terça-feira, 7 de abril de 2020

O Brasil de Jair Bolsonaro e a diplomacia errática - Jean-Jacques Kourliandsky

Conjuntura política

O Brasil de Jair Bolsonaro e a diplomacia errática

Observatório da Imprensa, Edição 1082

por Jean-Jacques Kourliandsky

7 de abril de 2020

http://www.observatoriodaimprensa.com.br/conjuntura-politica/o-brasil-de-jair-bolsonaro-e-a-diplomacia-erratica/

 

Um ano e alguns meses após a posse de Jair Bolsonaro na presidência do Brasil, o cenário da diplomacia coleciona bravatas, gafes e ações de subserviência deploráveis, incoerentes e contraditórias, que afetam decisivamente a imagem internacional do Brasil, como analisa Jean-Jacques Kourliandsky neste texto.

Um ano e pouco mais tarde, o que podemos dizer? Aqueles que se atrevem a comentar a diplomacia bolsonarista reconhecem sua dificuldade em tirar conclusões minimamente coerentes. “O choque do real”, relatou Eliane Oliveira, editorialista do jornal O Globo, em 3 de fevereiro de 2019, obrigou o governo Bolsonaro a “retificar a política externa”. Seu congênere de São Paulo, o Estadão, em 14 de março de 2019, dava um passo a mais ao falar em “diplomacia medíocre”. Alguns meses mais tarde, Nathalia Passarinho, jornalista da BBC, sem outra alternativa, relatava que a “política externa de Bolsonaro era uma política de risco”¹.

O programa do candidato Bolsonaro revelava a preferência por um mundo “livre” e bíblico, inspirado nos Estados Unidos, em Israel e nos dragões asiáticos. Fazia-se o anúncio, assim, de uma reorientação abrupta da participação

brasileira nas instituições regionais criadas pela soberania sul-americana nos anos 2003-2016, de uma revisão das relações com a China e com os países árabes, de uma ruptura com a política de colaboração Sul-Sul e de um distanciamento das instituições multilaterais, do Mercosul à COP².

Tudo isso foi vigorosamente reafirmado nos primeiros dias da posse da nova equipe presidencial. O presidente reservou ao primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, um acolhimento privilegiado após as cerimônias da posse, no 1º de janeiro de 2019. A transferência da embaixada brasileira de Tel-Aviv para Jerusalém foi relembrada em novo anúncio.

O ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, no dia seguinte à posse, foi além daquilo que se esperava ao apresentar seu plano de atuação aos embaixadores atuantes em Brasília e ao pessoal do Ministério de Relações Exteriores. Ele expressou suas convicções sob a forma de uma pregação religiosa, seguindo a agulha da bússola evangélica de seu mentor.

Gnosesthe ten aletheian kai he eleutherosei humas/ E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, disse aos presentes, antes de entregar-se a uma longa exegese de São João, apresentada como fundamento de uma nova diplomacia “livre de influências ideológicas”…

Em Davos, diante da elite financeira e econômica mundial, Jair Bolsonaro, alguns dias mais tarde, em 22 de janeiro de 2019, também emitiu uma mensagem messiânica, acusando aberta e ostensivamente seus predecessores de esquerda de “corrupção ideológica”. Às Nações Unidas, no dia 24 de setembro seguinte, ele precisou seu pensamento da seguinte maneira: “Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos levou a uma situação de corrupção”, e alvejou explicitamente Cuba e Venezuela, o Foro de São Paulo, mas também, indiretamente, a China. O Brasil anunciou, no dia 4 de janeiro de 2019, sua retirada do Pacto de Marrakech, relativo ao acordo mundial sobre as migrações internacionais, e renunciou à organização da COP 25/2019. Indicou pretender revisar sua presença no Mercosul e tudo o que mais ou menos visasse consolidar a política do multilateralismo.

A aliança com o “santo dos santos”, os Estados Unidos de Donald Trump, foi rapidamente confirmada, tanto em palavras como em atos. O alinhamento diplomático foi incondicional. O Brasil, pela primeira vez em sua história nas Nações Unidas, votou contra a resolução que condena o embargo dos Estados Unidos a Cuba. O Brasil votou contra todas as resoluções críticas a respeito do Estado de Israel. O Brasil associou-se à política de ruptura com o Irã defendida pelos Estados Unidos de Donald Trump. Participou de forma ativa em tudo que pudesse desestabilizar Nicolás Maduro na Venezuela, como no Grupo de Lima e na OEA (Organização dos Estados Americanos), no Tiar (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca) e no Prosul (Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul)³.

As novas autoridades no governo também deram sinal verde para a cessão da joia tecnológica brasileira, a empresa Embraer, à norte-americana Boeing. A base de Alcântara, base espacial brasileira, foi aberta para a NASA. O canteiro de obras de submarinos construídos sob licença francesa recebeu a visita do chefe do comando sul dos exércitos norte-americanos e suas equipes.

Essa diplomacia ideologizada e de servidão voluntária em relação aos Estados Unidos tem mostrado, muito rapidamente, seus limites. Entre os principais parceiros do comércio exterior brasileiro, podemos destacar, com efeito, a China comunista, os países árabes e a Argentina novamente peronista. Os atores econômicos brasileiros assinalaram rapidamente que as intrigas religiosas aos moldes da guerra fria deveriam se restringir ao consumo interno, e que era preciso encontrar um comportamento realista em matéria de política externa.

A embaixada do Brasil em Israel ainda está em Tel-Aviv. O Brasil acolheu a China em Brasília em uma reunião da cúpula dos Brics. Jair Bolsonaro concordou em visitar a Índia entre os dias 26 e 28 de janeiro de 2020, a fim de reforçar os laços estabelecidos pelo governo Lula. O ministro das Relações Exteriores retomou o caminho da África, continente que ocupou um lugar notável tanto diplomaticamente quanto comercialmente nos anos 2006/2016.

Esse revisionismo costurado sob a pressão daqueles que facilitaram a vitória de Bolsonaro permanece efetivamente sob a forma de um bricabraque que se reforma diariamente. As relações com Israel permanecem centrais. No entanto, a incultura e os improvisos dos responsáveis, que mal conseguem sair de suas redes sociais, continuam a pregar peças na diplomacia Brasileira. Jair Bolsonaro, que em Israel classificou o nacional-socialismo hitleriano como uma ideologia condenável, por ser socialista e comunista, foi forçado a se retificar pela voz de seu vice-presidente. O que não impediu seu secretário da Cultura, alguns meses depois, de se referir aos ensinamentos de Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Adolf Hitler, provocando com isso a ira de Israel e da comunidade judaica brasileira. O secretário foi obrigado a pedir demissão.

Com falta de poder, ou vontade, para instituir uma variante de regimes totalitários fascistas, Jair Bolsonaro e suas equipes se referem a um nacionalismo de circunstância, ao gosto do cliente. A relação com a Índia, construída por Lula, seria parte de um nacionalismo compartilhado pelos dois governos e mutuamente proveitoso. As agressões verbais contra a França, seu presidente e sua esposa seriam de um nacionalismo patriótico: o chefe de Estado francês agrediu verbalmente seu homólogo sem o uso de luvas diplomáticas. No entanto, Bolsonaro coloca seu nacionalismo no bolso quando se trata dos Estados Unidos, quaisquer que sejam os comentários e decisões de Donald Trump. Já é possível fazer um primeiro balanço diplomático dessas idas e vindas caóticas. O Brasil adquiriu uma respeitabilidade internacional inédita entre 2003 e 2016. Isso se deve, sem dúvida, às circunstâncias econômicas favoráveis, mas também à definição de uma política externa atenta aos interesses nacionais, mais cooperativa, articulada em numerosas iniciativas criadas e conduzidas por uma equipe excepcional, o presidente Lula da Silva, o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e o conselheiro diplomático, Marco Aurélio Garcia.

Jair Bolsonaro declarou, em 18 de março de 2019, em Washington, que a prioridade das prioridades seria não construir, mas desfazer o que existia antes, julgado por ele como ideológico e comunista. Essa ação de destruição foi levada a cabo com êxito, desde 1º de janeiro de 2019. Para o bem de quem? Nem do Brasil, relegado aos degraus inferiores da influência internacional, nem mesmo para o bem de Jair Bolsonaro, uma vez que ninguém o leva a sério nos fóruns internacionais – a tal ponto de, em 2020, ele ter decidido não participar do Fórum de Davos.

Celso Lafer, ex-ministro das Relações Internacionais de um presidente representante do establishment brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, dispõe de um pequeno opúsculo que define da seguinte maneira como deve ser a política externa de um país: ela deve “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre o seu destino”⁴. Mas a quem, no Brasil, além de São João e Donald Trump, referentes exteriores de Jair Bolsonaro, seria permitido “ampliar o poder de controle de uma sociedade sobre o seu destino”?

NOTAS

¹ BBC Brazil, 8 de outubro de 2019.
² NT.: COP – Sigla referente a Conferência das Partes. É o órgão internacional supremo decisório no âmbito da Convenção sobre Diversidade Biológica – CDB.
³ NT.: Em março de 2019, por meio de decreto presidencial, Bolsonaro dispensa americanos da obrigatoriedade de visto para entrar no Brasil, de forma unilateral, em contraposição à política anterior de reciprocidade quanto aos critérios e exigências de outorga de vistos.
⁴ Celso Lafer, A identidade internacional do Brasil e a política externa brasileira, São Paulo, Editora Perspectiva, 2007, p. 16.

Texto publicado originalmente em francês, em 4 de fevereiro de 2020, no site da Associação Nouveaux Espaces Latinos: Sociétés & Cultures de l’Amérique Latine & des Caraïbes, com sede em Lyon – França. Tradução de Joseane Bittencourt, Maísa Ramos e Luzmara Curcino.

***

Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina da Fundação Jean-Jaurés, em Paris, e pesquisador junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe.

 

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