EMBARGOS CULTURAIS
Euclides da Cunha e a história como testemunha da brutalidade
É preciso estudar os autores brasileiros. Euclides da Cunha (1866-1909) revela-nos a violência cometida contra os sertanejos do interior da Bahia (Canudos, mais especialmente), a par da desolação dos seringueiros e da Amazônia. Euclides da Cunha é uma figura contraditória. Estudioso meticuloso e dedicado, trabalhador incansável, hipocondríaco, republicano que se irritou com a república, positivista que refutou Floriano Peixoto, pai carinhoso nas cartas, marido traído que foi assassinado pelo amante da esposa, em horrível duelo, no qual o amante agiu inegavelmente em legítima defesa. Uma vida marcada pela tragédia e pelo heroísmo. Nada singular. Euclides é a história em forma de denúncia da brutalidade.
Euclides foi salvo, por um triz, da pena de enforcamento, prevista no Código Militar, que poderia lhe ser aplicada após o comentadíssimo episódio do sabre. Conta-se que os cadetes da Escola Militar pretendiam deixar a caserna para saudar o republicano Lopes Trovão, que passava pelo Rio de Janeiro. O Império vivia seus últimos momentos, e era latente um confronto entre os militares e o Imperador. O general comandante da escola proibiu a saída dos alunos, sob o pretexto de que o Ministro da Guerra faria uma inspeção na tropa. À hora em que estavam formados para a revista o cadete Euclides (então com 22 anos) adiantou-se, tentou quebrar o sabre, jogando-o aos pés do Ministro. Foi detido, e por intervenção de seu pai junto ao Imperador teve a pena comutada para afastamento do Exército. Escapou da forca. Entrou para a história. Júlio de Mesquita, dono e editor da Província de São Paulo (hoje o Estadão) interessou-se pelo rapaz, que passou a assinar uma coluna de política nesse importante jornal. Era o ano de 1888. Começa o trilema que marcará a vida de Euclides: exército, política e literatura, em forma de jornalismo.
Alguns anos depois do episódio do sabre, em carta dirigida a seu sogro, General Sólon Ribeiro, datada de 12 de agosto de 1897, Euclides relatou que fora convidado para estudar a região de Canudos, na Bahia. Traçaria os pontos principais da campanha. Confirma que havia aceitado. Dizia que o assunto era importante, e que “estava em jogo a felicidade geral da República”. Já em Canudos, em carta ao advogado Reinaldo Porchat, seu amigo, relatava que no sertão da guerra a vida era insípida e lúgubre, e que a distração consistia em “assistir à chegada de feridos, assistir à partida das tropas”. As informações que Euclides colheu no interior da Bahia constituem a base do livro “Os Sertões”; a primeira edição é de 1902. As edições posteriores, revistas pelo autor ainda em vida, revelam uma guinada na forma de escrever. Euclides abrasileirou sua escrita, adotando prosódia e ortoépica que distintas das formas castiças de Portugal, que tanto conhecia. Abandonou as ênclises.
Há no Brasil uma fortíssima linha de pesquisa em torno de Euclides da Cunha, sobressaindo-se Walnice Nogueira Galvão, a quem, entre outros importantes trabalhos, se deve a publicação das cartas de Euclides (ao lado de Oswaldo Galloti), bem como dos autos do processo referente a seu trágico fim. Há também a inestimável obra biográfica de autoria de Roberto Ventura, precocemente falecido, em acidente de automóvel. Toda a inteligência brasileira já opinou sobre Euclides: Miguel Reale, Gilberto Freyre, Fernando Henrique Cardoso, José Guilherme Merquior. À época de Euclides, há José Veríssimo e Araripe Júnior. Brito Broca também deixou passagens memoráveis sobre Euclides.
Euclides da Cunha nasceu na Fazenda Saudade, em Cantagalo, no Rio de Janeiro. Estudou engenharia, formando-se na Escola Militar, na Praia Vermelha, na cidade do Rio de Janeiro, depois de readmitido ao Exército, já na era republicana. Era o mais avançado centro de estudos que havia no Brasil. Pontificavam as ideias positivistas e cientificistas. Euclides foi aluno de Benjamin Constant. Bem além das ciências exatas, estudava-se com profundidade a filosofia, com foco no inglês Herbert Spencer e na concepção de que os mais aptos triunfam. Também foi preponderante a influência de Charles Darwin. Euclides estudou Auguste Comte, e só não foi um positivista mais extremado provavelmente porque resistia aos fundamentos quase religiosos dessa escola. A concepção de herói em Thomas Carlyle também influenciou Euclides, na visão de mundo e no estilo.
“Os Sertões” é vigorosa denúncia às atrocidades cometidas contra uma população esquecida do interior brasileiro. Vale como uma primeira tomada de consciência para com um problema complexo na construção da identidade nacional. O problema persiste, ainda que sob outras perspectivas. Euclides é cartesiano. O livro se divide em três partes: a terra, o homem e a luta. Euclides é ambicioso, escreve sobre vários assuntos: geologia, botânica, sociologia, antropologia, política, mineralogia, hidrologia, frenologia, história. Especialistas apontam que há muitos erros e premissas mal fundamentadas.
“Os Sertões” tem muitos méritos, especialmente, na medida em que Euclides provoca olhares sobre uma gente explorada. O livro foi um sucesso. A primeira edição esgotou-se rapidamente. O estilo de Euclides é difícil. Abundam adjetivos, superlativos e oximoros. Tem-se a figura do “pleonasmo euclidiano”. Barroco, e ao mesmo tempo esforçado para o alcance de uma precisão científica, há muito leitor que desiste logo no primeiro capítulo. Vale uma leitura que principie com a descrição do nativo, que Euclides define como o jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo, o caipira simplório.
Euclides denunciou a campanha de Canudos, que definiu como um crime, “na significação integral da palavra”. É um libelo contra a campanha militar, uma acusação direta contra o governo. Euclides já não estava no Exército. Denunciou os soldados como “mercenários inconscientes”. Segundo Euclides, os agressores viviam pacificamente à beira do Atlântico, nos parâmetros de princípios civilizados elaborados na Europa, bem armados pela indústria alemã.
“Os Sertões” principia com uma “nota preliminar”. Euclides observa que o livro foi escrito “nos raros intervalos de folga de uma carreira fatigante”. A maior parte foi redigida em São José do Rio Pardo, no interior de São Paulo, onde trabalhava como engenheiro. Pretende apresentar um estudo sobre as “sub-raças sertanejas”. A visão de Euclides é presa ao paradigma dominante da época. E nem poderia ser de outra forma. Somos filhos e produtos de nosso tempo. Não se pode julgá-lo sem o benefício do retrospecto. Predominava um determinismo que vinculava o homem ao meio. É o que justifica, metodologicamente, a descrição inicial da região inóspita, onde os fatos ocorreram.
Euclides recria o ambiente. A descrição da seca é assustadora. Logo no início do livro Euclides trata de um “higrômetro inesperado e bizarro”. Descreve um soldado morto, cujo corpo a seca manteve intacto, como se fosse uma múmia. Cito: “braços largamente abertos, face volvida para os céus – um soldado descansava. Descansava... havia três meses. Morrera no assalto de 18 de julho (...)”. O autor imagina a morte e a sorte (falta de) do soldado mumificado: “sucumbira corpo a corpo com um adversário possante”; não fora percebido, e por isso não fora enterrado com os demais mortos. Estava intacto; murchara apenas: “braços largamente abertos, rosto voltado para os céus, para os sois ardentes, para os lugares claros, para as estrelas fulgurantes”. Cena de horror: “mumificara conservando os traços fisionômicos, de modo a incutir a ilusão exata de lutador cansado, retemperando-se em tranquilo sono, à sobra daquela árvore benfazeja”. Com aquela estranha e inesperada imagem, Euclides enfatizava a secura extrema dos ares. Por perto, ainda, havia cavalos mortos, semelhantes às “espécies empalhadas, de museus”. As lufadas moviam as crinas dos cavalos tombados.
A descrição do homem, ainda que hoje saibamos imprecisa e cheia de generalizações, é uma peça especial de literatura e de antropologia. É o perfeito relato de um paradigma. Euclides trata da complexidade do problema etnológico no Brasil. Faz digressões em torno do vulto do jagunço. Explicita a corporatura do sertanejo. Expõe a figura de Antonio Conselheiro, disserta sobre os habitantes de Canudos.
Para Euclides, a gênese das raças mestiças no Brasil era um problema a desvendar. Duvidava que pudéssemos um dia ter uma unidade de raça. Duvidava de que poderia haver um tipo antropológico brasileiro. Acreditava na hipótese do autoctonismo, isto é, o nativo brasileiro não era o resultado de uma migração que se perdia nos tempos. Assim, afirmava que “os selvícolas, com seus frisantes caracteres antropológicos, podem ser considerados tipos evanescentes das velhas raças autóctones da terra”. Euclides contrastava o interior com o litoral. Entendia que “estávamos condenados à civilização”. Acrescentava que “ou progredimos, ou desaparecemos”. Ao contrário de Gilberto Freyre, Euclides dedicou apenas três linhas ao português.
Elogia Nina Rodrigues, então na moda, a quem reverenciava como um “investigador tenaz”. Euclides era um darwinista convicto; a seleção natural, escreveu, “mais que quaisquer outras, se faz pelo uso intensivo da ferocidade e da força”. Nesse sentido, darwinista, percebia o mestiço como um intruso, perdido na “concorrência admirável dos povos, evolvendo todos em luta sem tréguas, na qual a seleção capitaliza atributos que a hereditariedade conserva”.
Euclides entendia o mestiço como portador de um desequilíbrio nervoso incurável. O mestiço seria, na visão de Euclides, um desequilibrado. A mestiçagem, prossegue Euclides, um retrocesso. Era obcecado com concepções eugênicas de raça superior, que matizavam o paradigma da época, escrevendo que “todo homem é antes de tudo uma integração de esforços da raça a que pertence e o seu cérebro é uma herança”. Aproximava o mestiço do mulato, raça dominada, “(...) a besta de carga adstrita aos trabalhos sem folga”.
Na leitura dos Sertões, percebe-se, no entanto, que Euclides vai se afeiçoando ao mestiço, em quem descobre um injustiçado ser humano que a política convencional satanizou, com apoio da imprensa, num dos maiores crimes de preconceito vividos na história do Brasil. Euclides era o tipo de homem que somente retrocedia quando o passo para frente fosse o suicídio. Tratarei, nas próximas intervenções, das cartas de Euclides, da guerra de Canudos, das impressões que Euclides colheu na Amazônia, e dos autos do processo de seu trágico fim. É preciso, mais do que nunca, estudarmos os autores brasileiros.
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico, 19 de julho de 2020, 8h00
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