terça-feira, 31 de agosto de 2021

Uma solução para os precatórios - Felipe Salto (Estadão)

Felipe Salto tem perfeito conhecimento das contas públicas e sabe onde se deve cortar. Quem é "imbrochável" deve ter coragem para enfrentar EMENDAS ILEGAIS e IRRESPONSÁVEIS do Centrão.


01:32:37 | 31/08/2021 | Economia | O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto | BR

Uma solução para os precatórios

    Felipe Salto *

    O episódio dos precatórios revela a preferência por contornar o teto de gastos. O risco de não pagar despesas obrigatórias já foi elucidado no meu último artigo. Dólar, inflação, juros e dívida para cima. Proponho uma solução para preservar o teto, ampliar o Bolsa Família e quitar todos os precatórios em 2022.

    O governo informou, recentemente, que haverá R$ 89,1 bilhões de sentenças judiciais e precatórios a pagar no ano que vem. Não deveria surpreender-se, já que a Advocacia-Geral da União faz o mapeamento sistemático dos riscos. Na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Balanço-Geral da União constam as informações agregadas. Supõe-se ser a soma dos dados pormenorizados de cada ação judicial.

    Antes, previa-se algo como R$ 57 bilhões.

    A diferença, de R$ 32,1 bilhões (89,1 menos 57), precisará caber no teto e no Orçamento. O Projeto de Lei Orçamentária Anual será apresentado hoje e, até o momento em que este artigo foi escrito, não havia solução anunciada. A PEC dos Precatórios é um erro com potencial de prejudicar a economia via aumento do risco. Retirar o gasto do teto ou fixar um limite máximo anual de pagamento seriam saídas igualmente problemáticas.

    Um dos maiores precatórios da conta de 2022 é o Fundef, programa educacional dos anos 1990 para universalizar o acesso à escola. Em particular, esses precatórios tratam da complementação paga pela União aos fundos instituídos nos Estados e municípios.

    O Fundef foi substituído pelo Fundeb, passando a incluir o ensino médio. A despesa com precatórios do Fundef tem, exata e precisamente, a mesma natureza da despesa do Fundef original e do Fundeb atual.

    A complementação da União ao Fundeb não se sujeita ao teto de gastos desde a origem da nova regra fiscal (2016). Assim, não há razão para tratar coisas iguais de modo distinto: se a complementação está fora do teto, os precatórios dela originados também devem estar.

    O STF mandou a União pagar cerca de R$ 16 bilhões em precatórios do Fundef à Bahia, ao Ceará e a Pernambuco. Sob adequado tratamento contábil a esse gasto (fora do teto), metade do rombo de R$ 32,1 bilhões estaria resolvida.

    Essa discussão foi trazida inicialmente pelo economista Daniel Couri, que logo percebeu a inconsistência.

    E o resto? Nas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), se a inflação de 2021 ficar igual à acumulada em 12 meses até junho (8,35%), haveria folga de pelo menos R$ 15 bilhões no teto de 2022. Vale dizer, enquanto o limite sobe pela inflaçãomedida pelo IPCA do meio do ano anterior, as despesas sujeitas ao teto sobem pela do fim do ano.

    inflação está pressionada pela taxa de câmbio, pelo risco fiscal, pelo aumento dos preços das commodities e pelo espalhamento desses fatores no setor de serviços. Esperava-se, até há pouco, que a inflação pudesse ceder ao longo do segundo semestre.

    Ao contrário, as projeções de mercado não cansam de subir. Mas a alta dos juros deve permitir, ao menos, certa estabilidade em relação ao patamar de junho.

    Destaco que a folga estimada em R$ 15 bilhões pressupõe ausência de reajustes salariais para o serviço público além dos já concedidos (militares).

    Assim, o buraco de R$ 32,1 bilhões cairia para R$ 16,1 bilhões, com a correta interpretação para os precatórios do Fundef, e, em seguida, para R$ 1,1 bilhão, pelo uso da folga do teto. Restaria equacionar R$ 1,1 bilhão. O veto presidencial à nova regra para o fundão eleitoral já daria conta disso.

    Finalmente, como ampliar o Bolsa Família? Em 2021, as emendas de relator-geral do orçamento totalizarão R$ 18,5 bilhões. Vamos imaginar um corte de R$ 10 bilhões nessas emendas, que nem deveriam existir.

    A saber, ferem a própria lógica das emendas individuais â regulamentadas e impositivas. Abalam, ainda, os princípios básicos do processo orçamentário, a exemplo da impessoalidade e da transparência.

    Outros R$ 10 bilhões poderiam ser cortados nas demais despesas discricionárias (não obrigatórias), que incluem as emendas. Corrigindo as discricionárias de 2021 pela inflação e promovendo os cortes, seria possível garantir um volume de R$ 109,7 bilhões para 2022.

    Valor baixo, mas condizente com o funcionamento da máquina pública. Apagaria o incêndio dos precatórios e tornaria viável o Bolsa Família.

    Esse montante de R$ 20 bilhões permitiria ampliar o benefício médio do Bolsa Família em aproximadamente 60%, isto é, de cerca de R$ 190 para R$ 305, mantido o número de benefícios emitidos. Pode-se, ainda, imaginar um arranjo com menor aumento do benefício mensal para contemplar uma expansão do número de famílias atendidas pelo programa.

    O que proponho não tem nada de novo: pagar as contas em dia e cortar gastos para financiar despesas novas. Todas as alternativas consideradas até aqui â 1) parcelar precatórios, 2) fixar um limite de pagamento e postergar o excedente ou 3) retirar esses gastos do teto â têm riscos não desprezíveis. Mudar a regra na iminência do seu rompimento é um caminho a evitar.

    A solução difícil, cortar gastos, ninguém quer.

    * DIRETOR-EXECUTIVO DA IFI.

    AS OPINIÕES NÃO VINCULAM A INSTITUIÇÃO.

    Why a 19th-Century Plan to Replace Black Labor with Chinese Labor Failed - Jay Caspian Kang (The New York Times Magazine )

    Uma história que poderia ser brasileira, igualmente, mas tampouco foi... 

    Why a 19th-Century Plan to Replace Black Labor with Chinese Labor Failed

    Jay Caspian Kang

     The New York Times  Magazine – 29.8.2021

     

    In the late 1860s, just a few years after the end of the Civil War, a group of plantation owners in the Mississippi Delta began talking to one another about a labor problem. Newly freed Black people made up the majority of the agricultural work force, but they were going against the party of the South’s white establishment and voting Republican. Some were simply picking up and leaving.

    In 1869, an article published in De Bow’s Review cut right to the chase:

    We will state the problem for consideration. It is: To retain in the hands of whites the control and direction of social and political action, without impairing the content of the labor capacity of the colored race. We assume the effort to restrain the political influence of the colored race in the South … has failed.

    Efforts to recruit white labor had been hampered by the low wages and dangerous conditions on the plantations. The leaders of agriculture in the South needed a quick influx of workers that would keep the plantations running without bringing in anyone who might vote against the existing order. Their solution was to look to the Far East, to bring in Chinese workers (then known by the derogatory name “coolies”).

    “Emancipation has spoiled the negro and carried him away from fields of agriculture,” an editorial in a Vicksburg newspaper read. “Our prosperity depends entirely upon the recovery of lost ground, and we therefore say let the Coolies come, and we will take the chance of Christianizing them.”

    Thus began one of the strangest sales pitches in American history. Southern papers, politicians and plantation owners all began to broadcast a call to Chinese men — those already in the U.S. and those in China — to come work the cotton fields of Mississippi, Arkansas and LouisianaThe goal, according to Powell Clayton, then the governor of Arkansas, wasn’t just to replace lost hands, but also to undercut the remaining Black workers by flooding the fields with cheap labor — “to punish the negro for having abandoned the control of his old master, and to regulate the conditions of his employment and the scale of wages to be paid him.”

    The scheme to recruit Chinese workers to punish and undermine Black farm laborers failed, but its history — detailed by the late sociologist James W. Loewen in his 1971 book “The Mississippi Chinese: Between Black and White” — offers a useful parable for understanding how race has operated in America’s immigrant communities in the years since.

    Loewen, who died last week at the age of 79, is best known for his recastings of American history in books such as “Lies My Teacher Told Me” and “Lies Across America.” Those books should be read as interventions against widely accepted historical misconceptions — in “Lies My Teacher Told Me,” he corrects popular history textbooks. “The Mississippi Chinese” was his first book, and it lacks the polemic energy of those later works, but it presents a thesis about race that would go on to be replicated throughout the academy, and particularly in so-called “whiteness studies.”

    This thesis, that race is a construct that changes based upon context, and can shift over time, is illustrated in the book’s epigraph, where Loewen quotes an exchange with a white Baptist minister he interviewed:

    “You’re either a white man or a [epithet], here,” the minister says. “Now, that’s the whole story. When I first came to the Delta, the Chinese were classed as [epithet].”

    “And now they are called whites?” Loewen asks.

    “That’s right!”

    Chinese laborers began to arrive in Mississippi roughly between 1870-1875. The first “wave” were mostly made up of so-called “sojourners” who came straight from China, alongside a few railroad workers who had just finished up the Transcontinental railroad.Despite their small numbers, there was great enthusiasm among landowners about the arrival of these early Chinese Americans in the Delta region. The expectation was that they would be docile, completely uninterested in politics, and industrious. They were also almost all male, and, according to Loewen’s research, had come from humble but not entirely impoverished backgrounds in China. (The maleness of Chinese workers in America would be cemented into law in 1875 when the Page Act effectively barred Chinese women from entering the country, under the pretense of prohibiting prostitution.)

    The vision of fields filled with these new workers never materialized: The Chinese laborers refused the working conditions and wages that many Black laborers had left. Reflecting on this era, Clayton wrote, “the efforts to utilize Chinese labor proved a disastrous failure.” In a short while, he wrote, the Chinese workers “sagaciously learned the purposes for which they were introduced.”

    The Chinese workers quickly found a new purpose: to start small grocery stores that served the Black population. A handful of Chinese migrants began buying small stores with even smaller rooms in the back where they would eat and sleep. To navigate the language barrier, the Chinese would sometimes provide their Black customers with a long stick to tap their purchases. When it came time to restock their wares, they would keep at least one of each item so that when wholesalers came by, the shopkeepers could simply point to what they needed.

    These stores filled a hole in the economy that most white people did not want to touch and from which Black people were largely excludedThis often gave the Chinese something of a monopolyBy 1881, just about a decade after their arrival, Chinese names began showing up on lists of landowners in the Delta. These new store owners did not have the benefits of citizenship or any rights to speak of, but they did have several economic advantages over their Black counterparts. Wholesalers, for example, were willing to extend them lines of credit to start their businesses.

    Because it was practically impossible by then to bring over women from China to start families, the Mississippi Chinese remained a tiny, insular community for decades. In the early years, many of their interactions were with Black people. The Chinese lived in the Black neighborhoods and oftentimes hired Black workers. A small number of Chinese men started families with Black women, but as the Chinese community grew, those unions were ultimately discouraged by both Chinese community members and white people who would sometimes end preferential treatment once a Black person was part of the family. As some Chinese grocers accumulated wealth and began interacting more with wealthy, white society, an internal divide was drawn between the rich Chinese and a smaller, lower class who still lived among, or had entered into relationships with Black women.

    “The rich Chinese won’t have much to do with the poor Chinese, and even less with the [epithet],” a white Delta businessman is quoted as saying in Loewen’s book. “Oh, they’ll take his money just like any of us will, but they won’t have anything to do with him socially.”

    The wealthier Chinese may have made some inroads into white society, but for the first half of the 20th century, they still existed in a nebulous place whose contexts and restrictions were in constant flux. In 1924, Gong Lum, a grocer in the Delta town of Rosedale, tried to enroll his oldest daughter in a white school. She was rejected. Lum hired a lawyer and took the case to court. A district court found in Lum’s favor, but the Mississippi Supreme Court found that because the Chinese were not “white” they had to fall under the heading of “colored races.”This decision was upheld by the United States Supreme Court.

    This setback proved to be only temporary and localized. Some smaller towns in Mississippi never barred Chinese students from attending white schools. By the early 1950s, other areas in the Delta had followed suit, educating Chinese but not Black students before Brown v. Board of Education in 1954 prohibited racial segregation in public schools. With access to white schools, the children of the Mississippi Chinese went off to college at an extremely high rate and entered relatively high-paying professional fields, including engineering and pharmaceuticals. Most would eventually move away.

    There are still descendants of the original migrant workers in the Delta, some of whom run grocery stores, but for the most part, the Mississippi 

    “The Mississippi Chinese” was published in 1971 to great acclaim, much of which was well-deserved. There are, however, a few parts of Loewen’s analysis that don’t quite hold up to modern scrutiny. For one, he mulls over cultural reasons why the Chinese were able to start groceries and most Black people at the time could not, referring to American Black and Chinese cultural norms — when the clearer reason can be found in his own text: Many of the Chinese came to Mississippi with small but significant amounts of capital, and were able to secure goods on credit from wholesalers who often refused to deal with the Black population. Formerly enslaved people mostly lacked the capital, or the means to secure it, to start businesses. Wholesalers rarely extended them credit.

    As deservedly influential as it was, “The Mississippi Chinese” should not serve as a singular template for understanding the trajectory of every circumstance in which an immigrant groups found and filled a hole in the economy — whether Korean liquor store and grocery owners in Black neighborhoods in Los Angeles, the early generations of Irish laborers, or Jewish merchants. The currently fashionable impulse to turn somewhat similar histories into One Big Narrative flattens history and ignores what’s actually interesting. The idea of a fixed racial binary that eventually swallows up every incoming group might have made sense when Loewen was writing his book, but the demographics of the country have shifted drastically since then as millions of immigrants have entered a country where upward mobility looks much different than it did when the Mississippi Chinese first opened their shops.

    The specific value offered by “The Mississippi Chinese” lies in its examination of white indifference. The Chinese in the Delta succeeded, in large part, because white people did not really think all that much about them, especially when contrasted with the malice they showed to Black Americans. Indifference and a little start-up capital, it seems, was enough.

    There’s one other insight I took from Loewen’s book, although one he may have not anticipated. For the past decade or so, I’ve wondered why Asian American politics and discourse seems so preoccupied with the concerns of its most well-off and educated, latching on to issues such as representation in Hollywood movies, entry into Ivy League schools or the microaggressions of the corporate world. In the afterword to his book, Loewen writes that some of the Mississippi Chinese he interviewed objected to his emphasis on those who had intermarried with Black people. Why would he focus on them?

    Loewen should not have felt a moment of remorse for this choice. His thorough reportage on those mostly poorer Chinese workers who went on to start Black families reveals a largely unspoken, yet intractable truth of immigrant upward mobility: Yes, the climb into the middle class oftentimes comes at the expense of Black communities. It also often requires you to abandon your own people.

    Immigrant stories are told by the winners, which is why they tend to turn triumphalist, nostalgic and ornate over time. And in the case of the Mississippi Chinese or today’s professional Asian Americans, they are mostly told by those who took care to uphold the class and color lines — and who ignored or even tried to erase the evidence of those who did not.

     

    Surprising Stat of the Week

     

    There were 15 Korean churches in Montgomery, Alabama as of 2017, according to the Alabama News Center. This seems like an usually high number for any city that’s not a major metropolitan area or a military base. There are also somewhere between nine and 12 Korean restaurants.

    What’s even odder is that the food they serve is exceptional — something I learned during a reporting trip to Alabama about six years ago. Los Angeles will always have the best Korean food in the United States, but Montgomery’s spreads are better than what I’ve found in Chicago, the Bay Area or most of New York City.

    Montgomery’s thriving Korean food scene shows how the explanations for unexpected pockets of Asian migrants have changed since the publication of “The Mississippi Chinese.” Loewen said he first became interested in the Delta Chinese when he was enrolled at Mississippi State and noticed a number of Chinese classmates. He was curious how they got there and several years later, wrote a book about it. A lot of the Korean restaurants started showing up in Montgomery after around 2002, when Hyundai announced it would open up a plant there. More Korean companies, including the car manufacturer Kia, began setting up shop on the I-85 corridor.

    When executives and workers from Korea came to Alabama, they needed some place to eat, which in turn opened up opportunities for Korean restaurateurs. Because those eateries were mostly catering to a fully-Korean, well-off customer base, the food they cook is pretty close to what you’ll find in Korea.


    domingo, 29 de agosto de 2021

    Aprendendo com a História - Affonso Celso Pastore (OESP)

     

    01:51:52 | 29/08/2021 | Economia | O Estado de S. Paulo | Affonso Celso Pastore | BR

    Affonso Celso Pastore

      AFFONSO CELSO PASTORE

      Aprendendo com a história

      Muitos desprezam a história, preferindo o conforto dos modelos matemáticos.

      Respeito ambos, mas dou um grande peso à história.

      No regime de Bretton Woods, os EUA fixavam o preço do ouro em US$ 35 por onça-troy, e os demais países mantinham o câmbio fixo em relação ao dólar. Há cinquenta anos, precisamente em 15 de agosto de 1971, o presidente Nixon fechou a "gold window", que permitia aos signatários daquele acordo converterem as suas reservas em ouro àquele preço. Era o "início do fim" daquele regime monetário, que só foi formalmente extinto em 1973.

      Naqueles anos, tanto quanto agora, a política monetária do Fed era voltada exclusivamente aos objetivos domésticos.

      "O dólar é a nossa moeda, mas o vosso problema", como disse o secretário John Connally. Para financiar a guerra do Vietnã e manter o pleno emprego, o Fed expandia a oferta de moeda que, devido ao câmbio fixo, elevava a oferta mundial de moeda e gerava uma inflação mundial. A atividade bancária era estimulada, florescendo o mercado de euro-dólares, que ainda continuou crescendo depois de 1973, dado que os países não abandonaram de imediato o câmbio fixo.

      Quando em 1976 ocorreu o segundo choque do petróleo, aumentando o valor das suas importações, o governo Geisel teve a ilusão de que poderia usar a crise como uma oportunidade de crescimento. Lançou o II PND através do qual financiou com empréstimos externos os investimentos na produção de bens de capital e de insumos básicos. Era suposto que a substituição de importações geraria uma economia de dólares que permitiria pagar o aumento na conta do petróleo, com o benefício do crescimento econômico.

      Os industriais aplaudiram a clarividência do presidente e se auto-enganavam, acreditando que entrávamos em um mundo novo, no qual a abundância de empréstimos baratos era uma consequência da reciclagem dos petrodólares, e não da política monetária expansionista do Fed, que teria de terminar.

      Geramos uma dívida externa de 50% do PIB, que nos levou à crise da dívida externa dos anos oitenta. Durante o II PND, o Brasil cresceu a 7,5% ao ano, porém à custa de nos jogar na armadilha do baixo crescimento, da qual não mais nos livramos.

      Não sei se este episódio ainda é estudado nos cursos de Economia, nem se são feitas comparações com o mundo atual. Mas os alunos deveriam ser advertidos de que, apesar das muitas transformações institucionais, ainda temos uma relíquia do passado, que é o "privilégio exorbitante" dos EUA â o benefício de ter a sua própria moeda usada como a moeda reserva internacional.

      É o único país que, diante de um déficit nas contas correntes, não tem de se preocupar com seu financiamento.

      Paga com sua própria moeda e influencia as políticas monetárias de todos os demais.

      Um exemplo são os efeitos da expansão monetária motivada pela crise da covid sobre as taxas de câmbio dos países livres de graves problemas fiscais e políticos. Quando irrompeu a pandemia, a taxa dos "fed funds" foi colocada no zero técnico, e foram comprados em torno de US$ 2 trilhões de treasuries.

      A consequência dessa maciça expansão monetária foi um enfraquecimento de 10% do dólar em relação a uma cesta de moedas que inclui euro, libra, iene, dólar canadense, dólar australiano, coroa sueca e franco suíço â o DXY. Não foram apenas estas 7 moedas que se valorizaram, e sim a quase totalidade das demais. O mundo agradeceu aos EUA. Afinal, aquela recessão exigia queda acentuada das taxas de juros, que foi facilitada pelo efeito desinflacionário vindo do fortalecimento de suas moedas.

      Estímulo monetário nos EUA leva a um estímulo monetário mundial, mas a recíproca também é verdadeira.

      inflação vem se elevando, mas ainda não vi preocupações. O "average inflation targeting" dá um enorme conforto; a transição demográfica derrubou as taxas neutras no mundo; e a culpa de uma inflação acima de 5% nos EUA não é atribuída ao exagero dos estímulos, mas a choques de oferta. Da mesma forma, a sensível elevação dos "price earnings ratios" no S&P500 não é atribuída à queda excessiva da taxa de desconto, e sim ao vigor da economia norte-americana.

      Por que nos preocuparmos com uma mudança quando o próprio Fed está seguro de que pode tolerar uma inflação mais alta? Gostaria de ter essa frieza. Mas o respeito à história e às lições que ela nos oferece me impedem de tê-la. Já vi muitas esperanças serem destruídas por fatos que muitos julgavam irrelevantes, e que preocuparam apenas uns poucos.

      EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA A.C. PASTORE & ASSOCIADOS.

      ESCREVE QUINZENALMENTE

      A restauração da diplomacia na gestão atual - Leonardo Lellis (Revista Veja)

       Política

      Carlos França retoma pragmatismo no Itamaraty para reconstruir pontes

      • Após encontrar uma pasta contaminada pelos delírios ideológicos do bolsonarismo, chanceler tenta recuperar o diálogo com parceiros

      Ainda na campanha eleitoral, o presidente Jair Bolsonaro fez uma das promessas que viria a descumprir assim que empossado no cargo: retirar o que considerava ser “viés ideológico” das relações exteriores do Brasil. Aconteceu exatamente o contrário. Nomeou Ernesto Araújo, que pautou a condução de sua política externa pelas teorias conspiratórias do escritor Olavo de Carvalho, priorizou relações com governos à imagem e semelhança de seu ideário ultraconservador e criou atritos com parceiros históricos até o ponto em que a sua permanência se tornou insustentável. Agora, o chanceler Carlos França, que se aproxima de completar cinco meses à frente do Itamaraty, tenta consertar o estrago. Ainda que empreendida de forma discreta, a mudança é sentida tanto nas questões internas quanto nos discursos e gestos de aproximação de países antes hostilizados. “O ministro trabalha para reconstruir as pontes que foram dinamitadas e recuperar o nível de confiança no Itamaraty”, obser­va Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington.

      O sinal dos novos tempos foi dado já no discurso de posse, quando França se descolou do negacionismo do antecessor ao reconhecer a gravidade das crises ambiental e sanitária. Em um movimento interno, trocou o comando da Fundação Alexandre de Gusmão (Funag). De respeitado órgão dedicado às questões acadêmicas, ele havia se tornado na gestão Araújo uma máquina de promover desinformação sobre a Covid-19 e espalhar boatos conspiratórios associando a China à disseminação da doença. As sandices foram tantas num passado recente que a Funag acabou entrando no radar das investigações da CPI da Pandemia. Cicerone de olavistas e suas teses nos eventos que promovia, o presidente Roberto Goida­nich foi exonerado por França.

      FORA DO CIRCUITO - Eduardo Bolsonaro (em visita a Donald Trump) e o assessor Filipe Martins (abaixo, com o guru Olavo de Carvalho): eles perderam o espaço que tinham com Ernesto Araújo e a influência na política externa -
      FORA DO CIRCUITO – Eduardo Bolsonaro (em visita a Donald Trump) e o assessor Filipe Martins (abaixo, com o guru Olavo de Carvalho): eles perderam o espaço que tinham com Ernesto Araújo e a influência na política externa – @bolsonaro.enb/Facebook; @filgmartin/Instagram

      O movimento mais delicado até aqui envolveu afastar gradativamente do raio de influência do Itamaraty dois nomes de maior peso, a começar pelo assessor especial da Presidência, Filipe Martins, outro discípulo de Olavo. Nos tempos de Araújo, dizia-se que Martins, um dos mais empenhados na cruzada ultraconservadora, tinha mais poder que o próprio ministro e havia se tornado até um conselheiro influente do presidente. Hoje, França nem sequer o recebe em seu gabinete. Com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), o ministro tem apenas uma relação protocolar. A frieza é recíproca: se cada gesto de Araújo era celebrado e replicado pela dupla para a horda de seguidores no Twitter, França não conta com a mesma deferência. Apesar disso, Martins e o filho Zero Três do presidente continuam com a pretensão de terem interlocução fora das fronteiras, mas hoje ela se resume a laços com o ex-­presidente americano Donald Trump e movimentos internacionais de direita — um exemplo é a organização da CPAC, evento de extrema direita que acontece nos dias 3 e 4 setembro em Brasília (e que terá entre os palestrantes o próprio Ernesto).

      Com o afastamento da dupla e da influência olavista na pasta, diplomatas e servidores celebram nos corredores do Itamaraty que o clima de caça às bruxas tenha se dissipado. O mesmo alívio se nota nas relações com outros países. Foi França, por exemplo, quem convenceu o presidente a escrever uma carta a Joe Biden para reduzir as desconfianças em relação à política ambiental brasileira. Também são marcas dessa inflexão a posição em organismos internacionais. O país se absteve de votar pela abertura de investigação contra Israel por crimes de guerra em Gaza, aprovada no Conselho de Direitos Humanos da ONU, e para condenar o embargo econômico a Cuba. “Essas abstenções já representam uma guinada que seria inimaginável sob Ernesto Araújo”, diz o professor da FGV Guilherme Casarões, especialista em relações internacionais.

      HISTÓRICO - Oswaldo Aranha: o brasileiro preside a Assembleia-Geral da ONU que definiu a partilha da Palestina em 1947 -
      HISTÓRICO - Oswaldo Aranha: o brasileiro preside a Assembleia-Geral da ONU que definiu a partilha da Palestina em 1947 – Bettmann Archive/Getty Images

      Considerando-se a lista de problemas criados pela gestão anterior, o maior trabalho até o momento tem sido normalizar as relações com a China, o principal parceiro comercial e alvo dos piores ataques de membros do governo, incluindo o próprio Araújo. “O diálogo está restabelecido e agora há mais boa vontade por parte da China, mas a desconfiança está plantada”, pondera o diplomata Valdemar Carneiro Leão, ex-embaixador em Pequim. O primeiro chanceler a receber um telefonema do novo ministro foi o chinês Wang Yi. “O embaixador da China no Brasil mantém contatos frequentes com o chanceler brasileiro, que tem reiterado que as relações com a China são uma prioridade da diplomacia brasileira e que o relacionamento bilateral é amplo, mutuamente benéfico e estratégico”, relata o porta-voz da embaixada chinesa, Qu Yuhui. Os dois países se preparam para promover, ainda neste ano, a reunião de cúpula da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban). Entre representantes do agronegócio, a sensação é de otimismo por poder projetar um futuro com menos solavancos com o maior destino de nossas exportações. O mesmo se dá com o papel ativo que o Itamaraty passou a exercer na busca de imunizantes contra a Covid-19, ao contrário de Araújo. França se reuniu com o colega chinês na primeira reunião do Fórum Internacional sobre Cooperação em Vacinas.

      Sob todos os aspectos e frentes, trabalho não falta. Mesmo a relação com aliados históricos está sendo refeita, como com a Argentina, onde o presidente Alberto Fernández tem a oposição de Bolsonaro desde a sua campanha. Existem questões práticas a resolver com os hermanos, como diminuir as resistências à redução da tarifa externa comum do Mercosul. Para avançar nas discussões, França se reuniu três vezes com Felipe Solá, ministro das Relações Exteriores argentino. No Senado, fonte das pressões que levaram à queda de Araújo, França também tenta recompor o diálogo. Já participou de duas reuniões convocadas pela senadora Kátia Abreu (PP-TO), presidente da Comissão de Relações Exteriores, que processou Ernesto por insinuar que ela fazia lobby em favor dos chineses — ela venceu.

      OSTRACISMO - Ernesto Araújo: a atuação se resume a dar palestra para radicais -
      OSTRACISMO - Ernesto Araújo: a atuação se resume a dar palestra para radicais – Evan Vucci/AP/Imageplus/.

      O desafio maior do novo chanceler é avançar ainda mais nessa faxina diplomática, já que ele não pode contrariar frontalmente as diretrizes do Palácio do Planalto. “Não vejo como França será capaz de melhorar a posição do Brasil internacionalmente. Qualquer grande mudança terá de vir de Bolsonaro, e isso também provavelmente não terá credibilidade. A visão em Washington é a de que o Brasil hoje é mal administrado em muitas frentes e, provavelmente, incapaz de mudar enquanto Bolsonaro estiver na Presidência”, avalia o brasilianista Peter Hakim, presidente emérito do Diálogo Interamericano, instituição dedicada a discutir a América Latina.

      Muito embora não possa ter sucesso na impossível tarefa de controlar o presidente, França tem a seu favor a proximidade que alcançou ao conviver com Bolsonaro quando era chefe de cerimonial do Palácio do Planalto. Não estimular os arroubos presidenciais e costurar nos bastidores já é um bom começo para que o Itamaraty retome um rumo mais razoável. A relevância histórica do Brasil na área de relações internacionais foi delineada desde que o Barão do Rio Branco atuou para definir as fronteiras do país e teve momentos grandiosos como o papel de Oswaldo Aranha na Assem­bleia-Geral da ONU em 1947 que definiu a partilha da Palestina e abriu caminho para o Estado de Israel. O que se espera é que o Itamaraty reencontre a sua história de respeito às outras nações e devolva ao Brasil o protagonismo que o país se esforçou por décadas para construir.

      Publicado em VEJA de 1 de setembro de 2021, edição nº 2753