sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Macarthismo Administrativo do Bolsonarismo - Claudio Gonçalves Couto (Valor)

O Macarthismo Administrativo é mais amplo ainda do que o mencionado por Cláudio Gonçalves Couto neste excelente artigo: ele começou mesmo antes do governo ter início no Itamaraty, onde o chanceler acidental mandou demitir por telefone, em dezembro de 2018, todos os subsecretários do MRE, embaixadores experientes, nomeando no lugar diplomatas mais jovens, ministros segunda classe, de sua faixa geracional, invertendo a tradicional hierarquia do serviço exterior. Uma situação que os militares descrevem como sendo a de “coroneis mandando em generais”, ou seja, um macarthismo etário. A prática continuou em outras esferas, num arbítrio inédito nos anais do Itamaraty.
Paulo Roberto de Almeida

Enviado por Christian Lynch:

MACARTHISMO ADMINISTRATIVO

(Artigo publicado pelo colega cientista político  Cláudio Gonçalves Couto
hoje, 23/01/2020, no Valor, citando meu caso como exemplo do macarthismo em questão)

Ao controlar até a nomeação de pessoas para cargos de funções sem teor partidário, governo aparelha a máquina pública

Um dia antes da divulgação de performance de inspiração nazista que lhe custou o cargo, o então secretário especial da Cultura, Roberto Alvim, manifestou-se no Twitter sobre a indicação do cientista político Christian Lynch para a chefia do Serviço de Pesquisa Ruiano, na Fundação Casa de Rui Barbosa. O posto, segundo o emulador de Goebbels, não poderia ser ocupado por Lynch por ter ele “ideias execráveis sobre Jair Bolsonaro”. Mais que isso, sugeriu que apenas não o dispensaria por se tratar de servidor concursado da Fundação em que exerceria o cargo. Assim, determinou à presidente da organização que cancelasse a nomeação do desafeto.

A missão da Casa de Rui Barbosa é preservar não só memória e obra de seu patrono, como promover “a pesquisa, o ensino e a difusão do conhecimento sobre temáticas relevantes para a história do Brasil”. Lynch, como pesquisador do pensamento jurídico, político e social brasileiro, em especial o de Rui, reunia os atributos profissionais e intelectuais exigidos para a ocupação da chefia que fora oferecida - que é, inclusive, do setor em que trabalha naquela entidade. Bolsista de produtividade do CNPq, com projetos e publicações sobre o tema do setor que dirigiria, seria natural exercer a função e ter o comissionamento condizente com a nova responsabilidade.

Comissionamento nem sempre requer laços partidários. Órgãos de pesquisa como esse, assim como fundações, universidades, institutos e autarquias, contam com cargos comissionados cujo exercício depende de nomeação por superiores hierárquicos. São chefias de departamento, coordenações de curso, superintendências e coisas do tipo. A natureza de tais cargos requer a nomeação por superiores não em decorrência da necessidade de alinhamentos pessoais ou político-partidários, mas pelo reconhecimento da competência profissional e da experiência, requerida para se desincumbir da função.

No caso de uma instituição de pesquisa na área de política, nada mais natural que, por sua própria atividade profissional, pesquisadores escrevam textos críticos sobre os mais diversos aspectos desse mundo - como o governo do dia. E foi um artigo de Lynch que levou o secretário, leal escudeiro do presidente, a impedir sua nomeação. Fiel a seu ofício, o autor teceu considerações críticas acerca do bolsonarismo, observando numa passagem: “A adesão ao extremismo ideológico é escada para os candidatos que desejarem assumir cargos na administração”. Como observou depois o próprio Lynch, o cancelamento de sua nomeação confirmou tal afirmação.

Mas não se trata apenas da adesão ao extremismo bolsonarista, como também a adulação do chefe. Foram as “ideias execráveis” de um servidor sobre o presidente que justificaram o veto. Da mesma forma, foi a atitude severa de outro funcionário, José Olímpio Augusto Morelli, que gerou, em março de 2019, sua exoneração do cargo em comissão de Chefe do Centro de Operações Aéreas do Ibama. Morelli foi o fiscal que multou Bolsonaro por pescar ilegalmente na estação ecológica de Angra dos Reis. Era, há mais de uma década e meia, servidor concursado do órgão em que exercia sua chefia e foi secretário de Meio Ambiente do município. Ou seja, contava com atributos técnicos e experiência para o cargo, mas foi exonerado por ter-se tornado desafeto do presidente ao cumprir o dever funcional e multar quem pesca ilegalmente.

Em maio do ano passado, o Decreto 9.794 conferia à Agência Brasileira de Inteligência (Abin) a atribuição de fiscalizar a vida pregressa de ocupantes de cargos comissionados em instituições federais de ensino superior, submetendo-as à Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República. Assim, a ocupação de um cargo como de diretor de um centro de ensino, ou de uma faculdade, dependeria de avaliação do gabinete presidencial. Que propósito haveria em controlar tão centralmente a nomeação para um cargo dessa monta, no âmbito de uma instituição universitária que, por sua função e determinação constitucional, goza de autonomia? É demasiado.

Nem todo cargo comissionado na administração pública se reveste de caráter político-partidário ou de lealdade pessoal. Quanto mais próximo aos representantes eleitos, mais relevante e legítimo é tal critério; porém, quanto mais próximo da ponta, ou da burocracia do nível de rua, menos adequado é que o preceito pessoal ou partidário dos dirigentes máximos do governo seja determinante. Pelo contrário, nesse nível do aparato governamental o que deve contar, em prol do bom desempenho da gestão, do cumprimento de funções administrativas, do pluralismo e da impessoalidade, são parâmetros de desempenho e experiência no âmbito das atividades exercidas. Noutros termos: em tal patamar, comissionamento não se justifica por confiança política, mas por reconhecimento e responsabilização decorrentes do bom desempenho profissional.

Não seguir tal diretriz - ou pior, violá-la deliberadamente - implica o aparelhamento e na partidarização da máquina pública. Ou, nos termos de Lynch na conclusão de seu artigo: autoritarismo, hierarquia mantida pela violência, personalismo, nepotismo, guerra política, intimidação, espírito de vingança, perseguição e exercício da violência psicológica.

Portanto, o viés autoritário do bolsonarismo não se traduz apenas em ideias antipluralistas, tensionamento constante com os demais poderes do Estado, enaltecimento da violência ou ataque reiterado à imprensa, à ciência e às artes não alinhadas. Ele também se faz presente na forma como o Poder Executivo organiza sua estrutura administrativa até as fímbrias mais remotas, aparelhando-a com aduladores e correligionários, bem como perseguindo críticos ou não alinhados cuja crítica ou não alinhamento decorrem justamente do cumprimento de obrigações funcionais.

A contraface desse aparelhamento é a ideia, presente na proposta de reforma administrativa, de proibir servidores de terem filiação partidária. Ora, se isso é irrelevante para o bom desempenho de suas funções, tal regra tem apenas um propósito: instaurar um macarthismo administrativo.

Cláudio Gonçalves Couto; é cientista político, professor da FGV-SP e colunista convidado do “Valor”. Maria Cristina Fernandes volta a escrever em fevereiro

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