sábado, 1 de dezembro de 2018

Monica de Bolle sobre a ideologia de genero - Revista Epoca

O Brasil, que encontra-se numa fase de transição para um novo regime – esperemos que para melhor no terreno econômico, pelo menos –, enfrenta hoje um confronto de narrativas sobre diversos elementos daquilo que poderíamos grosseiramente chamar de "panorama cultural".
Também acho que vivemos sob uma espécie de "pensamento único" sob o regime companheiro, entre 2003 e 2016 (e muitas de suas manifestações não cessaram ainda nos meios formadores de opinião).
Mas, isso não quer dizer que temos de cair do outro lado, na rejeição de tudo o que havia e na adoção de uma visão conservadora do mundo.
O que mais preocupa não é nem a consolidação de alguma "ideologia" que sustentaria o novo regime, pois ideologia significa, basicamente, sistematização de algumas ideias em torno de alguma proposta mais ou menos coerente.
Ora, o que temos até aqui é uma grande confusão mental, e na maior parte das vezes a expressão da pura ignorância, se a ignorância consegue se expressar. 
Tenho um problema básico em relação a essa confusão: tenho alergia à burrice. Consigo debater ideias, mas não me sinto confortável em face da confusão mental atualmente reinante.
Monica de Bolle reflete sobre uma dessas confusões mentais, a tal de "ideologia de gênero". 
Eu só gostaria de ver a inteligência prevalecer. Seria pedir muito?
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 1/12/2018

Não fossem o gogó e os pés...

O rechaço à chamada ideologia de gênero vem se espalhando na América Latina com o fervor ultraconservador que se alastra como epidemia de fé e de rejeição à ciência

Monica de Bolle, economista e diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica, conhecido como Casa das Garças. Rio de Janeiro (Cid.) - Brasil. 12/12/2012. Foto: Stefano Martini / Editora Globo. Foto: Stefano Martini / Editora Globo
Sai a figura oculta que é um cachorro atrás, entra o marxismo cultural. Sai a saudação à mandioca, entra a ideologia de gênero. Ricardo Veléz Rodríguez, filósofo, teólogo e futuro ministro da Educação do governo Bolsonaro, condena a tal da ideologia de gênero, que, segundo ele e todos os ultraconservadores de sua estirpe que hoje pipocam mundo afora, é uma afronta aos valores tradicionais cristãos. Trata-se, segundo ele, de ideologia “destinada a desmontar os valores tradicionais de nossa sociedade, no que tange à preservação da vida, da família, da cidadania, em soma, do patriotismo”. Assim como o novo chanceler de Bolsonaro, o futuro ministro da Educação mantém, desde 2009, um blog em que expõe suas ideias. Apropriadamente, o blog chama-se “Rocinante”, cavalo virtual em que monta Vélez Rodríguez para lutar batalhas quixotescas contra moinhos de vento como a “doutrinação de esquerda nas escolas”. Vélez Rodríguez, quem poderia imaginar, quer estocar o vento da ideologia de gênero, trancando-o num armário bem fechadinho.
Mas o que é ideologia de gênero? De acordo com alguns estudos e análises — sérios — da área de gender studies, a ideologia de gênero condenada por setores ultraconservadores mundo afora seria a visão de que gênero não tem relação com diferenças biológicas e de que pode ser simplesmente fruto de uma escolha individual. Segundo os detratores da ideologia de gênero — expressão cunhada por eles —, ela seria linha de pensamento perigosa que poderia contaminar as crianças e destruir a democracia. O movimento antigênero e anti-ideologia de gênero marcou presença nos ataques à visita da filósofa Judith Butler ao Brasil há pouco mais de um ano, no repúdio ao referendo sobre o acordo de paz do ex-presidente colombiano Juan Manuel Santos com as Farc em 2016, nas campanhas pela reforma da constituição distrital no México em 2017 e durante a votação final sobre a lei que acabaria com a proibição da interrupção da gravidez promulgada por Augusto Pinochet no Chile, também em 2017. Esses são apenas alguns exemplos de como o rechaço à chamada ideologia de gênero vem se espalhando na América Latina com o fervor ultraconservador que se alastra como epidemia de fé e de rejeição à ciência.
Sobre a ciência, não resisti e fui reler trechos do fabuloso livro da antropóloga Margaret Mead publicado em 1935, Sexo e temperamento. Para escrever sua obra, Mead viajou para a Papua-Nova Guiné, espécie de paraíso dos antropólogos devido à imensa diversidade étnica e cultural do arquipélago ao norte da Austrália. Meu interesse pelo país é antigo — o visitei em quatro ocasiões diferentes no ano de 2001 e lá permaneci durante um mês a cada visita. Portanto, passei quatro meses na Papua-Nova Guiné, país que muitos brasileiros provavelmente não saberão localizar no mapa. Fui parar lá pois na época trabalhava no Fundo Monetário Internacional e precisávamos monitorar o empréstimo que havíamos dado ao governo da Nova Guiné. Foi o país mais fascinante que visitei, mas divago. 
Margaret Mead foi para lá no início dos anos 30 e ficou por dois anos para conduzir uma pesquisa pioneira sobre a consciência de gênero. Seu objetivo era descobrir em que medida diferenças de temperamento entre os sexos eram culturalmente, não biologicamente, determinadas.
A Papua-Nova Guiné é o país ideal para estudar culturas isoladas, pois o terreno montanhoso da ilha principal, a densa floresta e a falta de infraestrutura — até hoje, só há estradas num raio de cerca de 20 quilômetros da capital, Port Moresby — tornavam muito difícil o contato entre diferentes povos primitivos. Ao estudar três culturas diferentes, Mead encontrou divergências significativas nos padrões de temperamento observados em homens e mulheres. Em um dos povos, homens e mulheres mostravam-se dóceis, gentis e cooperativos. Em outro, a mulher era agressiva, dominadora, enquanto o homem era submisso e emocionalmente dependente. No terceiro, tanto homens quanto mulheres mostravam-se violentos e agressivos, em luta constante por poder e posição hierárquica. O trabalho pioneiro de Mead revelou as profundas diferenças entre o sexo biológico e a construção cultural do que entendemos por gênero. Desde então, a literatura científica corroborou sua pesquisa e a ampliou enormemente.
Concluo esse artigo com duas reflexões. A primeira: como seria bom se o novo ministro da Educação passasse dois anos na selva da Nova Guiné. A segunda: “Super vitamina dos reflexos, tão complexos de ambos os sexos”. Dá um Close nela.
Monica de Bolle é diretora de estudos latino-americanos e mercados emergentes da Johns Hopkins University e pesquisadora sênior do Peterson Institute for International Economics

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