Paulo Roberto de Almeida
A invenção chinesa que mais surpreendeu Marco Polo
Há quase 750 anos, um jovem explorador de Veneza chamado Marco Polo escreveu crônicas sobre suas viagens pela China - O Livro das Maravilhas do Mundo está repleto de episódios que ele jura ter presenciado.
BBC, 8 agosto 2017
Uma cena teve importância especial: o momento em que o veneziano se tornou um dos primeiros europeus a conhecer uma invenção que ainda é um dos fundamentos da economia moderna: o dinheiro de papel.
Não importa a particularidade de que as cédulas modernas não são feitas de papel, em sim a partir de fibras de algodão ou plástico - mesmo o dinheiro chinês que tanto fascinou Marco Polo era assim.
Ele era feito de casca de amoreiras e continha a assinatura de diversas pessoas. Mas sua autenticação era um selo vermelho brilhante proveniente do imperador Kublai Khan, que estava no poder durante as viagens do explorador.
No livro de Marco Polo, suas observações sobre o dinheiro de papel estão em um capítulo chamado "Como o grande Kahn faz com que a casca de árvores, convertida em algo similar a papel, passe como dinheiro em todo o país".
A novidade era mais do que o material: o valor dessas notas não vinha do objeto, ao contrário de moedas de ouro e prata, mas sim da chancela das autoridades do governo.
Bastava a ordem de Khan de que as cascas com o carimbo oficial eram dinheiro. "E que assim seja."
Por sinal, o papel-moeda também era chamado de dinheiro fiat - em latim, fiat significa "assim seja".
Cadê o ouro?
O explorador veneziano ficou fascinado com a genialidade que do sistema. Perguntava-se onde ficava o ouro que não estava circulando.
A resposta? Sob rigoroso controle do imperador.
O dinheiro de papel não era novo quando Marco Polo o conheceu. Tinha surgido por volta do ano 1000 na província chinesa Sichuan, mais conhecida hoje por sua culinária.
Naquela época, Sichuan fazia fronteira com Estados estrangeiros por vezes hostis. As autoridades chinesas não queriam que ouro e prata fossem parar no exterior.
Daí, impuseram a lei de que Sichuan usaria apenas moedas de ferro. O problema era a disparidade de valores: um punhado de moedas de prata, por exemplo, era convertido em mais que o peso do interessado se convertido para ferro.
Isso criava problemas para os comerciantes de Sichuan e seus clientes. Era ilegal usar moedas de ouro e prata, mas nada prático trabalhar com ferro. Nenhuma surpresa, então, que tenham surgido como alternativa os jiaozi - ou bilhetes de intercâmbio.
Tratava-se simplesmente de notas promissórias. Em vez de carregar toneladas de moedas de ferro, um mercador conhecido e de boa reputação fazia uma promessa de que pagaria as contas em outro momento, quando a transação fosse mais conveniente para todos.
A ideia fazia sentido, mas logo ocorreu algo inesperado - os jiaozi começaram a ser comercializados livremente.
Um exemplo? Suponhamos que, depois de uma transação com o respeitável senhor Zhang, você recebe em troca uma promissória. Em uma transação com outro comerciante, você poderia emitir uma nota, mas por que não fazer algo mais simples e passar a promissória de Zhang?
Afinal, sabemos que ele é de confiança.
Títulos oficiais
A partir daí, cria-se uma versão primitiva do dinheiro de papel: uma promessa de reembolso que tem valor de mercado em si mesma e que pode ser transferida de uma pessoa para outra sem ser cobrada.
O negócio é ainda mais interessante para o senhor Zhang. Se sua promissória continuar passando de pessoa para pessoa, ele jamais terá que carregar moedas de ferro.
É como se desfrutasse de um empréstimo sem juros durante todo o tempo em que a promissória circular. Melhor ainda: um empréstimo que talvez nunca tenha que pagar.
Sendo assim, as autoridades chinesas perceberam que podiam ser as beneficiárias do sistema. Regulamentaram a emissão de jiaozi e seu uso.
Pouco depois, proibiriam jiaozi privados. O título oficial foi um sucesso - circulava por várias regiões e até fora do país e tinha mais valor que moedas de ferro, pois era mais simples de transportar.
Inicialmente, o jiaozi emitido pelo governo chinês podia ser cobrado livremente, assim como os privados.
O sistema era bastante lógico, pois assumia que as notas representavam algo de valor real. Mas o governo modificou o sistema mais tarde, criando um esquema fiat, abandonando a prática de pagar em metal pelos jiaozi.
Se chegava ao Tesouro para cobrar um jiaozi velho, você sairia com outro mais novo. Um passo bastante moderno.
Afinal, o dinheiro que usamos hoje é criado por bancos centrais e não está respaldado por muito mais que a promessa de troca de notas velhas por novas.
Saímos da situação em que a promissória do senhor Zhang circulava sem ser cobrada para a bizarra situação em que, apesar de nunca poderem ser liquidadas, notas do governo circulam.
Estabilidade
O dinheiro fiat é uma tentação para os governos: uma gestão com muitas contas para pagar pode simplesmente imprimir mais dinheiro. Porém, quando há mais dinheiro para pagar pela mesma quantidade de bens e serviços, os preços tendem a subir.
Essa tentação logo se tornou irresistível na China: a dinastia Song emitiu jiaozi demais, e falsificações se tornaram um problema. Apenas décadas após sua invenção, o jiaozi estava desvalorizado e desacreditado. Era negociado a apenas 10% de seu valor original.
Em tempos bem mais modernos, as coisas foram ainda piores para outros países. A Alemanha no período entreguerras e o Zimbábue do século 21 são dois exemplos de países que sofreram um colapso econômico quando o excesso de impressão de dinheiro fez com que os preços disparassem.
Na Hungria, a hiperinflação fez com que, em 1946, os preços triplicassem diariamente. Quem entrava em um bar de Budapeste, por exemplo, ficava em mais vantagem se pagasse a conta quando chegasse do que quando saísse.
Tais exemplos convenceram alguns economistas mais radicais que o dinheiro fiat jamais pode ser estável.
Eles defendem uma volta do padrão-ouro, o sistema monetário que vigorou até a Primeira Guerra Mundial e no qual o papel-moeda tinha que ser garantido por valor igual de metal precioso.
No entanto, economistas tradicionais rejeitam a ideia e consideram que uma inflação baixa e previsível pode servir com uma espécie de lubrificante para a atividade econômica.
E, apesar de que nem sempre podemos confiar que os bancos centrais vão imprimir a quantidade correta de dinheiro novo, talvez a ideia faça mais sentido do que confiar que a quantidade correta de ouro será escavada.
Imprimir dinheiro é especialmente útil em tempos de crise. Em 2007, por exemplo, o governo americano injetou bilhões de dólares na economia sem criar inflação.
Nem precisou usar impressoras: esses bilhões foram, na verdade, dígitos que computadores injetaram no sistema bancário global.
Nos dias de hoje, é capaz de Marco Polo ter escolhido um outro título para seu capítulo sobre dinheiro.
"Como o Grande Banco Central faz com que dígitos sejam inseridos por um computador e convertidos em algo similar a uma folha de cálculo, que são usados como dinheiro."
A tecnologia mudou, mas o que serve como dinheiro não deixar de assombrar.
Este artigo é uma adaptação de um episódio do podcast "50 Coisas que Criaram a Economia Moderna", do Serviço Mundial da BBC (em inglês), apresentado pelo economista Tim Harford.
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