Já escrevi o que penso a respeito. O Facebook anda escondendo o que escrevemos. Vou voltar ao registro.
Paulo Roberto de Almeida
Liberdade é descobrir que Che Guevara é uma camiseta na vitrine
por Vinícius Müller…
Há muito anos, em uma passagem caricatural de minha formação, estava por contingências da época passeando por um shopping center em São Paulo. Era, então, um estudante de História que, no auge de minhas duas décadas de vida, estava convencido de que visitar um lugar tão ‘capitalista’ era uma grave traição às minhas profundas convicções de que o ‘capitalismo’ era a fonte de nossos maiores problemas, assim como à minha crença de que estávamos, eu e meia dúzia de colegas da faculdade, muito próximos da revolução que acabaria com nosso sofrimento. Entendi, ou tentei me convencer, de que minha visita ao templo do consumo me serviria como aprendizado sobre o inimigo. E assim me mantive, com a presunçosa expressão de quem conhece a História e prevê o futuro, posando de rebelde ante as vitrines cujo objetivo era, para mim, sugar o meu sangue.
Contudo, em uma das paradas que fiz para melhor observar o inimigo em seu pleno funcionamento, dei-me conta de que uma das vitrines, certamente de algum estabelecimento com presença frequente na imaginação dos bem nascidos e nas revistas que determinam a ditadura da moda, tinha como tema de sua nova coleção nada mais, nada menos, do que Ernesto Che Guevara. E, assim, fiquei intrigado buscando entender como o símbolo maior de tudo o que representava meu ódio juvenil ao capitalismo havia se transformado numa camiseta, vendida por preço tão elevado em um local que tem como nome o verbo comprar no gerúndio. E fiquei embasbacado, primeiro com o que avaliei ser o cinismo do capital, mas logo depois com a ingenuidade minha e de meus seis colegas revolucionários da faculdade que acreditávamos carregar as soluções para o mundo. Também fiquei preocupado, pois se os ‘bem nascidos’ podiam ser tão rebeldes como eu comprando uma camiseta com a estampa do Che Guevara, não me sobraria nada, nenhuma marca distintiva, nenhum charme. E, no final, nenhuma razão.
Desde então, não mais deixei de pensar sobre esta aparente contradição. E sobre como muitos já haviam tentado me alertar a repeito dela. Desde artistas da musica pop até autores e autoras supostamente mais sofisticados, como aqueles ligados à “escola da Frankfurt”. Em ambos, com reações diferentes. Alguns afirmando que a ‘coisificação’ ou a transformação de Che Guevara — ou qualquer outro entre tantos e tantos exemplos possíveis — em mercadoria era a confirmação dos males causados pelo inimigo capitalista. Outros tantos que entenderam a ingenuidade daqueles que, como eu e meus colegas da faculdade, acreditavam ser mais inteligentes do que a economia de mercado. E, no pior dos casos, quando percebi que muitos dos que entenderam tamanha contradição a usaram de modo instrumental. Ou seja, transformaram sua falsa rebeldia contra o capitalismo em fonte de renda, de manutenção do status e da riqueza, e de acúmulo de capital. Algo tão deplorável quanto aqueles que usam as liberdades da democracia para atacá-la.
Depois de tanto tempo, leio a obra do historiador italiano e professor da Universidade de Ciência e Tecnologia da Noruega, Francesco Boldizzoni; obra cujo título em sua edição norte-americana é Foretelling the End of Capitalism: Intellectual Misadventures since Karl Marx (Harvard University Press, 2020), e que ilumina — e, de certo modo, organiza — a inquietação que carrego desde a juventude. Nela, o jovem historiador, autor de outra obra fundamental (The Poverty of Clio. Resurrecting Economic History, Princeton University Press, 2011), reconstrói a trajetória das críticas ao capitalismo antes mesmo do sistema ser assim chamado. E neste caso, não poupa ninguém. De Smith a Marx, de Malthus a Stuart Mill, de Ricardo a Paul Sweezy, entre tantos outros.
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Pela abrangência, rapidamente notamos que Boldizzoni busca reconstruir não só uma crítica ao que veio a ser chamado de capitalismo depois que Louis Blanc e Pierre-Joseph Proudhon cunharam o termo em meados do século XIX. O que o historiador italiano propõe é quase um contrafactual sobre os motivos que fizeram com que todas as previsões sobre a derrocada do sistema capitalista se provassem equivocadas — e porque elas não só se mostraram equivocadas, como também misturavam a observação com os desejos daqueles que a formulavam. Neste sentido, as previsões sobre o fim do capitalismo estiveram mais relacionadas às projeções carregadas de certa arrogância daqueles que tem, quase que religiosamente, a convicção de que são capazes de prever o futuro. Mais do que a qualquer método em tese cientifico.
Não que as críticas aos resultados visíveis do capitalismo não tivessem fundamentos ou fossem frutos exclusivos de má vontade. Ao contrário, os esforços que combinavam a tentativa de formulação de princípios gerais que, ao mesmo tempo, contemplassem os elementos fundamentais do sistema, a observação empírica e a projeção de resultados verificáveis no tempo eram feitos de maneira séria. Os exemplos são muitos e formam a parte mais sedutora do livro de Boldizzoni. A identificação da contradição entre a necessidade de ampliação dos lucros e os limites da exploração do trabalho, da desigualdade persistente em meio à ampliação da riqueza, dos conflitos entre o aumento da competição e a concentração monopolista ou do ritmo diferente entre o avanço da tecnologia e o crescimento do emprego. Todas elas estavam amparadas em dados e em observações pertinentes sobre a realidade. Por isso serviram de sustentação às hipóteses e às propostas de intervenção que se mostraram parcialmente acertadas, desde a crítica marxista ancorada na fotografia que seus formuladores tiraram em 1848 até a percepção de Stuart Mill sobre os limites de uma sociedade utilitarista como defendida por Bentham (inclusive os limites ambientais, tema antecipado na Inglaterra Vitoriana). Não só: também a percepção de que os ganhos fortemente concentrados transbordaram de modo a contemplar os trabalhadores e, por isso, a opção revolucionária contra o capitalismo ganharia uma concorrente relevante, consubstanciada pela social-democracia e pela defesa de um capitalismo reformado e carregado de preocupações sociais.
O problema, já antecipado pela genial Deirdre McCloskey, é o enrijecimento dos pressupostos sobre o funcionamento do capitalismo e, principalmente, de seus elementos passíveis de crítica. Por isso, ainda segundo McCloskey, as projeções sobre sua possível derrocada falham sistematicamente — ao que, parcialmente, Boldizzoni concorda, não obstante identificar importantes adaptações feitas pelos críticos. Principalmente após 1929, tido por muitos, à época, como o exemplo maior da validade da análise e projeção marxista — mas que, como sabemos, mostrou-se muito aquém do papel de aceleradora da crise final do capitalismo. O mesmo vale para a 1973 ou para 2008.
O que o historiador italiano acertadamente tenta fazer é achar o equívoco das projeções que determinavam o fim do capitalismo nos itens tidos como essenciais ao sistema. E, diferentemente de McCloskey, não apontar para a permanência de um arcabouço teórico que, fundamentalmente, usa de modo estático e duzentos anos depois a mesma fotografia tirada em 1848 para formular seu entendimento, sua projeção e, consequentemente, sua crítica ao capitalismo. Boldizzoni, ao contrário, aponta para as inúmeras adaptações feitas pelos críticos do capitalismo conforme a História mostrava resultados diferentes. O problema, segundo ele, é que os elementos apontados como fundamentais pelos críticos do capitalismo estão, no mínimo, incompletos.
Desta forma, diz que a combinação entre a manutenção de certa hierarquia herdada de uma Europa aristocrática e um individualismo forjado pelo humanismo renascentista e pelos seus herdeiros liberais e iluministas torna o capitalismo resistente às crises que enfrenta. Como se, entre a hierarquia e o individualismo, o capitalismo suportasse o peso de suas crises exatamente porque se movimenta de um lado a outro até que encontre um novo equilíbrio. Sem romper com suas fronteiras.
O que Boldizzoni não identifica é que estas fronteiras — a hierarquia e o individualismo —, mesmo que permaneçam as mesmas, também se movimentam, criando geometrias variáveis. Por um lado, os novos formatos resultantes da expansão e contração tanto da hierarquia quanto do individualismo revelam a não linearidade de funcionamento do sistema capitalista. Ou seja, produzem resultados novos cuja intensidade e qualidade não são lineares e são, portanto, desiguais. Contudo, por outro lado, são refeitos de modo tão veloz que sempre deixam brechas para que, por meio de elementos como o consumo, despertem a quase imediata adesão da população. E o consumo, ao contrário, não é a projeção do individualismo, e sim a possibilidade de encontro social. Não à toa e espertamente (para não dizer de forma hipócrita) o consumo foi usado como símbolo de ascensão social por governos recentes que se dizem de esquerda. Sem sequer gerar rubor.
Desta forma, o capitalismo é muito menos o sistema ancorado na exploração, na concentração, na rígida hierarquia e no individualismo do que no consumo presente e projetado. Por isso, muito mais flexível do que seus críticos previam no século XIX. A ponto de transformar seus adversários em mercadorias. Assim como eu descobri quando percebi que não existia muita diferença entre mim e qualquer pessoa que, mesmo não tendo a menor ideia de quem foi e o que representa Che Guevara, poderia ter duas camisetas com a estampa do revolucionário argentino à frente. Bastava comprá-las no shopping. O impacto positivo à reprodução do capitalismo era maior do que a contribuição que o companheiro de Fidel era capaz de dar à queda do mesmo capitalismo.
Por isso, ao ler a obra de Boldizzoni lembrei-me de meu passeio pelo shopping. Naquele dia descobri que o capitalismo é mais inteligente, ágil e flexível do que as projeções sobre sua queda e seus costumeiros críticos são capazes de ser. E isso me gerou um estranho sentimento de liberdade, meu companheiro desde então.
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