamaraty no improvisa” (talvez devesse fazê-lo em determinadas
ocasiões, para não dar a errônea impressão de lentidão ou passividade).
De fato, a preservação das linhas básicas da política
externa brasileira ao longo das décadas deve-se a seu caráter intelectualmente
reflexivo, politicamente cauteloso, operacionalmente coordenado e
essencialmente discreto em termos de mídia. Sem querer desmerecer a qualidade e
a dedicação da burocracia diplomática, sobretudo em confronto com outras
categorias profissionais servindo o Estado, caberia no entanto introduzir uma
nota de caução e de advertência, no sentido de que a autosatisfação e a
glorificação generosa dos atributos de qualquer tipo de casta social são, de um
ponto de vista puramente antropológico, os caminhos mais seguros para uma
crescente endogamia, a degenerescência precoce e o esclerosamento. Os processos
de osmose, em contrapartida, costumam ser regeneradores e vivificadores para
todas as células do organismo, da mesma forma como a mistura racial e a
abertura à alteridade reforçam a capacidade de resposta e de adaptação de todo
e qualquer corpo social.
Todos sabemos, por exemplo, que grande parte do nosso
tempo é mais dedicado à busca de meios
para (tentar) trabalhar – como suporte logístico, pessoal, material,
comunicações, enfim, recursos e insumos de diversas categorias – do que
propriamente voltado para os fins
precípuos para os quais somos pagos pela comunidade: pensar e praticar a
política externa brasileira. Caberia indagar, assim, se alguns procedimentos de
trabalho conseguiriam passar num controle de qualidade um pouco mais severo de
um auditor externo especializado em organização e métodos. Ou, então, se a
continuidade da suposta excelência dos quadros do Itamaraty está vinculada à
estabilidade estatutária da classe diplomática, aparentemente considerada (por
“direito divino”?) um dos corpos permanentes e inamovíveis do Estado.
Eventuais respostas alternativas às perguntas acima,
talvez politicamente incorretas, poderiam introduzir um pouco mais de modéstia
em nossa autoavaliação e promover uma busca constante de aperfeiçoamento no
modo como funciona esta instituição repleta de jovens idealistas. Como
“ideólogos” da diplomacia, nos cabe uma certa dose de responsabilidade na
permanente remise en cause da velha
ordem em que somos chamados a atuar.
Paulo
Roberto de Almeida (http://pralmeida.tripod.com)
é
doutor em ciências sociais, mestre em planejamento econômico e autor de
Formação da Diplomacia Econômica no Brasil
(São Paulo: Senac, 2001)
As opiniões expressas no presente
texto são exclusivamente as de seu autor e não correspondem a posições ou
políticas do Ministério das Relações Exteriores ou do Governo brasileiro.
[Washington, 813: 2 outubro 2001]
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