Uma crônica extremamente elegante, sensível, até poética, do grande escritor Edgard Telles Ribeiro, sobre uma simples aula, que não foi magna ou mínima, mas que foi magnífica, no Instituto Rio Branco, nos tempos mais sombrios, e por vezes medíocres, da ditadura militar, quando um outro grande escritor, Guimarães Rosa, soube encantar jovens estudantes com sua magia em torno das fronteiras e das palavras. Nenhum tempo é tão sombrio que não permita leveza de espírito e elevação espiritual a propósito da verdadeira cultura a que aspiramos todos nós, mesmo nos tempos mais medíocres e ranzinzas.
Paulo Roberto de Almeida
São Paulo, 26/04/2019
*Edgard Telles Ribeiro: Magia*
Folha de S. Paulo, 25/04/2019
Folha de S. Paulo, 25/04/2019
Em passado recente, jovens colegas de Itamaraty foram submetidos, no Instituto Rio Branco —responsável pela formação de nossos futuros diplomatas—, a uma aula magna, cortesia do chanceler Ernesto Araújo.
Entre 1967 e 1968, em plena ditadura militar (às vésperas, portanto, da entrada em cena do AI-5), eu próprio fui aluno do instituto. Na época, recordo-me bem, fomos submetidos, minha turma e eu, a inúmeras doutrinações do gênero pelas autoridades de plantão, cujas mensagens também vinham embaladas em concepções afinadas às prioridades geopolíticas ou morais da época.
A diferença entre hoje e ontem, porém, é que, além das inevitáveis catilinárias oriundas de fontes conservadoras, também tivemos acesso, no próprio instituto, a figuras luminares de alguns humanistas, sejam como professores (Mário Henrique Simonsen, Bertha Becker, Marcílio Marques Moreira), sejam como conferencistas (José Luiz Werneck da Silva, Clara Alvim, Manoel Maurício de Albuquerque).
Graças à presença dessas personalidades, mantínhamos viva a esperança de que os cenários adversos com que nos confrontávamos cederiam espaço a dias melhores.
De todos esses personagens —cada qual dotado de uma visão estimulante e rica sobre nosso país—, o que mais me marcou, em uma luminosa tarde da qual jamais me esquecerei, foi João Guimarães Rosa. Suas palavras elevaram o patamar da grandeza a que, por vezes, tínhamos acesso no instituto. A força de sua magia relegou para longe o lodo que também nos era servido de forma mais rotineira.
Ao longo de sua fala, Guimarães Rosa discorreu sobre fronteiras, tema ao qual se dedicara com afinco em boa parte da carreira. E, ao final, respondeu a algumas perguntas sobre literatura. O tom de voz com que se expressava, a delicadeza com que injetava poesia em um tópico aparentemente árido, ou a modéstia com que se referia a seus textos literários —como se não pesassem tanto assim na ordem das coisas—, vieram-me à mente quando tomei conhecimento da aula magna de Ernesto Araújo.
Inevitavelmente, lembrei-me também do panteão dos grandes nomes que souberam dignificar o legado do Barão do Rio Branco e dos vários chanceleres que honraram o cargo em circunstâncias muitas vezes difíceis.
Mas pensei, especialmente, nas inúmeras gerações de profissionais que projetaram por gerações a fio, com dignidade e sem descanso, nossos valores no exterior. De lá colhendo ensinamentos que se revelariam valiosos nos mais diversos campos de nossa luta pelo desenvolvimento. A massa crítica que compõe uma carreira, em suma. Simbolizada aqui pelos jovens colegas que agora se juntam aos quadros do Ministério das Relações Exteriores. Porque a política externa não é feita apenas de sorrisos e afagos (e concessões arbitrárias). Interesses estão sempre em jogo —e é preciso saber lutar por eles.
E é pensando nesses jovens que evoco Guimarães Rosa. Porque foi a aula de nosso escritor maior, cujos pormenores hoje se perdem no tempo em comparação à emoção vivida naquele dia, que me permitiu ver, como por milagre, a força da luz que apesar de tudo brilhava por entre as trevas naqueles anos.
E é o que me leva a escrever estas linhas dedicadas, no fundo, a todos os estudantes brasileiros. Com o maior afeto. Sem as palavras de ódio que predominam hoje entre nós por razões que, de há muito, escapam o controle. Para reiterar, como tantos o fizeram antes de mim ao longo da história, que nosso país é maior do que os homens que o governam ocasionalmente, maior do que a falta de visão de que por vezes dão provas. Maior do que suas certezas mesquinhas, seus preconceitos perigosos ou suas melancólicas e estranhas obsessões.
E, por fim, para rogar que façam o que boa parte da minha geração fez por 20 anos: não abram mão de suas convicções. Não permitam que as certezas alheias, por sedutoras ou originais que pareçam, criem um nicho em sua imaginação. Pois, sem ela, não há magia.
E, sem magia, não há vida.
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