Imperial Regulamento do Asylo dos Diplomatas da Corte
(Cousas Diplomáticas nº 5)
Paulo Roberto de
Almeida
Nota Liminar: No curso de minhas atentas pesquisas sobre a história
pregressa desse nosso país sui-generis, tenho encontrado vários textos
interessantes, muitos outros simplesmente curiosos e alguns francamente
hilariantes, que em todo caso me fizeram refletir um pouco sobre a verdadeira
natureza do processo histórico.
No
confronto de alguns deles, fui levado inclusive a estabelecer perigosas
ilações, ou melhor, arriscadas aproximações com situações presentes ou passadas
que afetam alguns de nós, diplomatas submetidos às agruras do salário em
Brasília. Quem, em santa consciência, não aspirou, em determinado momento de
sua carreira, por alguma caixa de socorro mútuo, um pecúlio geral, uma
irmandade dos desvalidos, com algum lugar, enfim, onde refugiar-se das
dificuldades correntes ?
Pois
bem, saibam meus distintos colegas, que nos tempos saudosos da monarquia,
algumas categorias profissionais dispunham, senão de uma existência digna, pelo
menos de alguma ajuda em caso de necessidade, como por exemplo, a profissão tão
disseminada de mendigo. O mendigo era, guardadas as devidas proporções, um
diplomata da sarjeta. Bem, com isso não quero dizer que o diplomata seja
necessariamente um mendigo da Corte. Cada um que tire sua conclusão.
À
diferença de hoje em dia, qualquer má surpresa da vida e o faustoso mendigo
imperial podia recorrer aos bons serviços do “Asylo de Mendicidade da Corte”,
absolutamente organizado e dispondo das mais rigorosas regras de higiene,
vestuário e dieta. O Regulamento abaixo, de 6 de setembro de 1884, velava pelo funcionamento
desse “asylo”, podendo servir, de forma involuntária talvez, para outras
iniciativas em nossa tão moderna quanto precária época.
Minha
atual leitura orientada, provavelmente maldosa, consistiu, apenas e tão
somente, única e exclusivamente, em substituir, na transcrição resumida, a
palavra “mendigos” por “diplomatas”. Tudo o mais se encaixa. Ou não ?
(Atenção Revisor: não mude a
saborosa “graphia” da época)
Asylo de Mendicidade (dos Diplomatas) da Corte
Capitulo I: Da
Instituição
Art. 1° - O Asylo dos Diplomatas
é destinado aos diplomatas de ambos
os sexos e receberá:
- os que, por seu estado
physico ou idade avançada, não podendo pelo trabalho prover às primeiras
necessidades da vida, tiverem o habito de esmolar;
- os que solicitarem a
entrada, provando sua absoluta indigencia;
- os idiotas, imbecis e
alienados que não forem recebidos no Hospicio Pedro II.
Art. 3° - Não serão admitidos no Asylo os diplomatas atacados de molestias contagiosas, nem aqueles que por
seu estado de saude devam ser recolhidos aos hospitaes.
Art. 4° - Haverá separação de classes, conforme os sexos, sendo ellas
ainda subdivididas nas seguintes:
- de diplomatas válidos;
- de diplomatas inválidos;
- de imbecis, idiotas e
alienados.
Capitulo II: Da Entrada, Matricula e Sahida dos Diplomatas
Art. 6° - Todo diplomata que
entrar para o Asylo, forçada ou voluntariamente, será inscripto em livro
proprio, um para cada sexo.
Art. 7° - Despirá o fato que levar e vestirá o uniforme da Casa, depois
de cortar o cabelo, aparar as unhas, barbear-se e tomar um banho geral, tepido
ou frio, a juizo do medico.
Art. 10° - Os diplomatas só
poderão sahir da Casa, precedendo ordem da autoridade a cuja disposição se
acharem:
- quando readquiram a
possibilidade de trabalhar fora do estabelecimento, ou pela obtenção de meios
ou proteção de pessoa idonea possam viver sem mendigar;
- quando por qualquer
delito tenham de passar à disposição de autoridade criminal; voltando porém ao
Asylo depois de cumprida a pena.
Art. 11 - A pessoa que requerer a sahida do diplomata, para tel-o sob sua protecção, assignará termo em seu
livro, que para este fim haverá no Asylo, obrigando-se a tratal-o bem e
pagar-lhe um salario correspondente.
Art. 12 - Todos os diplomatas
tomarão pelo menos dous banhos geraes por semana e cortarão o cabelo, a barba e
as unhas, pelo menos, uma vez por mez.
Art. 13 - Os diplomatas terão
tres calças, tres camisas e tres blusas de algodão azul trançado, uma camisa de
lã para os dias frios e humidos, um par de sapatos grossos, dous lenços de
chita e dous pares de meias.
As diplomatas terão tres vestidos de algodão azul trançado, tres
camisas e tres saias de algodão branco trançado, um chale ou paletot de lã para
os dias frios...
Art. 15 - Os diplomatas
mudarão de roupa às quintas-feiras e domingos, depois do banho geral, e todas
as vezes que for necesssario.
Art. 16 - O trabalho é obrigatorio no Asylo e portanto nenhum diplomata póde recusar-se ao que lhe for
determinado, segundo a sua aptidão, forças e estado de saude.
Capitulo III: Dos Usos Ordinarios dos Diplomatas
Art. 19 - Os diplomatas se
deitarão às 8 horas no inverno e às 9 horas no verão, depois de recitarem a
oração da noite.
Art. 20 - Erguer-se-hão às 5 horas da manhã no verão e às 6 no inverno,
arrumarão a cama e depois de se lavarem, segundo as prescripções estabelecidas;
se pentearão e vestirão para irem ao almoço.
Art. 23 - As dietas serão distribuidas segundo a tabella n. 3 [A
“tabella 3” previa: canja adoçada, caldo de galinha, mingão, caldo de galinha,
chá, matte e pão, caldo de galinha, carne assada ou cozida com batatas e pirão,
bifes de grelha ou ensopados, caldo de galinha, mas “o medico,
extraordinariamente, poderá conceder 60 grammas de vinho generoso, uma ou duas
laranjas, um ou dois limões azedos, 60 grammas de marmelada ou goiabada,
biscoutos, etc...”].
Art. 25 - As horas de visita aos diplomatas
são das 10 ao meio-dia e das 2 às 5 horas da tarde.
Capitulo IV: Da Administração
Art. 26 - No Asylo dos Diplomatas
haverá: um director, um capellão, um medico, um porteiro, um escrevente, um
enfermeiro, uma enfermeira, um servente ordinario e um guarda de material.
Art. 27 - O augmento do numero de enfermeiros e serventes depende de
approvação do Governo. Para esses logares, serão escolhidos os diplomatas asylados cujo procedimento
garanta o bom desempenho das funcções.
Art. 34 - O director deverá propor à autoridade competente a sahida dos
diplomatas que não se achem em
condições de continuar no Asylo.
Capitulo V: Do Director
Art. 36 - Ao director compete:
- remetter à Secretaria
da Justiça um mappa da distribuição geral das rações; uma relação dos diplomatas existentes, dos que entraram
aos hospitaes de Misericordia, Socorro e Saude, dos que tiveram alta ou
falleceram;
- visitar uma vez por dia
os salões de trabalho, afim de observar os procedimentos dos diplomatas, attender às suas reclamações
e dar-lhes conselhos;
- aplicar aos diplomatas as penas disciplinares
marcadas neste Regulamento.
Capitulo VII: Do Capellão
Art. 40 - Ao capellão compete:
- administrar os socorros
espirituaes aos diplomatas que os
pedirem.
Capitulo IX: Do Porteiro
Art. 42 - Ao porteiro compete:
- tocar a sineta às horas
de abrir a portaria, afim de se levantarem os diplomatas;
- vigiar para que, na
occasião das visitas aos diplomatas, não
se introduzam bebidas alcoolicas ou quaesquer outros objectos que possam ser
prejudiciaes à ordem e disciplina do Asylo.
Capitulo XI: Do Cozinheiro e Serventes
Art. 44 - Ao cozinheiro compete:
- ter cuidado na
preparação das comidas para evitar justas reclamações da parte dos diplomatas asylados.
Art. 45: Aos serventes incumbe:
- dirigirem nos banhos
geraes os diplomatas asylados;
- vestirem os defuntos e
levarem o caixão para o carro;
- tratarem com respeito
os diplomatas asylados.
Capitulo XIII: Do Peculio
Art. 47 - O peculio será formado pelo producto do trabalho dos diplomatas.
- dous terços desse
peculio e o rendimento do patrimonio do Asylo entrarão para a Caixa Geral;
- o terço [restante] do
peculio será dividido em duas partes, uma das quaes será mensalmente entregue
aos diplomatas asylados.
Capitulo XIV: Da Associação Protectora
Art. 48 - Poderá ser instituida uma associação de homens e senhoras,
com approvação do Governo, tendo por fim concorrer para a prosperidade do Asylo
dos diplomatas e angariar donativos
de toda a especie.
- os donativos em
dinheiro serão convertidos em apolices da divida publica;
- os donativos de generos
alimenticios serão dados logo para o consumo dos diplomatas asylados;
- os de vestuario,
calçado, colchões, travesseiros, cobertores e roupas de cama entrarão logo no
uso dos diplomatas asylados, si estes
tiverem necessidade immediata delles.
Capitulo XV: Das Penas e Recompensas
Art. 49 - São expressamente prohibidos os castigos corporaes, ficando
somente admittidas, para punição das faltas e infracções commettidas pelos diplomatas asylados, as penas
disciplinares seguintes, a prudente arbitrio do director:
- augmento do trabalho
por tarefa, segundo as forças physicas do diplomata;
- restricção alimentaria;
- jejum de pão e agua de
até tres dias, com audiência do medico;
- prisão cellular até
oito dias
- suspensão do passeio
por 15 dias a tres mezes.
Art. 50 - O director poderá dar licença para sahirem do Asylo, por
algumas horas, sós ou acompanhados de pessoas de confiança, aos diplomatas asylados que tiverem bom
comportamento.
Capitulo XVI: Disposições Geraes
Art. 51 - Além dos empregados do Asylo, das autoridades policiaes e
judiciarias, dos Ministros de Estado e das pessoas commissionadas pelo Ministro
da Justiça, ninguém poderá penetrar no interior do Asylo sem permissão do
director.
Art. 53 - É vedado aos empregados negociar por qualquer forma com os diplomatas asylados.
Art. 54 - É prohibida a entrada de bebidas alcoolicas, e todo o
qualquer jogo dentro do Asylo.
Art. 61 - A venda do producto do trabalho dos diplomatas asylados será feita, com approvação do Governo, pelo
modo que parecer mais economico ao director, o qual prestrará contas
semestralmente à Secretaria da Justiça.
Art. 63 - Ficam revogadas as disposições em contrario.
Palacio do Rio de
Janeiro em 6 de setembro de 1884
aprovado pelo
Conselheiro de Sua Majestade, o Imperador D. Pedro II,
o Ministro de Estado
dos Negócios da Justiça
Apud Coleção das Leis do Império do Brasil de
1884
(Rio de Janeiro, Typographia Nacional, 1885), pp.
432-446: Decreto n° 9274.
Moral: Toda e qualquer semelhança, com fatos, personagens
ou situações passadas, presentes ou futuras, nada mais será senão uma
involuntária coincidência.
Pela transcrição (maldosa), vosso
escriba:
Paulo Roberto de Almeida
Nota conclusiva: A adaptação do regulamento acima foi efetuado em
16 de agosto de 1994, quando o autor se encontrava “asylado” temporariamente em
Paris, e o texto foi encaminhado ao Boletim
ADB, logo depois. Ele não foi contudo publicado, provavelmente em função de
sua extensão, crucial quando se trata de suporte impresso, distribuído a
assinantes, permanecendo rigorosamente inédito desde então. O advento dos
boletins eletrônicos em muito vem facilitar a publicação de originais, razão
pela qual resolvi “desenterrá-lo” e incluí-lo na série “Cousas Diplomáticas”.
[1ª: Paris, 448,
16/08/1994]
[2ª: Washington, 840,
16/12/2001]
Publicado nos boletins eletrônicos:
revista Espaço Acadêmico (Maringá:
UEM, Ano I, n. 9, fevereiro de 2002, link: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/35904/21028)
e no Observatório da
Imprensa (http://www.observatoriodaimprensa.com.br/artigos/spe170720021.htm;
nº 181, 17.7.02, seção “Speculum”).
Relação de Publicados nºs 303 e 337.
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