terça-feira, 10 de novembro de 2020

Amazônia: plano de Mourão retrocede aos tempos do “espaço vital” - Claudio Angelo

 Pelo que se constata aqui, o planejamento estratégico do desgoverno Bolsonaro desceu ao nível da indigência mental.

Paulo Roberto de Almeida 

Plano de Mourão para Amazônia é mistura de Golbery, Göring e Borat

Tese nazista do ‘espaço vital’, delírios sobre cobiça estrangeira e mentira sobre ONGs adornam Powerpoint constrangedor do Conselho da Amazônia.

CLAUDIO ANGELO
Especial para Direto da Ciência*
Terça-feira, 10 de novembro de 2020, 12h25.

Borat Sagdiyev não faria melhor pela honra da gloriosa nação do Cazaquistão. A apresentação que o vice-presidente Hamilton Mourão enviou para o Ministério da Economia no último dia 3, contendo o plano dos militares do Conselho da Amazônia para “a proteção e o desenvolvimento sustentável” da floresta, tem passagens que lembram as maquinações patrióticas do repórter ficcional criado pelo humorista Sacha Baron Cohen. O powerpoint de 24 slides é uma mistura de desinformação, delírios soberanistas e gafes que o racista Borat bem poderia ter cometido, como classificar povos indígenas como parte da “biodiversidade” amazônica.

Há até mesmo um mapa do Cazaquistão no quinto slide da apresentação, para ilustrar um conceito aparentemente ainda em voga na caserna: o de “espaço vital”, criado na Alemanha no século 19 e popularizado no 20 por figuras como Adolf Hitler e Hermann Göring. Os nazistas alegavam que precisavam de “espaço vital” (Lebensraum) para a pátria alemã, daí a necessidade de expandir as fronteiras do Reich, ocupando a Áustria e a Polônia. Mourão e seus green caps apontam a Amazônia como “espaço vital” para o mundo, decretando que a “sobrevivência do poder hegemônico de países como Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos depende de acesso à vasta fronteira internacional de recursos naturais estratégicos”. A China, prosseguem, teria entrado agora nesse jogo, direcionando sua política externa para “regiões ricas em recursos naturais estratégicos”.

O corolário dessa afirmação é que a Amazônia pode ser invadida a qualquer momento – e o Brasil precisa pagar a taxa de proteção aos militares para impedir que isso ocorra. Ou, em miliquês corrente, “assegurar sua soberania pela coordenação e integração de políticas públicas por meio do Cnal [Conselho Nacional da Amazônia Legal]”. Para reforçar esse ponto, o Ministério da Defesa é citado nove vezes na apresentação; o Ibama e o ICMBio, nenhuma. Niiiice!

 

Velhas teorias conspiratórias

É impossível ler o documento do Conselho da Amazônia e não lembrar as teorias conspiratórias publicadas nos anos 1950 pelo ex-governador do Amazonas Arthur Reis. Num livro que fez a cabeça dos militares da ditadura (e pelo visto continua popular hoje) chamado “A Amazônia e a Cobiça Internacional”, Reis argumenta que a vastidão de terras e de recursos naturais da Amazônia é um chamariz constante às investidas estrangeiras para expropriá-la do Brasil, alegando inclusive que a internacionalização da floresta brasileira seria uma saída para as nações que perderam na descolonização da África e da Ásia manterem seu “poder hegemônico”. Em nome dessa tese, que já era furada na época do golpe de 1964, a ditadura produziu um desastre ambiental em tempo recorde na Amazônia. O fato de essa argumentação aparecer decalcada num documento oficial quase 70 anos depois – e ainda acrescida de um tributo, quero crer involuntário, a Hitler – faz pensar para que nós estamos jogando dinheiro de impostos fora para pagar o salário desses “estrategistas”.

O mundo mudou um bocado desde a Segunda Guerra, amiguinhos. Essa coisa de invadir países para pilhar seus recursos naturais caiu de moda, não sei se vocês perceberam. Nem mesmo o petróleo, que sempre motivou intervenções dos EUA, ainda justifica operações militares depois que os americanos aprenderam a extraí-lo de rochas sedimentares comuns usando o grande recurso estratégico do século 21, aquele que o Brasil não tem: tecnologia. Sobre a China, o oposto se verifica. O governo chinês é o maior detentor do planeta dos minerais estratégicos conhecidos como terras raras, e tem limitado sua exportação, forçando multinacionais de alta tecnologia que queiram utilizá-las a se instalar em solo chinês.

E quais seriam os “recursos estratégicos” que motivariam a invasão da Amazônia? O principal deles, que merece dois slides inteiros de Mourão, é a água doce. Quem se lembra da obsessão de Borat com o potássio, o grande produto de exportação do Cazaquistão fictício dos filmes de Baron Cohen, pode dar uma risadinha aqui. Imagine a Quarta Frota dos EUA desembarcando em Belém do Pará com seus marines armados de fuzis e garrafas Pet para saquear o aquífero Alter do Chão! Evidentemente não é assim que se pilha esse recurso particular: a água é exportada na forma de commodities agrícolas como carne e soja, e o jeito moderno de subtraí-la é adquirir terras agrícolas num outro país. E adivinhem se a bancada ruralista, esteio do governo Bolsonaro, não tenta desde o ano passado emplacar um projeto de lei autorizando a venda de terras no Brasil a estrangeiros?

Os “estrategistas” militares evidentemente ignoram esse detalhe inconveniente de aliados do regime conspirando contra a soberania nacional. Preferem focar sua atenção ao Grande Satã do bolsonarismo, esse “câncer” que o presidente não consegue matar: as ONGs. O powerpoint de Mourão repagina e repete a tese fraudulenta da “máfia verde”, segundo a qual as entidades ambientalistas agiriam em conluio com governos europeus para prejudicar o agronegócio brasileiro. Tivesse ido perguntar em Paris ou em Berlim, o general teria descoberto que o principal garoto-propaganda do agro europeu contra o brasileiro é o desmatamento da Amazônia, incentivado por seu chefe.

 

‘Ações estratégicas prioritárias’

Aqui Mourão bate continência intelectual a um outro personagem, o general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), um dos arquitetos do golpe militar. Como lembra em suas aulas o professor da UFMG Raoni Rajão, Golbery foi o grande tradutor da geopolítica norte-americana no Brasil na década de 1950, tendo implantado por aqui a doutrina de “segurança nacional”, sacramentada em lei em 1967, que recomenda a repressão a “antagonismos internos”.

Foi movido por esse conceito vintage que o regime brasileiro decretou na posse que acabaria “com todo tipo de ativismo”, que Bolsonaro tentou emplacar uma MP para monitorar ONGs através do hoje comunista general Santos Cruz, que Augusto Heleno mandou agentes da Abin à COP25 e que Mourão propôs como objetivo do Conselho da Amazônia “controlar 100% das ONGs” até 2022. Após a notícia ter sido publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, o vice correu para negar a própria obra. Mas a apresentação, enviada a Paulo Guedes num documento assinado de próprio punho por ele, traz a perseguição a ONGs explícita em dois momentos: no slide 12, no qual as acusa de apoiar “interesses menos republicanos”, e no slide 17, que lista entre as ações estratégicas prioritárias do Cnal “criar marco regulatório para a atuação das ONGs”.

O que não se descobre em lugar nenhum do powerpoint é qual é o plano de Hamilton Mourão para proteger e desenvolver de forma sustentável a Amazônia, afinal. O conselho faz tábula rasa de tudo o que se realizou na década passada para reduzir o desmatamento. Ignora o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia, que combinou fiscalização inteligente com o garrote financeiro aos ilegais e conseguiu cortar em 80% a taxa de devastação entre 2004 e 2012. Não menciona uma vez sequer o monitoramento por satélite do Inpe, ferramenta fundamental para o êxito passado do país contra o crime ambiental – ao contrário, sugere seu fim ao atribuir todo o monitoramento ao Ministério da Defesa. Fala em reativar o Fundo Amazônia, mas não explica se aceitará o modelo de governança do fundo ou se insistirá na pirraça do ministro do Meio Ambiente de alterar a composição de seus comitês para excluir a sociedade civil (o que os países doadores não aceitam). As “ações estratégicas prioritárias” – sem prazos, metas ou meios de implementação – lembram mais um conjunto de palpites coletados num brainstorming do que um plano de governo.

O documento de oito páginas anexo à apresentação e intitulado “matriz de acompanhamento das ações imediatas do Cnal” não se sai muito melhor. Lista 16 ações, entre elas o estabelecimento de “metas realistas de desmatamento e queimadas legais” para o mês passado (ops!), mas mantém silêncio sepulcral sobre repressão a ilícitos, implementação de áreas protegidas e outras medidas de eficácia demonstrada contra o desmatamento. Ao contrário, acena aos criminosos ao prometer para dezembro deste ano a reestruturação, “doutrinária, se for o caso”, do Ibama e do ICMBio.

Hamilton Mourão não tem um plano de desenvolvimento sustentável para a Amazônia. Ele tem um plano de ocupação militar da região, aplicando à maior floresta tropical do mundo, em pleno século 21, o mesmo quadro conceitual que resultou em desastre ambiental, miséria e violência na região em meados do 20. Não é espanto algum que milicos queiram militarizar a região; é o que eles sabem fazer. Espantoso é que a sociedade brasileira assista a tudo isso impassível e que alguns incautos na comunidade internacional ainda achem que dá para manter um diálogo produtivo com essa tropa de cossacos. Como diria Borat, Wawaweewa!

CLAUDIO ANGELO é coordenador de Comunicação do Observatório do Clima e autor de A espiral da morte – como a humanidade alterou a máquina do clima(Companhia das Letras, 2016).

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Na imagem acima, o vice-presidente da República e presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, Hamilton Mourão, fala à imprensa, após a terceira reunião do colegiado, no Palácio Itamaraty em Brasília. Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil.


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