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O REGIME DOS ATOS INSTITUCIONAIS
A história da República brasileira é a de um fio contínuo — uma coisa leva à outra, um debate ao seguinte, e não há um momento nestes 130 anos que não esteja marcado por ideias e comportamentos do passado. Se vemos os vários períodos como estanques, perdemos o todo. E não percebemos, por exemplo, que quando João Goulart foi derrubado naquelas horas tensas entre 31 de março e 2 de abril, em 1964, o argumento que sustentou o golpe foi um nascido no governo Getúlio Vargas. Logo Getúlio — mentor político de Jango. O entorno do presidente Jair Bolsonaro não parece ter muita noção do que fala quando fica lançando a ideia de um novo AI-5. Mas o primeiro Ato Institucional baixado pela Ditadura, o AI-1, teve como principal autor o velho Francisco Campos. O mesmo que foi responsável pela Constituição de 1937, Carta do Estado Novo getulista. Não é possível compreender o autoritarismo brasileiro sem antes entender Campos, este jurista mineiro que se elegeu deputado pela primeira vez em 1919. Porque há uma diferença fundamental entre a Ditadura Militar brasileira e os regimes similares pela América do Sul. No Brasil, buscou-se um arcabouço de legalidade, um verniz constitucional. Principalmente no início, os ditadores procuraram dar ao regime uma aparência de juridicamente sólido. De que era legítimo. Justamente a especialidade de Campos — como já havia feito em 37.
“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro”, escreveu o velho jurista logo no preâmbulo do AI-1. “O que houve e continuará a haver neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.” O Brasil estava vivendo, ali, um Golpe de Estado que se imaginava diferente do ponto de partida. Mais do que disfarçar a história, havia, ao chamar de ‘revolução’ o que ocorreu em 1964, uma visão de mundo que Campos passou a vida defendendo. Era aquilo que já aparecia nos escritos do jurista alemão Carl Schmitt, um constitucionalismo antiliberal. O novo regime não seria uma democracia liberal. Mas pretendia, ao menos nos primeiros momentos, provar que não seria uma ditadura autoritária e sim um Estado de Leis, uma outra forma de democracia. Um alicerce jurídico produziria sua legitimidade.
Foi assim que nasceu aquilo que alguns cientistas políticos batizaram de Regime dos Atos Institucionais.
A democracia liberal foi muito questionada durante e após a Primeira Guerra Mundial. A incapacidade de dar uma vida decente a operários, a de não ter sido capaz de impedir o conflito terrível e, posteriormente, de não saber lidar com a Depressão — todos eram indícios nos quais muitos viam limites para o regime. Schmitt era um desses. Escrevendo na Alemanha da década de 1920, ele argumentou que para que um regime fosse democrático não era exigido que fosse liberal. Democracia, da forma como a enxergava, era um sistema no qual os objetivos de quem comanda o Estado estão alinhados com os da população. Perante a República de Weimar, o regime de governo alemão até o Terceiro Reich, ele fez uma crítica ao parlamentarismo. O Liberalismo defende a instituição do Parlamento por crer que o debate racional leva à melhores decisões. Mas na prática, afirmava o jurista, o que existia de fato nos parlamentos era a politicagem de uma elite e, assim, o resultado eram decisões descoladas do desejo popular. O líder soberano, seguia seu argumento, deveria ter o poder de impor o desejo do povo. Uma verdadeira democracia. A teoria jurídica que fundamenta o Nazismo é a de Schmitt. Mas não só. Este constitucionalismo antiliberal era o conceito que estava por trás de inúmeros regimes autoritários que se instalaram no mundo naquele período — incluindo o Estado Novo.
“A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação”, seguia o preâmbulo do AI-1. “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.” É aí que nasce a importância de chamar o que houve em 1964 de revolução. Se um Golpe é o movimento de uma elite que deseja tomar o poder, uma Revolução, neste argumento, nasce de baixo, dos anseios da população. Por isso, o líder que assume o poder após uma revolução é ainda mais legítimo.
Nas duas décadas seguintes, os ditadores cumpririam seus mandatos após os quais seriam substituídos por novos ditadores com data para entrar e data para sair, sustentando o argumento de que tudo era constitucional — embora em nada liberal. O modo de pensar que deu sustentação ao Estado Novo foi o modo de pensar que deu sustentação à Ditadura Militar antes de ela escancarar, na virada para os anos 1970. Nesta primeira fase, os ditadores tiveram este recurso à mão. Quando precisavam pular a Constituição, baixavam um Ato Institucional. E é justamente o AI-1 que lhes concedeu este poder. O Ato manteve a Constituição de 1946 fazendo algumas mudanças: estabeleceu eleições indiretas para presidente, deu ao presidente o poder de alterar a Constituição, assim como o de suspender direitos políticos e cassar mandatos.
Não foram muitos os que perderam seus direitos nos primeiros meses após o Golpe. Mas o fato de que, além de Jango, a lista incluir também Juscelino Kubtischek já demonstrava que a primeira providência dos ditadores seria a de se livrar de qualquer líder popular que pudesse lhes fazer frente. Um pouco à frente, até apoiadores de primeira hora do regime, como Carlos Lacerda, seguiriam pelo mesmo caminho.
A expectativa inicial, que inclusive levou muitos liberais a apoiar o Golpe, era de que derrubado João Goulart, em 1965 haveria eleições. Era a promessa.
“Não se disse que a revolução foi, mas que é e continuará”, iniciava o preâmbulo do AI-2, baixado em 27 de outubro de 1965. “Assim o seu Poder Constituinte não se exauriu, tanto é ele próprio do processo revolucionário, que tem de ser dinâmico para atingir os seus objetivos. A autolimitação que a revolução se impôs no Ato Institucional de 9 de abril de 1964 não significa, portanto, que tendo poderes para limitar-se, se tenha negado a si mesma por essa limitação, ou se tenha despojado da carga de poder que lhe é inerente como movimento.”
O período anterior ao chumbo da Ditadura pode ser contado seguindo cada um dos 17 atos institucionais. Como a uma droga, o regime foi se viciando. Prometera um retorno às eleições livre, precisou baixar um segundo AI para justificar que não o faria. Desta vez, sua preocupação era assumir o controle da Justiça. Para isso, ampliou o número de assentos no Supremo Tribunal Federal e levou, para a Justiça Militar, quaisquer crimes enquadrados como ofensas à segurança nacional.
Os dois atos seguintes, publicados em 1966, fixou datas para eleições locais, o terceiro, e convocou o Congresso Nacional a aprovar a nova Constituição, o quarto. Era uma Constituição, naturalmente, baseada na do Estado Novo.
Claro, o discurso uma hora encontrou seu limite. Quando em 1968 manifestações populares ganharam as ruas, a imprensa começou a se agitar em críticas, e a oposição no Congresso passou a se impor de forma mais incisiva, a Ditadura baixou o mais severo, e mais conhecido, dos Atos Institucionais: o de número 5.
Eles sabiam o que estavam fazendo.
“Creio que a revolução veio não apenas para restabelecer a moralidade administrativa neste país, mas, principalmente, para criar as condições que permitissem uma modificação de estruturas que facilitassem o desenvolvimento econômico”, argumentou o ministro Antonio Delfim Netto. “Creio que a revolução, muito cedo, meteu-se numa camisa-de-força que a impede, realmente, de realizar esses objetivos.” Ele estava na reunião que decidiu por baixar o AI-5. No início, alguns dos ministros se questionaram se aquele Ato estabeleceria uma ditadura. “Eu seria menos cauteloso”, afirmou então Jarbas Passarinho, responsável pela pasta do Trabalho. “Eu admitiria que ela é ditatorial. Mas, às favas, senhor presidente, neste momento, todos, todos os escrúpulos de consciência. E quando nós encontramos a necessidade de tomar uma decisão fundamental, tudo aquilo que fundamental é em condições normais.” O ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva cravou. “Se a ordem democrática corre risco, outra razão não existe senão nos socorrermos dos instrumentos revolucionários adequados para que possamos restaurar a verdadeira democracia, autêntica democracia, que é o desejo de todos nós.” Eram 24 os presentes. Apenas um votou contra — o vice-presidente Pedro Aleixo. “Da leitura que fiz do Ato Institucional”, afirmou, “cheguei à sincera conclusão de que o que menos se faz nele é resguardar a Constituição. Eu estaria faltando um dever para comigo mesmo se não emitisse, com sinceridade, esta opinião. Porque, da Constituição — que, antes de tudo, é um instrumento de garantia de direitos da pessoa humana, de garantia de direitos políticos — não sobra, nos artigos posteriores, absolutamente nada que possa ser realmente apreciável como sendo uma caracterização do regime democrático. Do ponto de vista jurídico, eu entendo que, realmente, o Ato Institucional elimina a própria Constituição.”
(Existem os áudios desta reunião.)
E assim foi. O presidente da República foi autorizado a fechar o Congresso Nacional ou qualquer outro parlamento, se considerasse necessário. Passou a ter poder, também, para destituir qualquer funcionário público ou cassar qualquer político. Não haveria mais revisão judicial de atos do mandatário. Foi estabelecida censura prévia às artes e à imprensa. Toques de recolher e exigência de permissão da polícia para qualquer reunião política. Talvez o mais grave dentre todos, foi suspenso o habeas corpus para crimes de motivação política. Daí nasceram os anos de chumbo, com suas prisões e tortura.
O AI-6, publicado logo no início de 1969, reduziu novamente a 11 o número de ministros do Supremo. O presidente cassou aqueles de quem não gostava, aumentar os votos para garantir maioria tornou-se desnecessário. Publicado ao mesmo tempo, o AI-7 suspendeu eleições até o fim de 1970.
A partir daí, no período que o jornalista Elio Gaspari batiza de Ditadura Escancarada, os presidentes passaram a ter poder máximo e a máscara criada no AI-1 por Francisco Campos se tornou insustentável. O regime que fingia ser um tipo diferente de democracia, não tinha mais como negar ser Ditadura. Assim, os Atos Institucionais ganharam um traço quase burocrático, tocando medidas administrativas. O AI-8 permitiu aos estados fazer reformas administrativas, o AI-9 estabeleceu regras para reforma agrária, e o AI-10 regulamentou como funcionariam as destituições de funcionários públicos e cassações de direitos políticos estabelecidas pelo Ato Cinco. Qualquer funcionário público que questionasse o regime estaria sujeito a penas terríveis. O AI-11 reorganizou a estrutura administrativa dos municípios.
Se até o quinto, os AIs eram guardados para temas de gravidade, eles agora passavam a ser corriqueiros, quase que portarias burocráticas. E já insinuavam a Ditadura mais clara que nascia, na qual o presidente simplesmente baixava seus desejos e assim ficavam. Até que o AI-12 representou um novo Golpe de Estado. O presidente Arthur da Costa e Silva havia sido afastado — estava muito doente. Assumiu em seu lugar não Pedro Aleixo, mas uma junta de três militares. O vice que votara sozinho contra o AI-5 foi apeado do poder. “Enquanto durar o impedimento temporário do Presidente da República, Marechal Arthur da Costa e Silva, por motivo de saúde, as suas funções serão exercidas pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar nos termos dos Atos Institucionais e Complementares, bem como da Constituição de 24 de janeiro de 1967.”
O AI-13 deu ao Planalto o poder de expulsar quem quisesse do país. O 14 estabeleceu a pena de morte no caso de guerras — e de levantes ‘subversivos’. Eleições municipais em cidades sob intervenção federal foram estabelecidas pelo 15 — e presidência e vice-presidência foram declaradas vagas pelo AI-16, que convocou as eleições indiretas que levariam Emílio Médici ao poder. Como havia oposição ao seu nome mesmo dentro das Forças Armadas, o último dos Atos Institucionais, o de número 17, passou à reserva militares que atentassem contra a coesão das Forças.
Do Ato 6 ao 17, um total de doze, todos foram publicados em 1969. Com a chegada de Médici ao poder, eles se tornaram um instrumento obsoleto. A ideia de um constitucionalismo antiliberal já não se sustentava mais. Não havia mais arcabouço jurídico que disfarçasse a natureza do monstro.
Francisco Campos não viu. Morreu em 1968, antes de o AI-5 desmontar o regime que havia imaginado.
O Ato 5, ao tornar crua e evidente a Ditadura, foi baixado com solenidade. A reunião de ministros com presidente e vice mostra homens que escolheram o caminho de uma ditadura. Uns tentaram amenizar a decisão, outros a reconheceram abertamente, um único a rejeitou. É um dos piores momentos da história brasileira no século 20. Quando se lê ou ouve os votos de um por um, alguns com ressalvas, outros entusiasmados, ao menos uma coisa se percebe. Solenidade. Ninguém ali tratou a suspensão das liberdades como quem escreve um tuíte no meio da manhã.
Aliás… Professor da Universidade Federal Fluminense, Rogério Dutra dos Santos estudou muito Francisco Campos e o impacto de seu pensamento na história da República. Um de seus papers é Francisco Campos e os fundamentos do constitucionalismo antiliberal no Brasil. Leia.
E por falar… Carl Schmitt deve ser lido novamente. Muito de suas ideias sobre a separação entre democracia e liberalismo estão em voga. Mesmo que vários dos que falam delas não conheçam a origem. O artigo da sempre excelente Stanford Encyclopedia of Philosophy é uma introdução sólida, em inglês. O artigo da Wikipédia em portuguêsé bom.
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