sábado, 30 de outubro de 2021

Irresponsabilidade deliberada: descalabro fiscal - Editorial Estadão

Irresponsabilidade deliberada

O preço da demagogia pesará desproporcionalmente sobre os pobres. Por ironia (ou talvez justiça) do destino, é possível que a fatura chegue antes das eleições

Notas&Informações, O Estado de S.Paulo 

30 de outubro de 2021 | 03h00  

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,irresponsabilidade-deliberada,70003884555

Responsabilidade fiscal e responsabilidade social são aspectos da responsabilidade com os recursos públicos. A última garante que eles servirão o bem comum, em especial aos vulneráveis, auxiliando-os a conquistar sua independência. Mas para tanto é preciso que haja recursos. É isso o que a disciplina fiscal garante, além da estabilidade econômica, condição para que os negócios prosperem e, logo, para a ampliação do melhor programa social que existe: o emprego. 

O País deve a essa disciplina sua maior conquista econômica desde a redemocratização – o controle da inflação – e a saída de sua pior crise – a recessão. O retorno da indisciplina o põe na rota da inflação, juros altos, mais dívida pública, pressão tributária, fuga de investimentos, desvalorização cambial, deterioração da renda e desemprego. O alívio aos pobres hoje será pago com a multiplicação e a perpetuação da miséria amanhã. 

O rompimento do teto de gastos pode elevar as despesas de R$ 1,647 trilhão para R$ 1,680 trilhão. “Não é o fim do mundo”, ponderou Mansueto Almeida, um dos artífices da recuperação pós-recessão, “se bem justificado tecnicamente.” Nesse “se” está o x da questão. 

Uma “licença para gastar” deveria ser provisória. Em tese, diz-se que o auxílio de R$ 400 valerá até o fim de 2022. Na prática, está se constitucionalizando o calote (nos precatórios) e as pedaladas (na manipulação retroativa do cálculo dos limites de gastos). Em segundo lugar, essa licença deveria ser acompanhada por um plano convincente de corte de gastos e racionalização dos programas sociais. 

Se se preocupasse mais com a vida do que com o voto dos pobres, o presidente Jair Bolsonaro teria iniciado seu mandato articulando uma base parlamentar apta a implementar uma tributação progressiva e uma máquina pública mais eficiente e menos custosa. Só a eliminação dos privilégios do funcionalismo, como propõe a PEC 147/19, renderia um auxílio de R$ 250. 

A racionalização dos programas sociais permitiria remanejar recursos sem custos e com mais eficiência, amparando (continuamente) as pessoas em miséria crônica e (provisoriamente) as sujeitas à volatilidade de renda em excepcionalidades como a pandemia. O projeto de Lei de Responsabilidade Social, que jaz no Senado, foi formatado com esse fim. 

Além de reformas para garantir a sustentabilidade fiscal e social, o governo poderia ter investido contra gastos como os Fundos Partidário e Eleitoral, emendas parlamentares exorbitantes ou os inúmeros subsídios corporativos. 

Essas medidas abririam espaço para gastos sociais e permitiriam até antecipar a revisão do teto sem convulsões no mercado. Mesmo sem elas, seria possível, segundo a Instituição Fiscal Independente, reservar ao abrigo do teto R$ 30 bilhões, ampliando para R$ 250 o Bolsa Família e incluindo os mais de 2 milhões de pessoas na sua fila. 

Mas o presidente optou de saída pelo confronto com o Congresso. Depois, sabotou a vacinação, retardando a retomada. Enquanto sua popularidade derretia, o Centrão sequestrava o Orçamento e submetia a política econômica a seus interesses paroquiais. As reformas foram subvertidas em contrarreformas. Não se esboçou qualquer modernização dos programas sociais. Os subsídios seguem intocados e os fundos partidários e emendas parlamentares foram anabolizados. 

A quebra da regra fiscal já está abrigando mais demandas fisiológicas por fundos e emendas e novos benefícios corporativistas, como o auxílio aos caminhoneiros. O teto despedaçado sofrerá mais investidas, e a credibilidade fiscal do País irá para o espaço. Em plena turbulência global, o Brasil entrará na rota da estagflação. As projeções do PIB estão em queda livre, o desemprego pode aumentar e a inflação acabará corroendo os ganhos com os benefícios sociais. O preço da demagogia pesará desproporcionalmente sobre os pobres. Por ironia (ou talvez justiça) do destino, é possível que a fatura chegue antes das eleições. 

A população já paga caro pela crônica irresponsabilidade social do governo. Com o surto de irresponsabilidade fiscal, a conta vai explodir.

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