É possível uma Teologia da Libertação evangélica?, por Bruno Reikdal Lima
É possível uma Teologia da Libertação evangélica?, por Bruno Reikdal Lima
Há um desafio posto para movimentos de esquerda na América Latina, sejam eles progressistas ou revolucionários: o que fazer com os evangélicos? Uma religião popular, de massas, espalhada em todo o continente, seja em grandes templos nos centros urbanos, em garagens feitas lugar de culto no fundão das periferias ou mesmo em casebres nos rincões, capaz de mobilizar multidões, garantir coesão social e apoio a projetos políticos de lideranças. Uma potência social transformadora alinhada, hoje, majoritariamente com programas reacionários, conservadores e por vezes fascistas. E mesmo que normalmente não se tenha o hábito de discutir religião em nossos círculos de debates e organizações partidárias ao se planejar um projeto político, reformas ou mesmo ambições revolucionárias, não se tem um programa popular sem o povo; e este é cada vez mais evangélico.
Entre as décadas de 1960 e 1980, um fenômeno religioso sui generis e propriamente latino-americano animou populações do Terceiro Mundo: a Teologia da Libertação. Como Michael Löwy mostra em seu Cristianismo delibertação, lançado em edição revisada pela Expressão Popular Junto, não tem como pensar e compreender os movimentos sociais e revolucionários da América Latina apoiados e aglutinadores de grandes massas, sem levar em conta esse movimento católico de padres e freiras que assumiram uma prática religiosa e uma teoria crítica muito peculiar, conciliando a missão evangelizadora da igreja em abertura à sociedade moderna com a Teoria Marxista da Dependência. A capilaridade da igreja católica por meio da rede de comunidades e fiéis que foi constituída desde os primeiros anos da colonização ibérica em 1492, garantia uma circulação gigantesca de materiais e conteúdos compartilhados entre lideranças e membros, discussões que cruzavam fronteiras, além de por vezes garantias de proteção e apoio por meio de solidariedade do clero nacional e internacional.
Foi um fenômeno, com grandes impactos e também com limites. Mas que por sua atuação mobilizou e tornou possível ligas campesinas, movimentos de lutas por direitos sociais e partidos políticos (no Brasil, o MST e o próprio PT são exemplo disso). Contudo, o continente ainda católico em um espaço de 30 anos se tornou 1/3 evangélico – e com perspectivas de ter sua população majoritariamente convertida a essa “nova” religião nos próximos anos. Outro fenômeno. Que por uma série de razões históricas que podemos destacar em outro momento, apesar de suas raízes periféricas e em disputas sociais, está em completo descompasso com o que fora a experiência da Teologia da Libertação e seus desdobramentos. Na verdade, um movimento que se desenvolve exatamente no oposto: em rejeição ao que apareça como moderno, no sentido de se portar como conservador, e a tudo o que pareça ser “marxista”.
Bem, a pergunta para a qual gostaria que nos voltássemos é: existe alguma viabilidade de termos uma Teologia da Libertação evangélica? Para tal, gostaria de fazer um rápido comparativo histórico e, por fim, indicar alguns desafios e algumas perspectivas sobre essa questão.
A Teologia da Libertação tem sua primeira raiz nas missões católicas europeias dos períodos entre as Grandes Guerras e no pós-Guerra. Jovens padres europeus são desafiados na primeira metade do século XX a modernizar a igreja, conciliando os avanços nas ciências modernas (sejam elas físicas, biológicas ou sociais) com a tradição. Era a abertura para o “mundo moderno”. A igreja católica europeia assumia frente ao processo histórico acelerado que vivia e às pressões sociais de fiéis e das relações políticas e econômicas com os Estados europeus, que a modernidade era inevitável, que traria melhorias na qualidade de vida das pessoas, mas que no processo de modernização, existiriam muitos flagelados, que ainda levariam um tempo para serem incluídos no “novo mundo”. Seu papel como Igreja, portanto, era de acolher os pobres e cuidar dos excluídos durante a modernização, em passo com ela, cumprindo sua missão.
Padres missionários passam a ser formados, então, para cuidar dos temporariamente pobres e excluídos que, no curso da história, seriam inseridos na marcha do progresso. Parte dessa leva de clérigos tem como destino o continente latino-americano. Entretanto, ao chegarem aos rincões dessa terra, encontram uma situação limite: os processos de modernização reproduzem grandes massas de pobres e excluídos, em uma miserabilidade não imaginável nos centros de onde vieram. Percebem com o passar dos anos que a para cuidarem dos pobres e dos excluídos de modo efetivo, não bastaria acolhe-los temporariamente, mas interromper o motor da exclusão: a própria modernização. Essa interpretação fica clara apenas ao final de 1960, quando alguns padres vindos das missões da Ação Católica e alguns discípulos, formados em solo ameríndio, tomam contato com a Teoria da Dependência e conseguem explicitar teoricamente por meio dos instrumentos teóricos dessa teoria científica moderna o que haviam descoberto nas missões: a pobreza e a exclusão não são uma etapa da modernização, mas seu fundamento. Assim em 1968 se tem a Conferência de Medellín, e em 1972 a publicação da primeira sistematização, Teología de la liberación, de Gustavo Gutiérrez.
Desse modo, de um processo de contradição entre a abertura da Igreja nos países centrais e a realidade enfrentada na periferia, a Teologia da Libertação é um efeito não-intencional e “negativo” da modernização da Igreja. Ademais, também se trata de um grupo de padres com escolarização e preparação missiológica formal, que saem de uma condição social privilegiada para situações e contextos de extrema pobreza, que se valem de uma instituição centralizada e forte, com redes já constituídas e longa tradição. Completamente diferente do processo histórico da religião evangélica no continente: que cresce particularmente, em uma primeira onda, com comunidades pentecostais que são periféricas, pequenas, sem poder centralizado e organização rígida. São, na verdade, um movimento carismático, muito mais dependente de uma liderança com seu nome e dons, do que de uma coordenação institucionalizada das ações das comunidades. Cada uma com seu líder e seus projetos, mesmo que partilhem de usos, costumes e ritos.
As igrejas evangélicas chamadas “tradicionais” também crescem, mas precisaram se transformar diante desse novo fenômeno místico. De todo modo, apesar de serem mais organizadas institucionalmente, também giram, em geral, em torno de lideranças fortes, por vezes famílias tradicionais nas comunidades, que formam pequenos grupos tomadores de decisões. Comumente, suas origens não são tão periféricas quanto as pentecostais, mas inicialmente, sempre, nos centros urbanos. Por outro lado, assim como com as igrejas pentecostais, os evangélicos tradicionais passam a vivenciar divisões e rachas internos, entre lideranças ou grupos de lideranças, fazendo nascer igrejas que procuram ser “independentes” de convenções e outros tipos de coordenações institucionais, todavia, sempre em torno de uma nova liderança. Ou seja: não há centralidade de Igreja, como se vivencia com a católica. São grupos que se unem em torno de temas, rituais comuns ou mesmo interesses, mas dispersos e relativamente autônomos uns dos outros.
As igrejas evangélicas estão espalhadas e contam com uma capilaridade imensa. Mas fragmentada. Talvez aqui encontremos um primeiro desafio: como coordenar uma ação contra-hegemônica em um grupo que é, desde sua origem, internamente rachado e já aguardando a próxima divisão? A Teologia da Libertação contava com uma instituição fortalecida, com mecanismos explícitos, hierarquia bem definida e proximidade entre os atores, que regularmente acabavam tendo que se reunir de alguma maneira. As igrejas evangélicas não tem nem padrão comum na formação de suas lideranças – aliás, por vezes, sem qualquer formação. Temos mais um ponto: a disparidade de acesso a educação formal, recursos formativos ou mesmo algum padrão de preparação de lideranças entre pastores e pastoras (nas comunidades em que existam mulheres com esse cargo). Sem centralidade institucional, sem organização na formação das lideranças – que operam, em geral, por sua capacidade de exercer carisma, ou seja, uma relação ainda mais orgânica.
Isto posto, comparando essas trajetórias, dos muitos apontamentos possíveis, gostaria de destacar dois desafios e duas perspectivas:
O primeiro desafio é como coordenar e aglutinar pessoas que dentro das comunidades evangélicas pretendam se posicionar ou já estejam posicionadas em outra chave que não a reacionária e conservadora atual. A primeira saída pensada poderia ser a de abrir uma nova instituição, para que essas pessoas se reúnam. Contudo, seria a repetição de mais um padrão comum da formação de comunidades evangélicas, em mais uma subdivisão que não necessariamente ganha visibilidade ou tenha a capacidade de aglutinar distintos indivíduos de tradições e comunidades distintas de lugares sociais e territoriais completamente diferentes. Uma nova igreja acrescentaria apenas mais uma pequena comunidade evangélica no meio de outras;
O segundo desafio é pensar como superar a relação carismática de dependência de uma liderança. Não que não se deva ter lideranças. Pelo contrário, não existiu nenhum processo histórico transformador ou revolucionário que não tenha se firmado na figura de uma ou duas grandes lideranças. A questão é que a individualização do processo repete mais um padrão da formação institucional fragmentária. Líderes que se pretendam lançar novas comunidades as fazem não sob uma coordenação institucional e minimamente sistematizada de um coletivo, mas no dom de trabalhar, no caso hipotético, questões progressistas que atendam um novo nicho de fieis. Como sistematizar um conteúdo comum com lideranças fragmentadas?
Com isso quero destacar que existiam estruturas mínimas para que a Teologia da Libertação produzisse efeitos e conteúdos que não se reduziam a uma ou outra liderança, uma ou outra comunidade, mas a um coletivo e organização institucional que não apagou as individualidades, e sim as posicionou a partir de uma perspectiva e projeto comum: a própria Teologia da Libertação.
Todavia, há uma brecha para uma produção teológica vanguardista no meio evangélico. Ao passo que a falta de centralidade impede maior atuação coordenada sob um projeto político comum, ela revela uma maior fragilidade do controle dessas instituições com respeito à flutuação de seus membros: eles optam por “mudar de igreja”. Isso indica, na verdade, que o sujeito tem maior autonomia para procurar uma comunidade que atenda melhor suas necessidades ou demandas em determinado tempo. Em torno de parte dessas necessidades que os rachas internos se instauram e aglutinam novos grupos religiosos, atendendo demandas que a anterior não cumpria. Há, na verdade, circulação de membros, que alternam as comunidades que frequentam de tempos em tempos. No hiato entre o que a comunidade oferece e o papel que ela não tem cumprido, existe uma possibilidade de denúncia interna, de crítica, que pode dispor de uma necessidade que exija mudanças religiosas.
A segunda brecha é a origem popular e periférica das comunidades evangélicas, em especial as pentecostais. Diferentemente da Igreja católica que na Teologia da Libertação teve de enfrentar sua opulência e os privilégios do clero para se aproximar da realidade do povo latino-americano, as igrejas evangélicas nascem na realidade popular e se mantém, nas periferias e rincões do país, organizada e coordenadas por pessoas da classe trabalhadora, muitas vezes empobrecidas, batalhadoras comuns. É uma organização propriamente popular, que se encontra regularmente, produtora de laços sociais e muitas vezes o único “serviço” público próximo às casas das pessoas socialmente excluídas – capaz de garantir algum apoio financeiro, mantimentos e encaminhamentos para algum auxílio social, mesmo que voluntário e amador.
De todo modo, pensar a história de uma experiência social exitosa permite que procuremos elementos que nos auxiliem em nossas ações, tomadas de decisão e organizações sociais. A Teologia da Libertação, no caso, disputou um território conservador, constituidor do próprio status quo de seu tempo, e foi capaz de produzir um fenômeno social com efeitos duradouros. As igrejas evangélicas também são territórios de disputa, e se temos o intuito de desenvolver um projeto popular, temos que estar com o povo e partir dele. E ele é cada vez mais evangélico.
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