História Virtual: limites e possibilidades
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 7 de julho de 2003
Parece trivial, e sem maiores conseqüências práticas, fazer conjecturas em direção do passado, já que a linha contínua do tempo não nos permite operar qualquer mudança no curso efetivo da história, com a ajuda de alguma máquina do tempo imaginária. Especular é contudo possível em direção do passado, sendo em todo caso menos perigoso do que fazê-lo no presente e ainda menos arriscado do que “contra” o futuro. Um famoso historiador europeu, Johan Huizinga, chegou mesmo a afirmar que o historiador deveria se colocar de um ponto de vista que o permitisse considerar fatos conhecidos como podendo conduzir a resultados diferentes: e se os persas tivessem vencido em Salamina?; e se Napoleão tivesse fracassado em seu 18 Brumário?
Assim, é possível selecionar alguns dos turning points da história para realizar exercícios controlados de imaginação, que não são todavia completamente arbitrários ou puramente aleatórios. Uma das boas regras da história virtual, já explorada por historiadores fecundos como Niall Ferguson, é a de que o novo curso estabelecido deve ser “plausível” ou “possível”, isto é, seus desenvolvimentos poderiam estar inscritos na lógica histórica do momento imediatamente antecedente. De fato, o próprio Ferguson responde à questão de saber quem se importa com desenvolvimentos que nunca ocorreram. Diz ele que, nós mesmos, na vida cotidiana, estamos sempre nos colocando questões “contrafatuais”: por que eu não obedeci aos limites de velocidade?; por que ter aceito aquele último copo?; quanto eu teria ganho se tivesse apostado naquele número? [1]
Nos imaginamos, assim, acertando no milhar, escolhendo uma outra profissão ou simplesmente evitando alguns erros cometidos no passado. Um outro famoso historiador, Thomas Carlyle, via a história como um eterno caos, que o historiador deveria avaliar cientificamente. As conseqüências alternativas poderiam, para ele, levar a resultados totalmente aleatórios, ou divergentes do curso real da história, um pouco como na atual alegoria do bater de asas da borboleta sugerido pela teoria do caos. Seria mesmo assim?
O argumento a favorda história virtual consiste em seu poder de despertar uma certa curiosidade pela própria trama da história real, ao sugerir desenvolvimentos diversos do que aqueles que efetivamente ocorreram e que, segundo o curso sugerido, poderiam ter provocado outras conseqüências, algumas até decisivas do ponto de vista do curso ulterior. Mas a história virtual não é o reino do arbítrio, e sim uma construção cuidadosa sobre as vias alternativas da vida humana, explorando fatores contingentes do processo histórico, onde os homens podem, sim, fazer uma grande diferença, ao contrário da aparente rigidez do determinismo histórico. Desse ponto de vista, a história virtual possui virtudes eminementemente didáticas, pois que ela permite isolar o que é único, especial ou peculiar num determinado evento ou processo histórico, ao imaginar que esse fator ou essa ação particular poderiam ter deslanchado um curso totalmente inesperado (do ponto de vista do que efetivamente se passou), mas que estaria inteiramente inserido na lógica e na trama do curso precedente.
Aos que recusam a utilidadeda história virtual pode-se observar que ela está de certa forma contemplada numa vertente mais séria, e quantitativamente embasada, da disciplina, identificada, por exemplo, com a chamada “cliometria”, na qual argumentos contrafatuais são mobilizados para determinar o peso de determinados fatores ou processos históricos. Um dos mais conhecidos utilizadores desse tipo de exercício é, obviamente, o prêmio Nobel americano Robert William Fogel que, numa obra famosa (Railroads and American Economic Growth: Essays in Econometric History, 1964), tenta isolar o papel das ferrovias no desenvolvimento econômico dos Estados Unidos. [2]
Assim, o que teria acontecido com o Brasil – que talvez não fosse nem “Brasil” – se a linha divisória de Tordesilhas, por desatenção dos portugueses ou resistência dos negociadores espanhóis, tivesse ficado lá mesmo onde a tinha colocado a bula do papa Alexandre VI, no meio do oceano? Teriam as Américas permanecido uniformemente espanholas, contentando-se os portugueses com seus domínios apenas africanos? O mais provável é que incursões de conquistadores concorrentes – franceses, holandeses, ingleses, entre outros – tivessem “esquartejado” bem mais cedo o hemisfério ocidental entre reinos e impérios mercantis europeus.
Muitos outros eventos ou processos podem ser sugeridos nessa linha da “história alternativa”. Cursos diferentes para episódios conhecidos devem, contudo, guardar conexão com o desenvolvimento possível ou com o curso efetivo de cada um deles. É o que se poderia chamar de plausibilidade histórica, o que significa que o curso sugerido não pode ser nem “anacrônico”, nem totalmente arbitrário, no sentido em que a alternativa selecionada poderia ter sido efetivamente “oferecida” aos, ou considerada pelos homens que tomaram tal ou tal decisão em momentos por vezes dramáticos para seus países ou para si mesmos.
A idéia da contingência na história, uma das bases da história fatual, milita, assim, contra o determinismo histórico, muitas vezes exemplificado pela famosa frase de Marx na abertura do seu 18 Brumário de Luís Napoleão, segundo a qual os homens fazem sua própria história, mas o fazem em condições determinadas por forças que estão fora do controle desses mesmos homens.
Resumindo, idéias virtuais também podem constituir uma “boa” matéria prima para a história real, desde que ela se faça em condições aceitáveis de causalidade e de encadeamento das ações humanas. Afinal, o Rubicão, Waterloo, a batalha da Inglaterra, Stalingrado, poderiam, sim, ter conhecido outros desfechos e ter apresentado outras conseqüências. A relação (sempre ambígua) entre a liberdadee a necessidade nunca está determinada previamente e é isso, justamente, que constitui um dos fascínios da história.
Paulo Roberto de Almeida
Washington, 7 de julho de 2003
[1]Ver Niall Ferguson, “Introduction, Virtual History: Towards a ‘chaotic’ theory of the past” in Niall Ferguson (ed.), Virtual History: Alternatives and Counterfactuals (New York: Basic Books, 1997), pp. 1-90, cf. p. 2.
[2]Cf. R. W. Fogel, “The New Economic History: its findings and methods” in Fritz Stern (ed.), The Varieties of History: From Voltaire to the Present (New York: Vintage Books, 1973), pp. 456-473.
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