Em agosto de 2003, estando eu mais uma vez como Encarregado de Negócios ad interim em Washington, recebi despacho telegráfico da SERE cobrando resposta a uma circular telegráfica solicitando comentários a discurso do chanceler do lulopetismo (ele, visivelmente, não só admirava seus próprios textos, talvez escritos por colaboradores, como fazia questão que todos os diplomatas lessem e comentassem), o que tive, talvez em meu próprio detrimento, de comentar, o que fiz abundantemente, numa proporção ainda maior do que o próprio texto original. Esses comentários nunca foram publicados em sua versão original, o que faço agora, para registrar que esse trabalho (n. 1092), pode ter contribuído para “agravar” o meu caso junto à nova administração, pois nele está refletida uma concepção bastante diferente daquele mantida pelos companheiros.
1092. “Governança Democrática: comentários da Embaixada em Washington”, Washington, 6 agosto 2003, 10 p. Argumentos e comentários oferecidos a discurso do Ministro de Estado das Relações Exteriores por ocasião da XXXIII Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile em 9/06/2003, sobre o tema geral da “Governabilidade Democrática nas Américas”. Texto inédito nesse formato.
Transcrevo primeiro o despacho telegráfico de cobrança de uma resposta da embaixada em Washington, depois o próprio discurso do ministro, seguido, finalmente, de meus comentários, como sempre prolixos e abundantes.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/09/2018
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(Expedientes oficiais)
Da SERE em 01/08/2003
Circular Telegráfica para Brasemb Washington
CARAT=Ostensivo
PRIOR=Normal
DISTR=SPD/DEA
DESCR=PEMU-OEA
REF/ADIT=CIT 46364
CATEG=MG
//
OEA. XXXIII Assembleia Geral.
//
Nr. 46740/553
Muito agradeceria o obséquio de uma resposta à Circtel de referência, pela qual solicitam-se os comentários de Vossa Excelência sobre os conceitos abordados na intervenção do Senhor Ministro de Estado perante a XXXIII Assembleia-Geral da Organização dos Estados Americanos.
EXTERIORES
PAC
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Da SERE em 20/06/2003
Circular Telegráfica para Brasemb Washington
CARAT=Ostensivo
PRIOR=Normal
DISTR=SPD/DEA
DESCR=PEMU-OEA
CATEG=MG
//
OEA. XXXIII Assembleia Geral.
//
Nr. 46364/451
RESUMO=
Encontra-se disponível na internet a intervenção do
MERE perante a XXXIII Assembléia Geral da OEA.
O Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores realizou em 9 de junho corrente intervenção perante a XXXIII Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos. A íntegra do texto já se encontra disponível na página de Discursos, Artigos e Entrevistas do site www. mre.gov.br na internet. Em sua intervenção, o Senhor Ministro de Estado aborda questões relacionadas à governabilidade democrática nas esferas nacional e internacional, às condições para a sua plena consecução e ao papel a ser desempenhado pelo Estado nesse contexto.
2.Muito agradeceria os comentários de Vossa Excelência sobre os conceitos abordados na intervenção, à luz das peculiaridades desse país.
EXTERIORES
APG
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Ministro de Estado das Relações Exteriores
Discurso pronunciado pelo Ministro das Relações Exteriores, Embaixador Celso Amorim, durante a XXXIII Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos - "Governabilidade Democrática nas Américas"
Desejo inicialmente agradecer à Chanceler Soledad Alvear a hospitalidade. É um prazer voltar ao Chile, pela primeira vez desde o início do Governo Lula. Gostaria também de expressar reconhecimento pelo trabalho realizado pelo Secretário Geral da OEA, César Gaviria, o qual tem sido inestimável ao longo de seus anos à frente da Organização. Quero referir-me, igualmente, às palavras inspiradoras do Presidente Lagos ontem à noite, durante a cerimônia de abertura da presente sessão.
A governabilidade democrática é a capacidade de exercício eficaz do poder em um quadro político de liberdade e pluralismo, no marco do Estado de Direito.
Mas além de apoiar-se na vontade popular, é necessário que os Governos adotem políticas públicas que promovam valores de solidariedade e de justiça social, que sustentem um projeto nacional sólido, conducente à diminuição das desigualdades e da exclusão social.
O Presidente Luiz Inácio Lula da Silva ressaltou em recente discurso que a "questão social é a grande fronteira a ser defendida e ampliada no mundo globalizado. Quem sabe esteja aí a missão superior do Estado nacional do século XXI."
A democracia não se limita apenas à representação dos interesses da maioria, mas se expressa também no respeito aos direitos das minorias. Neste sentido, é fundamental buscar assegurar igualdade de oportunidade a todos os grupos sociais, que têm sofrido discriminação, ao longo da história. Não basta que a lei proteja os direitos das mulheres, dos negros e dos indígenas. Deve-se procurar, ativamente, sua maior inclusão social. No Brasil, temos orgulho de nossa composição multiétnica. Mas sabemos que ainda falta muito para assegurar igualdade de oportunidade para as minorias, que são, na verdade, em alguns casos, maiorias numéricas, como as mulheres e os negros.
O preconceito e a discriminação devem ser enfrentados com determinação no continente. Por esta razão, o Brasil apresentou, durante esta sessão da Assembleia Geral, projeto de resolução sobre o racismo e toda forma de discriminação e intolerância, cujo objetivo é a criação de uma Convenção interamericana sobre o tema.
Avanços importantes foram registrados no campo da democracia em nosso continente. A era dos regimes de exceção chegou ao fim. No esteio dessa transformação, as leis de muitos países incorporaram importantes normas de direitos humanos e mecanismos de proteção ao indivíduo e a grupos minoritários. Foram criadas ou consolidadas instituições como ouvidorias, comissões e procuradorias de direitos humanos. Entidades da sociedade civil passaram a oferecer ao cidadão mais recursos diante de eventuais excessos do Estado.
Isso não significa que podemos estar desatentos aos esforços para manter e preservar a democracia. Tampouco podemos descuidar da administração do Estado. Nossas nações ainda enfrentam desafios que, por vezes, suscitam questionamentos ao Estado por sua aparente falta de capacidade para resolver os problemas que mais afligem a população, como o bem-estar social e a segurança dos cidadãos. A inaptidão do Estado em enfrentar tais questões desgasta os Governos e corrói a confiança dos cidadãos, sem a qual não há governabilidade possível.
O Presidente Lula tem rebatido duas idéias que vêm sendo defendidas nas últimas décadas como se fossem verdades incontestáveis e que já revelaram sua inconsistência: a primeira é que o Estado nacional deve ser mínimo e, em conseqüência, fraco; a segunda idéia é a de que o mercado resolveria automaticamente todos os problemas da economia e da sociedade. O mercado é, sem dúvida, uma alavanca necessária na vida econômica e devemos assegurar que funcione de forma livre de práticas distorcivas que inibam a competição em detrimento da sociedade. Mas sabemos que há valores que não podem e não devem estar subordinados à lógica mercantil, como o direito de todos a um modo de vida digno, o direito a ter o que comer, o direito à saúde, o direito a ter um emprego decente e uma educação de qualidade e o direito à participação na vida cultural e política, entre outros.
É importante modernizar o Estado, para que esteja apto a lidar com as transformações atuais. Mas é ainda mais fundamental que a ação do Estado se paute por critérios democráticos, em que estejam tratados com prioridade os campos de atuação em que se concentram as maiores necessidades sociais. Tampouco pode o Estado descuidar de atividades que nem sempre o mercado atende satisfatoriamente, como o desenvolvimento tecnológico e o meio ambiente. A construção, sempre que possível, de parcerias com setores da sociedade civil é positiva, reforçando as decisões governamentais e facilitando sua implementação.
A democracia pressupõe também o combate à corrupção, em todas as suas formas e em todos os países, sejam eles desenvolvidos ou em desenvolvimento. Onde há corrupção, não há governabilidade. Nossa luta contra a corrupção, em todos os níveis de governo, deve ser implacável. Entretanto, não podemos desconhecer que, no mundo de hoje, a governabilidade do setor privado é igualmente importante. Escândalos financeiros e de má administração de empresas, sobretudo as de grande porte, provocam impactos que vão muito além de seus dirigentes e acionistas, atingindo consumidores, pequenos investidores e a sociedade como um todo. Os efeitos danosos dessas práticas questionáveis se espraiam pelas bolsas de valores das economias centrais e repercutem nas economias dos países em desenvolvimento, pelo aumento da chamada "aversão ao risco". Assim, ao mesmo tempo em que melhoramos a qualidade moral de nossos governos, devemos propiciar que se desenvolva a ética corporativa e o sentido da responsabilidade social no setor privado.
A estabilidade democrática e o desenvolvimento econômico-social são fenômenos que se reforçam mutuamente. As democracias requerem políticas sólidas, que assegurem um desenvolvimento econômico integral da sociedade. A experiência política dos países americanos demonstra que a governabilidade democrática se fortalece em um ambiente internacional de paz e de segurança. Por outro lado, não podemos ter a ilusão de que seremos capazes de preservar a governabilidade em nosso hemisfério sem um contexto de governabilidade em nível global, o qual só pode ser assegurado por meio do respeito pleno às instâncias multilaterais, a começar pelas Nações Unidas.
Como afirmou o Presidente Lula em Evian, "o multilateralismo representa, no plano das relações internacionais, um avanço comparável ao da democracia em termos nacionais. Valorizá-lo é obrigação de toda nação comprometida com o progresso da civilização, independentemente de sua dimensão econômica e de seu peso político e militar". As ações governamentais decorrentes do processo democrático são duradouras porque se assentam em base legítima. Da mesma forma, decisões emanadas de foros multilaterais gozam de maior apoio e, por isso, são mais efetivas no longo prazo.
A governabilidade democrática em cada país não prescinde da solidariedade e de um ambiente internacional minimamente favorável. Os países em desenvolvimento, inclusive os da nossa região, necessitam de regras de comércio internacional justas, que garantam acesso de seus produtos aos mercados dos países desenvolvidos e não criem constrangimentos insuperáveis à necessidade de promoverem políticas industriais, tecnológicas e de desenvolvimento social, entre outras.
Negociações comerciais complexas, como as em que nossos países estão envolvidos (e que vão muito além do que se costumava entender por Acordo de Livre Comércio) terão efeitos profundos e duradouros no nosso ordenamento socioeconômico. Daí o compromisso do Governo do Presidente Lula de promover a consulta aos diversos setores da sociedade, o que inclui naturalmente os empresários, mas também sindicatos de trabalhadores, associações profissionais, entidades da sociedade civil e, sobretudo, o Congresso Nacional. Isso também é governabilidade democrática.
Igualmente, temos que nos valer de imaginação e ousadia, a fim de encontrarmos soluções para a escassez de recursos necessários ao combate à fome e à pobreza extrema, e aos investimentos em infraestrutura, essenciais ao desenvolvimento e à integração. No recente encontro de Evian, o Presidente Lula sugeriu a criação de um fundo mundial contra a fome. O Presidente mencionou duas hipóteses de financiamento. Uma delas seria a taxação do comércio internacional de armas. Outra possibilidade seria criar mecanismos para estimular que os países ricos reinvistam nesse fundo percentagem dos juros pagos pelos países devedores. Os Chanceleres do Grupo do Rio igualmente discutiram, em Cusco, iniciativa no sentido de estabelecer mecanismos financeiros inovadores com o fim de financiar projetos de desenvolvimento da infra-estrutura.
Tornamo-nos mais conscientes de que a consolidação da democracia é uma tarefa permanente de todos os povos. Sabemos que as alternativas ao Estado de Direito serão sempre o medo e a violência. Devemos reconhecer a necessidade de promover e defender ações que se apóiam na liberdade, na paz e na justiça social.
A construção da democracia baseia-se na segurança de que a todos será oferecida a oportunidade de um mundo melhor, independentemente de raça, gênero ou origem social ou étnica. A trajetória pessoal e política do Presidente Lula é a prova de que o sonho e a legítima aspiração por melhores condições de vida podem se concretizar, por meio do diálogo, da convicção e da persistência, sem o recurso à violência e não obstante as adversidades. Enquanto houver pessoas privadas de seus direitos fundamentais, a democracia não estará sendo exercida em sua forma plena. Não é possível continuar convivendo com a exclusão social de centenas de milhões de homens, mulheres e crianças no nosso continente. Nas palavras do Presidente Lula, "a fome não pode esperar. É preciso enfrentá-la com medidas emergenciais e estruturais. Se todos assumirmos nossas responsabilidades, criaremos um ambiente de maior igualdade e de oportunidade para todos". Somente assim asseguraremos a verdadeira governabilidade democrática.
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Governança Democrática: comentários da Embaixada em Washington
Argumentos e comentários oferecidos
a discurso do Senhor Ministro de Estado das Relações Exteriores
pela Embaixada em Washington
(Paulo Roberto de Almeida)
O discurso pronunciado por V.Excia, na XXXIII Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos, realizada em Santiago do Chile em 9 de junho de 2003, sobre o tema geral da “Governabilidade Democrática nas Américas”, contém, simultaneamente, elementos conceituais (e portanto balizadores de uma certa concepção do mundo), argumentos empíricos sobre a materialização dessa ideia no hemisfério e princípios definidores de algumas diretrizes políticas e diplomáticas para a atuação do Brasil no cenário internacional. Pretendo tratar de forma integrada desses três conjuntos de questões, enfocando-os da perspectiva deste posto, como solicitado na circular telegráfica nº 46364/451.
2. O sistema democrático, na tradição clássica, era de fato caracterizado pela dimensão puramente política, ou institucional, do jogo político, em sistemas nacionais que, seja pelo exercício do voto censitário, seja por diferentes mecanismos de restrição das franquias democráticas, tendiam a excluir uma grande maioria da população não só dos instrumentos de representação mas igualmente dos mecanismos decisionais. A democratização social e política, em escala mundial, ocorrida no decurso do século XX, em especial a vaga de redemocratização registrada na América Latina em suas duas últimas décadas, trouxeram, como complemento das instâncias puramente políticas de governabilidade, a necessidade de serem implementadas políticas setoriais e globais de solidariedade e de justiça social, como justamente observado por V.Excia na abertura do discurso de Santiago. A diminuição das desigualdades e da exclusão social pode ocorrer, mais raramente, mediante convulsões sociais – como foi o caso do México, cerca de cem anos atrás – mas seria bem melhor implementada se resultando de um certo consenso nacional em torno de valores compartilhados (talvez como os dos founding fathersdeste país), como pode ser o caso de processos transformistas conduzidos por elites esclarecidas ou, de forma geralmente mais desejável, pela via de um projeto nacional sólido, como também observado nesse discurso.
3. A experiência histórica brasileira, nos quase dois séculos de Estado nacional desde a Independência constitui, infelizmente, uma demonstração de ausência total de transformação pelo consenso, de impossibilidade estrutural de se conjugarem forças sociais para uma mudança de tipo radical, assim como de cabal inépcia das elites para se lançarem em um processo transformista pelo alto, capaz de conjugar conservação do poder político e incorporação social e econômica das camadas ditas subalternas. Foi preciso de fato aguardar a vitória democrática de um partido genuinamente de massas e identificado com essas mesmas camadas para que fosse possível começar a pensar-se na formulação de um projeto nacional de promoção e de inclusão social. É minha interpretação que esse projeto nunca foi explicitado de maneira clara nos EUA, país no qual é a sociedade que exerce a democracia, muitas vezes contra o Estado, em um processo de Nation buildingque carece de um centro organizador claramente definido, ao contrário do que ocorre no caso brasileiro, onde a anomia societal conduziu à hiperextensão e centralização estatais, e daí aos projetos de construção nacional formulados de maneira recorrente ao longo da história.
4. É minha interpretação, igualmente, que o atual projeto brasileiro não se encontra ainda acabado, uma vez que o que resultou vencedor no escrutínio de outubro de 2002 vem sendo aperfeiçoado pelo teste da governança prática, que deve necessariamente aliar demandas ilimitadas por parte da sociedade – resultado de décadas, senão de séculos de políticas excludentes – com as naturais limitações físicas de recursos para o exercício do processo transformador acima assinalado. Sem dúvida que a grande fronteira ainda a ser conquistada no mundo moderno é a das barreiras internas à inclusão social, que constituem ao mesmo tempo a fonte principal e a alavanca política das demais barreiras e divergências existentes no sistema internacional. A questão social é de fato e de forma dramática o fator singular mais importante que diferencia o Brasil – país satisfatoriamente industrializado e de certa forma capaz de acompanhar o progresso tecnológico da humanidade – do resto dos países medianamente desenvolvidos (aqueles de industrialização relativamente tardia, coincidente com a segunda revolução industrial) e, a fortiori, dos países mais avançados, para os quais simplesmente não existe um problema de desenvolvimento, mas tão simplesmente o da administração das necessidades “supérfluas”.
5. Em contrapartida, como bem detectado de forma instintiva pela liderança natural representada pelo presidente Lula, o Brasil possui um grande problema de desenvolvimento, que é também o leit-motiv de nossa diplomacia desde meados do século XX, pelo menos. Esse problema não se limita a assegurar progresso social e inclusão econômica de forma ampla e generalizada, mas também deve corrigir distorções ainda mais gritantes de nossa iníqua estrutura social, que se traduz na dupla exclusão sofrida pelas minorias étnicas (negra e indígena) e pela componente feminina da população brasileira, como também identificado corretamente no referido discurso. Essa exclusão muitas vezes se desdobra na prática intolerável do racismo, que deve ser combatido não apenas com todo o rigor da lei, mas igualmente pelo exemplo, com manifestações de tolerância e de inclusividade étnica, como vem justamente sendo demonstrado pela experiência histórica do Brasil. Em contrapartida, os EUA não têm, minimamente, um problema de desenvolvimento social, mas tão somente um de administração de recursos alocados pela sociedade, de modo amplamente democrático diga-se de passagem, para usos alternativos definidos correntemente na teoria econômica, inclusive de forma irracional e perdulária, como podem ser alguns programas militares ou de subvenções setoriais. Os EUA também exibem, em contraste com a experiência brasileira de mistura étnica, um verdadeiro apartheid racial, que se manifesta na existência de uma cultura negra – ideologicamente chamada de afro-americana – totalmente estranha, e de certa forma oposta, às demais correntes étnicas do melting-pot.
6. O Brasil, como também referido no discurso de V.Excia., ofereceu ao continente, no decurso do último processo eleitoral, um exemplo de transição democrática e de estabilidade institucional que há muito faziam falta na região, não obstante a amplitude da mudança de orientação política de fato registrada por meio das urnas e sobretudo na consciência cidadã. Isso significou que a maioria absoluta da população aderiu a um conjunto de mensagens que visavam não apenas valorizar a participação política e social de todos os cidadãos no processo de mudança “societal”, como também buscavam impulsionar uma série de políticas tendentes retomar o projeto nacional indutor de desenvolvimento que vinha sendo sugerido pelo partido que finalmente converteu sua maioria sociológica em maioria congressual. Assim, se parece razoável afirmar que a democracia já não mais constitui um “problema” no Brasil, tendo sido superadas as amarras que a faziam restrita e canhestra até um passado ainda bem recente, parece claro, também, que persiste um grave problema de inclusão social e de desenvolvimento econômico, revelado, de modo amplo, nas carências terríveis que afligem grande parte da população brasileira. Esse problema não é somente do Estado, mas da Nação, pois que o Estado detém apenas instrumentos administrativos para selecionar políticas setoriais e nacionais indutoras de progresso técnico ou tecnológico, mas não consegue, por si só, mudar a face de todo o País, tarefa acima de suas forças (sobremodo restritas num país imenso e ainda parcialmente indevassado como o Brasil).
7. Por isso mesmo, me parecem totalmente pertinentes os argumentos do presidente Lula quanto à inconsistência da ideia de Estado mínimo e à ineficácia dos mecanismos de mercado para corrigir as mais graves distorções sociais e econômicas existentes na sociedade. Estado ativo e sistema político aberto à participação ampla da cidadania foram aliás os fatores de progresso social nos países modernamente democráticos e economicamente avançados, ainda que em alguns deles – aqueles que justamente não conheceram revoluções burguesas, como evidenciado na obra de um antigo intelectual do PT, como o sociólogo Florestan Fernandes – o processo de industrialização possa ter sido feito, no passado, ao abrigo de regimes autoritários e socialmente excludentes (como de resto ocorreu também no Brasil). Em nenhuma dessas experiências históricas bem sucedidas em termos de inclusão das camadas subalternas, a correção das mais graves iniquidades sociais se fez pela via do mercado, mas pela da promoção educacional e pela redistribuição fiscal induzida por políticas tributárias progressivas aplicadas em bases nacionais. Os EUA não conheceram redistribuição tributária antes de já iniciado o século XX – ainda no final do século XIX a Suprema Corte declarava inconstitucional o imposto de renda individual – mas, em contrapartida, tiveram estruturas educacionais contemporaneamente à própria formação da sociedade nacional.
8. Os campos do desenvolvimento tecnológico e do meio ambiente, identificados no discurso de V.Excia. como exemplos relativamente indiferentes à ação “cega” do mercado, me parecem, efetivamente, constituir aqueles nos quais externalidades negativas podem dificultar o processo de catch-upe de correção de perdas globais que penalizam a sociedade como um todo. Eles são, portanto, suscetíveis de receberem sinalizações adequadas por parte do poder público como forma de corrigir aqueles fatores de “cumulatividade negativa” que penalizam o processo brasileiro de desenvolvimento, já identificados em obras de economia política como as de Celso Furtado. O correto funcionamento da máquina estatal, com uma justiça eficiente e a ausência de mecanismos de rent-seekinge de redistribuição pelo alto, como muitas vezes ocorreu no Brasil – com elites mais ou menos predatórias do patrimônio público – também me parecem condições essenciais para o progresso e a inclusão sociais. Mesmo a corrupção que ocorre inteiramente no setor privado é suscetível de ser coibida pelo Estado, pois que podendo dilapidar os recursos de pequenos poupadores individuais, confiantes no funcionamento adequado dos mercados de valores e dos fundos de investimentos. Também aqui o exemplo americano oferece uma experiência positiva, tanto pelo lado da sustentação estatal de programas de pesquisa científica, como pela existência de uma justiça eficiente, rápida e relativamente transparente. Os sistemas constitucional e federativo, porém, funcionam de modo muito diverso nos EUA e no Brasil, a despeito de similaridades superficiais.
9. Todos esses elementos – que se identificam com os princípios da chamada “good governance” e da “accountability”, para usar dois conceitos em voga neste país – podem ser transpostos no plano internacional, cenário no qual se observam iniquidades e divergências de níveis de vida tão ou mais brutais do que aqueles existentes no interior de sociedades de outra forma relativamente industrializadas, como o próprio Brasil. As duas últimas décadas do século XX assistiram ao crescimento das divergências sociais e das disparidades de renda, dentro dos e entre os países, aprofundando tendências que se encontravam latentes desde a segunda revolução industrial. Essa situação conspira contra a democracia dentro dos países e na própria comunidade internacional, como revelado, em outra dimensão, pela ascensão aparentemente irresistível da potência imperial ao píncaro do poder e da supremacia tecnológica na atualidade e as deformações daí decorrentes para uma governança global legitimamente democrática.
10. Tenho dúvidas, porém, de que as divergências socioeconômicas e os déficits persistentes de democracia no mundo, possam ser corrigidos pela “ação natural” do sistema multilateral – que não pretendo comparar, mecanicamente, às forças do mercado –, em virtude de uma contradição que vejo como decisiva e fundamental na forma de representação de uma e outra instância, a nacional e a internacional. Na primeira, pode-se efetivamente assegurar a validade e a legitimidade do princípio “uma voz, um voto”, ao passo que na segunda, pela natural assimetria do corpo representativo, a proporcionalidade “real” se encontra totalmente deformada pela observância formal do princípio vestfaliano da soberania absoluta das nações. Dito em uma palavra, Timor Leste e China possuem cada qual um voto no sistema onusiano, ainda que esta possa abrigar milhares de “Timor Leste” se observado o princípio estrito da proporcionalidade. Como “obrigar” democraticamente ambas as nações a determinados compromissos internacionais se subsiste tal desproporção na representação? Não preciso dizer que os EUA desprezam solenemente qualquer sistema “universal” que busque sobressair-se ao poder indivisível do Estado soberano “vestfaliano”, não porque ostentem qualquer anti-multilateralismo arrogante ou anti-democratismo visceral, mas porque acreditam que seu modo de vida – que eles chamam freedom– só pode ser preservado nos quadros do Estado nacional.
11. O multilateralismo é, sem dúvida, um avanço considerável no plano das relações internacionais, quase tão importante quanto o princípio democrático nos processos de Nation building, mas ele não me parece suficiente, ou adequado, por si só, para corrigir distorções de desenvolvimento ou divergências de progresso tecnológico, que encontram raízes no plano essencialmente interno, ou “societal”, não apenas como resultado de espoliação colonial ou de dominação por economias mais avançadas. A grande tarefa do desenvolvimento me parece uma missão fundamentalmente interna, apoiando-se antes de tudo na educação, ainda que possa vir a contar com aportes de recursos externos e que também possa beneficiar-se de um bom ambiente internacional (comércio e intercâmbio tecnológico, por exemplo). Ainda que a solidariedade possa ser proclamada como princípio válido, ela é mais suscetível de encontrar-se nos casos de assistência, que não trazem de verdade o desenvolvimento, já que, no mais das vezes, as relações interestatais continuam a ser caracterizadas pelos interesses materiais, por vezes de forma bastante egoísta como se sabe (a exemplo do protecionismo e do subvencionismo agrícolas europeu, notoriamente fonte de iniquidades e de injustiças no plano do comércio internacional).
12. Ao lado do problema do desenvolvimento, afetando seguramente três quintos da humanidade, situa-se o problema do poder, caracterizado por doses ainda maiores de assimetria no plano internacional, terreno no qual o multilateralismo constitui, sem dúvida alguma, nosso mais potente aliado contra o arbítrio dos poderosos e arrogantes. Ainda aqui, acredito que a eventual correção dessas desigualdades não se situa tampouco no plano multilateral, que não é senão o reflexo de diferenciais de poder construídos no plano nacional, do State making. A diminuição dessas diferenças de poder não se dará pela cooperação internacional, mas por um processo de capacitação tecnológica interna, que não necessariamente precisa enveredar pela via militar, ainda que esta não deva estar excluída tampouco. Não há decisão multilateral capaz de corrigir os diferenciais de poder, assim como dificilmente a cooperação internacional conseguirá, por si só, eliminar as divergências de desenvolvimento entre os povos. Creio que os EUA encarnam, justamente, o melhor e o pior de um sistema internacional tendencialmente democrático, mas ainda marcado por diferenças quase irredutíveis de interesses entre os estados.
13. Dito isto, concordo totalmente com os argumentos de V.Excia. quanto ao caráter imprescindível de um sistema multilateral de comércio aberto e equitativo para fins de desenvolvimento econômico e tecnológico, suscetível inclusive de praticar “discriminações positivas” em favor dos países em desenvolvimento, assim como no plano interno são justificadas as ações afirmativas de promoção dos estratos mais desfavorecidos da população – negros, indígenas, outras minorias –, que se ressentem de “externalidades negativas” ou do acúmulo de barreiras ao seu processo ascensional, fruto de eras de dominação não democrática. Essas “ações afirmativas” podem ser praticadas sob a forma de políticas setoriais (industriais ou tecnológicas), ainda que nesse terreno eu prefira a transversalidade ou o caráter horizontal desse tipo de política – a exemplo dos investimentos extensivos em educação de pobres e excluídos, inclusive com bolsas-escola para negros ou cursos gratuitos para pobres em geral, antes que quotas ou reservas de vagas –, alternativamente à seleção de determinados beneficiários, o que pode acabar acentuando a regressividade da distribuição estatal e a consequente alocação de recursos de toda a sociedade para os já incluídos, quando não os ricos absolutos (que seriam os industriais paulistas, por exemplo, em face dos sem terra do Nordeste, num caso hipotético). Nos EUA, por exemplo, as políticas industriais (posto que descentralizadas) são conduzidas pela via dos investimentos públicos (nos vários níveis) em instituições de CeT e pelas inversões privadas em ReD, ou então pela indução das compras governamentais (muitas vezes maciçamente, até de forma perdulária, como no caso do Pentágono).
14. Certamente que os processos negociadores atualmente em curso nos planos sub-regional, hemisférico e do sistema multilateral de comércio terão um impacto decisivo no perfil imediato e futuro do desenvolvimento industrial e tecnológico brasileiro e também concordo com V.Excia. em que determinados aspectos dessas negociações vão muito além do livre-comércio costumeiro e “normal”. Minha tendência é porém a de não superestimar o potencial transformador desses acordos e processos de liberalização para o chamado “ordenamento socioeconômico” do País, por não acreditar que o rabo comercial seja capaz de, sozinho, abanar o cachorro do desenvolvimento. Não desejo tampouco subestimar esse impacto, inclusive porque, como ressaltado no discurso e nas demais manifestações de V.Excia., alguns acordos não são meramente comerciais. Mas retiro essa relativa “desimportância” dos impactos desses acordos – tanto negativos quanto positivos, vale dizer – da experiência precedente de outros acordos de liberalização (como o Nafta, por exemplo) ou de abertura de mercados no quadro das rodadas comerciais anteriores, de resto muito pouco transformadores das estruturas econômicas ou sociais de países como o México ou mesmo Canadá (contra as previsões mais pessimistas, ou mais otimistas, feitas por opositores e partidários desses acordos). São os efeitos indiretos dos aumentos de competitividade e de produtividade (por vezes induzidos por mudanças mais internas do que externas), mais do que a abertura comercial em si, que conseguem produzir impactos mudancistas mais substanciais, como experimentado em processos históricos dignos de nota, como no caso de alguns tigres asiáticos ou mesmo da região. O Chile, por exemplo, modificou a natureza e a orientação de sua política econômica interna muito antes de tornar-se adepto do livre-cambismo irrestrito e universal. Na nossa sub-região, doze anos de Mercosul não lograram transformar decisivamente países como Paraguai e Uruguai, de resto insulados de seus efeitos mais impactantes por exclusões nacionais e setoriais que têm atuado como salvaguardas permanentes a um processo mais amplo de liberalização.
15. Os EUA, como se sabe, sempre estiveram na vanguarda dos processos de abertura econômica e de liberalização comercial conhecidos pela ordem econômica internacional do último meio século, por vezes de maneira altruística, mas mais frequentemente por interesse próprio, como soe corresponder a uma economia baseada na livre iniciativa e no princípio da vantagem individual. A economia capitalista brasileira não se organiza de modo diferente, mas obviamente não dispõe ainda de condições para enfrentar de modo aberto esse tipo de concorrência darwiniana. Acredito que os EUA estejam dispostos a reconhecer necessidades específicas dos países em desenvolvimento, mas é óbvio que o quadro mental no qual evoluem os negociadores americanos tende a privilegiar os interesses das suas corporações, antes que projetos nacionais de desenvolvimento formulados por Estados soberanos. Daí as diferenças percebidas hoje nos enfoques da liberalização hemisférica ou multilateral privilegiados respectivamente pelo Brasil e pelos EUA.
16. O bom relacionamento já alcançado no plano político por ambos os países, em especial por seus dirigentes máximos, conseguirá, no entanto, pelo menos acredito, encontrar um terreno de conciliação entre os interesses parcialmente divergentes dos dois maiores estados do hemisfério no plano econômico. A manutenção de um bom nível de diálogo entre ambos, como demonstrado por V.Excia. nesse encontro hemisférico de Santiago, contribuirá para que se alcance esse objetivo. Finalmente, agradeço a V.Excia. a oportunidade que me foi dada de comentar um texto denso e enriquecedor do debate político na Casa de Rio Branco.
PAULO ROBERTO DE ALMEIDA, Encarregado de Negócios
Washington, 5 de agosto de 2003
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