Por acaso, Gabriel Heller vai estar no meu seminário jurídico avançado.
Paulo Roberto de Almeida
A Revolução do Porto no Correio Braziliense: imprensa e política no processo da independência brasileira
Gabriel Heller
por Gabriel Heller
O Estado de S. Paulo, 26/07/2019
https://estadodaarte.estadao.com.br/a-revolucao-do-porto-no-correio-braziliense-imprensa-e-politica-no-processo-da-independencia-brasileira/
https://estadodaarte.estadao.com.br/a-revolucao-do-porto-no-correio-braziliense-imprensa-e-politica-no-processo-da-independencia-brasileira/
O turbilhão de informações precariamente aprofundadas e analisadas que se despeja atualmente sobre os cidadãos obscurece a história da imprensa e parte de suas funções. Mais do que apenas transmitir as novidades oportunamente sob vestes de uma mal simulada imparcialidade, a imprensa teve, factual e idealmente, uma atribuição formativa, no sentido de fornecimento de subsídios para a construção de uma opinião pública consciente que não fosse apenas a versão das massas da opinião publicada.
Foi este o jornalismo praticado por Hipólito José da Costa no Correio Braziliense, periódico cuja duração acompanhou a do processo de independência brasileiro, que teve seu marco inicial em 1808, com a vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, e seu termo formal em 1822, com a declaração de independência propriamente dita. Considerado o primeiro periódico brasileiro, publicado diretamente para os habitantes destas terras, foi integralmente editado por Hipólito em Londres, onde não sofreria com ataques à liberdade de imprensa.
Como deixou claro na primeira edição do Correio, o publisherpretendia tirar “das trevas, ou da ilusão, aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano”; mas não pretendia fazê-lo apenas jogando uma enxurrada de novidades – o que seria inútil, dada a distância e, consequentemente, o tempo que seu jornal levava para chegar ao Brasil: desejava “mostrar, com evidência, os acontecimentos do presente e desenvolver as sombras do futuro”, representar “os fatos do momento, as reflexões sobre o passado e as sólidas conjecturas sobre o futuro”.
Aqueles que se debruçaram sobre os volumes do Correio divergem sobre o momento em que Hipólito passou a advogar pela independência brasileira. De todo modo, a leitura de suas análises sobre a Revolução do Porto, entre 1820 1822, permite a conclusão de que o editor, até quando foi possível, rejeitou todo sinal de retorno do país ao status colonial e defendeu a manutenção da união entre Brasil e Portugal. Exatamente como prometeu em sua primeira edição, o Correio Braziliense abasteceu os brasileiros com os fatos que tinham lugar em Portugal, analisados com olhos no passado a partir da premissa de que seria “fácil prever as coisas do futuro pelo conhecimento da História e aplicar os mesmos remédios dos antigos, quando se achem expressos, ou inventar outros análogos às circunstâncias”.
Fugindo de Napoleão com escolta dos ingleses, a Coroa e sua corte chegaram ao Brasil em 1808, deixando os portugueses sob a tutela da Inglaterra e, a seguir, sob um governo marcado por privilégios, corrupção e descaso para com o povo. De grande Metrópole, Portugal passara em 1815 à condição de simples membro de um Reino Unido com Brasil e Algarves, sequer lhe cabendo a posição de sede da monarquia. Em 1820, em meio ao sopro liberal e constitucionalista que se espalhava pela Europa e pelas Américas, os lusitanos disseram “basta” a essa condição e exigiram, além da convocação de Cortes – corpo legislativo – para a elaboração de uma Constituição, o imediato retorno de Dom João VI a Lisboa.
Assistindo a tudo de Londres, mas escrevendo como se estivesse, ao mesmo tempo, também no Porto, em Lisboa e no Rio de Janeiro, Hipólito fornece a seus leitores narrativa precisa dos fatos, transcrição de documentos e análises que marcam sua posição sem desfaçatez ou mensagens implícitas. As edições do Correio que se seguem justificam a afirmação de Barbosa Lima Sobrinho de que o publisher se mostrava “um jornalista que é, acima de tudo, um político de extraordinária visão”. Nessa perspectiva, os comentários de Hipólito oferecem inúmeras lições de ciência política e administração pública.
A Revolução do Porto tinha como objetivo imediato a convocação das Cortes, que assumiriam as atribuições do que chamaríamos hoje de Assembleia Constituinte. Desde o princípio, assim, pairou a discussão acerca do espaço que teria o Brasil nesse colegiado, eis que a antiga colônia, então parte do Reino Unido, seria inevitavelmente afetada pelo desenlace da rebelião lusa. Ao tratar do tema logo após a eclosão da revolta, Hipólito destacava os problemas que adviriam da instituição de formas representativas de governo no Brasil, pela falta de “fundamentos” e de “instrução” de nosso povo; a exemplo da América Espanhola, a falta de homens capazes de formar governos organizados em terras nas quais todos se supunham políticos, mas desconheciam o funcionamento dos negócios públicos, só poderia gerar “confusão e calamidades”. Advogava, nesse sentido, pela adoção de “instituições constitucionais moderadas, adaptadas ao estado de civilização e instrução do país”.
Defensor da união entre Brasil e Portugal em nome da integridade da monarquia, o Correio passou meses a alertar que o estabelecimento de instituições distintas nos dois territórios e a tentativa de resgatar a sujeição da ex-colônia não poderiam ter outro resultado que não a cisão; a diversidade de instituições políticas, advertiu, induz a diversidade de caráter, de interesses e de máximas. Em várias edições, retomou-se a relação entre os costumes e as instituições, para destacar que governantes que não agem para adequar os sistemas políticos à realidade dos representados incorrem em omissão que, cedo ou tarde, levará a uma indesejável subversão da ordem.
Da mesma forma, as técnicas diversionistas e a recusa dos donos do poder em reconhecer os fatos, os costumes e os interesses dos indivíduos são vistas como fonte das rebeliões, porque levam a perder de vista as verdadeiras origens da insatisfação popular, e, se não se chega a um diagnóstico correto, de forma alguma se indicará o remédio apropriado. Aceitando que a Revolução do Porto tivesse sido necessária para estancar a sangria que o desgoverno gerava em Portugal, Hipólito confortava-se pela ausência de conflitos violentos. Inquietava-se, contudo, com a imprevisibilidade inexorável à sublevação, clamando a todo momento que “el-rei” tomasse para si a causa dos revoltosos e promovesse, institucional e ordeiramente, as reformas de que o país tanto carecia.
O Correio chamava a atenção também para o fato de que os deputados só seguiriam o caminho desejado pelos eleitores se as discussões fossem efetivamente públicas e se a imprensa fosse realmente livre. Nesse caminho, repreendeu a promulgação de uma lei sobre liberdade de imprensa que “se deveria denominar ‘lei para restringir a liberdade da imprensa’.” Quando as Cortes finalmente estabeleceram as Bases da Constituição, deveras analíticas para meras “bases”, o publisher ressaltou as dificuldades que adviriam pelo fato de se definir uma série de questões substantivas sem que se definissem a divisão de poderes e as garantias para proteger os princípios fundamentais que se estabeleciam. Antecipando uma preocupação que só seria bem equacionada com o desenvolvimento do controle judicial de constitucionalidade, Hipólito pondera a inutilidade de se declarar na Constituição a liberdade para fazer tudo o que a lei não proíbe, se essa mesma Constituição não trouxer “coisa alguma que se destine a coarctar o Poder Legislativo”, isto é, para impedir a edição de normas contrárias à Lei Fundamental.
A evolução dos trabalhos das Cortes demonstrou o acerto dos temores de Hipólito da Costa, uma vez que a postura dos constituintes portugueses não pôde dissimular a desconsideração pelas necessidades e pelos anseios do Brasil e de seus habitantes, que, àquela altura, não aceitariam rebaixamento na condição de “reino irmão”. Já em 1822, o jornalista sucumbiu aos fatos e reconheceu: “enganamo-nos em nossas esperanças: as Cortes precipitaram o Brasil, rompendo com ele sem necessidade”.
Consciente ou inconscientemente, o próprio Hipólito participou decisivamente da separação que por anos renegou: abastecendo os brasileiros com informações e análises claras, precisas e lúcidas sobre o que se passava em Portugal e o que pretendiam os portugueses em relação ao Brasil, o Correio Braziliense inspirou e forneceu ânimo e fundamentos para a independência que não tardaria. Na feliz construção de Barbosa Lima Sobrinho, resume-se a contribuição do Correio – e, inadvertidamente, o que se deveria esperar de qualquer meio de imprensa: “a lealdade com que discute os assuntos, menos para confundir do que para cooperar, como se fosse o dono de uma balsa a oferecer os seus serviços para a travessia dos rios caudalosos, sem outro interesse do que o de proporcionar a travessia”.
Bibliografia em ordem de citação
COSTA, Hipólito José da. Introdução. Correio Braziliense, Londres, vol. I, junho de 1808. In: LIMA SOBRINHO, Barbosa (org.). Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977, p. 11.
COSTA, Hipólito José da. Fim do Primeiro Ato na Revolução Portuguesa. Correio Braziliense, Londres, vol. XXVI, maio de 1821. In: PAULA, Sergio Goes de (org.). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 194.
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977.
COSTA, Hipólito José da. Revolução do Porto. Correio Braziliense, Londres, vol. XXV, setembro de 1820. In: PAULA, Sergio Goes de (org.). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 65.
COSTA, Hipólito José da. Procedimentos das Cortes em Portugal. Correio Braziliense, Londres, vol. XXVI, abril de 1821. In: PAULA, Sergio Goes de (org.). Hipólito José da Costa. São Paulo: Editora 34, 2001, p. 184/185.
COSTA, Hipólito José da. Procedimentos do Brasil (Em Portugal não se deseja a união do Brasil, mas só a sua abjeta sujeição). Correio Braziliense, Londres, vol. XXIX, julho de 1822. In: LIMA SOBRINHO, Barbosa (org.). Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977, p. 495.
LIMA SOBRINHO, Barbosa. Antologia do Correio Braziliense. Rio de Janeiro: Cátedra, 1977.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.