Paulo Roberto de Almeida
Machado de Assis, o nosso craque na Copa América.
Todos os estrangeiros que o leram se encantaram com sua prosa. Ele já foi comparado em grandeza a referências solares das letras mundiais. Texto do escritor Deonísio da Silva, diretor do Instituto da Palava, via Augusto Nunes:
Ele venceu quando o placar era de 7 x 0 contra ele. Machado era brasileiro, negro, órfão, pobre, epiléptico, gago e sem escola, mas tornou-se o maior escritor brasileiro, sem fugir de dois temas complexos: a abolição, que ainda não nos redimiu; e a república, que ainda não nos democratizou.
Vamos esclarecer a confusão. Heróis não são pessoas como Neymar Jr. São pessoas como Machado de Assis, que está fazendo 180 anos de nascimento e 111 de morte. Ele nasceu em 1839 e morreu em 1908. Que a cabala nos diga o que não sabemos explicar dos números e fiquemos com as obras do talentoso escritor.
Pois uma das mais belas efemérides deste ano é que Joaquim Maria Machado de Assis faz 180 anos em junho, embora as hordas de ágrafos só falem de Paulo Reglus Neves Freire, que não é efeméride de nada.
Pouco a estranhar nesses tempos no terreno minado de lutas ideológicas sem pé nem cabeça, sobretudo num país que removeu os ossos do padre Manuel da Nóbrega, levando-os ignotos nas caçambas que partiam do Morro do Castelo para fazer o Aterro do Flamengo, no Rio.
E hoje ninguém sabe onde foram parar os ossos do padre. O inédito descaso de violar túmulos e o descuido posterior de sequer separar ossos e terra nos impedem de saber onde eles estão. Os administradores fluminenses e cariocas transformaram o famoso sacerdote num sem-túmulo.
É que temos mais no que pensar e nos preocupamos mais com os sem-terra, com os sem-teto, com os sem-nada, mas não nos preocupamos com coisas igualmente essenciais, como, por exemplo, o fato de não termos uma obra completa de nosso maior escritor.
Se tratamos assim o padre jesuíta e fundador da primeira escola no Brasil e um de nossos primeiros professores, talvez não nos devêssemos espantar com o uso frequente de “ou” em vez de “e” no fogo de palha de nossas célebres polêmicas, que duram menos que a vida breve das borboletas.
Pois que também em muitas instituições dedicadas ao ensino e à cultura o ar está igualmente irrespirável. Reiteremos, porém, que, mais do que gênio, Machado de Assis é oxigênio para o intoxicado ambiente literário brasileiro e ele está completando 180 anos em silêncio, à sorrelfa, observador ardiloso e minucioso, mesmo do além-túmulo, por meio do que deixou publicado ou apenas escrito.
“Nós ainda não temos Prêmio Nobel, mas temos Machado de Assis”, me disse o advogado e empresário Wilson Volpato, meu colega de adolescência, o mesmo que me levara a ler Castro Alves em nossos verdes anos.
Despencando em todas as classificações internacionais que avaliam o ensino — entre 2002 e 2018, o Brasil passou do 35º para o 69º lugar, um dos últimos —, nosso País discute quem vai para o (pa)trono, se José de Anchieta, notável educador parceiro de Nóbrega, ou Paulo Reglus Neves Freire que, embora autor de obra importante, não é digno de atar-lhe as sandálias.
E, além do mais, não é questão de “ou”, é questão de “e”, que em se tratando de escola e de ensino, devemos somar e não dividir o pouco que temos.
Ensino privado ou ensino público, ensino presencial ou ensino à distância, ensino laico ou ensino religioso, ensino escolar ou ensino doméstico etc. — eis as falsas polêmicas habituais. Usemos “e” em vez de “ou”. Precisamos muito de ensino, mas quem precisa ainda mais é quem faz esse tipo de falsa oposição.
Enquanto isso, nos EUA saiu uma coletânea das histórias curtas de Machado de Assis, saudada por todos os que sabem saborear livros de qualidade, deslumbrados com a riqueza que temos e escondemos no subsolo de nosso grande patrimônio literário.
Todos os estrangeiros que leram Machado se encantaram com sua prosa. Ele já foi comparado em grandeza a referências solares das letras mundiais, como Dostoiévski, Gogol, Tchekov e Kafka. O famoso crítico Harold Bloom falou mais de perto ao próprio coração de Machado, comparando-o a Laurence Sterne, o escritor e clérigo irlandês que o brasileiro admirava. Philip Roth disse que Machado é o nosso Beckett. Antes de todos eles, Stefan Zweig, que apreciava muito a poesia de Camões, disse que O Bruxo do Cosme Velho, como o chamava Drummond, era dos maiores que tinha lido.
No prefácio das The Collected Stories of Machado de Assis, o crítico Michael Wood cita outros parentes literários de Machado, como Henry James, Henry Fielding, Vladimir Nobokov e Ítalo Calvino. Há alguns anos, Susan Sontag, que faleceu em 2004, aos 71 anos, já tinha dito: “Machado é o maior escritor da América Latina. Por que vocês o esconderam de nós tanto tempo?”
Prezada Susan Sontag, nós o escondemos de nós também.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.