segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Os desafios de Biden para América Latina - Hussein Kalout

 Os desafios de Biden para América Latina

Região compõe encadeamento de temas que são fundamentais para os interesses dos EUA no contexto global – como meio ambiente, migração e contenção do poder chinês

Hussein Kalout

Estadão | 7/12/2020, 15h

 

Uma das indagações que perpassa a mente dos líderes dos países latino-americanos é o de tentar decodificar o grau de importância que a região terá no mapa cartesiano da política externa do futuro governo dos EUA. O presidente eleito, Joe Biden, repetirá os desatinos da administração Trump para a região ou oferecerá uma nova perspectiva sem ameaças militares (invadir a Venezuela) ou escolhas de caráter binário (EUA ou China)? 

Biden herdará um país dividido politicamente e em meio a uma grave crise sanitária. Sua missão será, por um lado, minorar as feridas internas após a fratricida eleição, por outro, recompor o deteriorado arco de alianças dos EUA no mundo. 

A América Latina, em si, talvez não seja estruturalmente importante para o sistema nervoso da diplomacia americana. Porém, a região compõe encadeamento de temas que são fundamentais para os interesses dos EUA no contexto global – como meio ambiente, migração e contenção do poder chinês.

Nos últimos quatro anos, a região foi instrumentalizada como entreposto da “guerra cultural” ao largo do governo Trump. O combate ao Castro-Chavismo culminou no desmantelamento do reatamento das relações diplomáticas Washington-Havana e ressuscitou o perigoso discurso do uso da força militar – como meio de coerção – contra alguns governos na região. A relação EUA-América Latina mais recuou do que avançou. 

A Venezuela tornou-se o alvo predileto do governo Trump. Não cabe aqui negar, por obviedade cristalina, o tremendo déficit democrático gerado pelo governo autoritário de Nicolás Maduro. Mas, a invenção de Juan Guaidó – o autoproclamando presidente venezuelano – e a fracassada tentativa de implosão o regime podem vir a ser contabilizados como um dos maiores erros da política externa dos EUA para a América Latina desde a invasão da Baía dos Porcos, em 1961. 

Se o tecido social venezuelano já estava dilacerado, a administração Trump – com a ajuda dos governos do Brasil e da Colômbia – contribuiu para o recrudescimento do regime chavista. O fracasso de sua abordagem política e a incapacidade do Grupo de Lima de oferecer soluções razoáveis para o impasse interno, somente ampliou o fosso e de quebra permitiu que a Rússia consolidasse a sua mão sobre Caracas. O resultado da eleição para a Assembleia Legislativa venezuelana, com maciço boicote da oposição, é puro reflexo daquilo que já estava ruim piorar ainda mais.  

Para agravar a conjuntura continental, a falecida OEA faleceu novamente graças a obra do governo Trump – com o beneplácito dos governos mais afoitos do hemisfério. Ao invés de atuar como instituição proponente de soluções e construtora de diálogos para dirimir conflitos, o que vimos foi a cooptação da OEA como um instrumento de pressão ideológica – não irei me debruçar aqui sobre o papelão vexaminoso exercido pelo secretário-geral da organização no caso boliviano.

Contudo, a pedra de toque para colocar de joelhos o sistema multilateral hemisférico foi a ruptura do consenso em torno da escolha do presidente do BID. Os países latino-americanos viram a administração Trump, com a dedicada ajuda do governo brasileiro, perder o único posto multilateral a eles confiado – e tudo isso como parte da “guerra cultural”.

No afã de deter a expansão dos interesses da China na América Latina, o governo Trump não ofereceu alternativas substantivas economicamente aos países da região. Ampliar investimentos, absorver a pauta exportadora ou aprofundar as relações comerciais com os países latino-americanos nem sequer compôs a sua estratégia. O que se viu foi a ameaça da construção do muro junto à fronteira do México, açodamento na política de imigração e a imposição de barreiras tarifárias contra vários setores produtivos dos países da região – e entre os quais o próprio Brasil, apesar de toda a sua subserviência.

Se o governo Trump errou a mão em pautas como o multilateralismo regional, política migratória, o dilema venezuelano e o grave cochilo com a destruição do meio ambiente, a vindoura administração Biden estará diante de importantes desafios diplomáticos junto aos países latino-americanos.  

Será necessária uma estratégia de reversão de boa parte dessas políticas. O comércio não pode ser assimétrico, os países latino-americanos não podem ser postos como reféns de uma escolha binária entre EUA e China, e o lançamento de uma vigorosa agenda global voltada para o desenvolvimento sustentável e a proteção do meio ambiente requer um diálogo profícuo com os países amazônicos – e não a sua exclusão. Em sua maioria, os países latino-americanos respiram aliviados com a chegada de Joe Biden à Casa Branca, porém, a construção de uma agenda positiva para a região depende, fundamentalmente, do como Washington fará esse trabalho de reversão e a partir de que parâmetros deseja sedimentar as suas relações com os países do hemisfério. 

* HUSSEIN KALOUT, 44, é Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018). Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,analise-os-desafios-de-biden-para-america-latina,70003543035

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comentários são sempre bem-vindos, desde que se refiram ao objeto mesmo da postagem, de preferência identificados. Propagandas ou mensagens agressivas serão sumariamente eliminadas. Outras questões podem ser encaminhadas através de meu site (www.pralmeida.org). Formule seus comentários em linguagem concisa, objetiva, em um Português aceitável para os padrões da língua coloquial.
A confirmação manual dos comentários é necessária, tendo em vista o grande número de junks e spams recebidos.