Nova edição da “Revista do IEB” celebra a história do instituto
Em seu 80º número, publicação registra a trajetória do Instituto de Estudos Brasileiros da USP que completa 60 anos em 2022
O Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP é um centro multidisciplinar de pesquisas e documentação sobre a história e as culturas do Brasil e guarda muitos tesouros, como quadros de Tarsila do Amaral, cartas de Mário de Andrade e um dos livros mais antigos presentes no Brasil, Crônicas de Nuremberg (1493). A fim de celebrar os 60 anos do instituto em 2022, a 80ª edição da Revista do IEB, publicada em dezembro do ano passado, mostra fotos da antiga sede do centro, construções da nova sede, edições antigas da publicação, entre outros registros que compõem a história do IEB. A revista tem por finalidade publicar artigos originais e inéditos de pesquisadores e autores visando a fomentar a pesquisa nacional, além de resenhas e documentos relacionados aos estudos brasileiros (história, literatura, artes, música, geografia, economia, direito, ciências sociais, arquitetura etc.). “Em tempos de constantes ataques à ciência, ao serviço público e ao patrimônio público, os textos que compõem este número reafirmam a missão de ‘promover uma reflexão crítica sobre o Brasil, a partir da prática da interdisciplinaridade e da pesquisa em acervos’ do Instituto de Estudos Brasileiros”, escrevem os editores e professores da USP Inês Gouveia, Luciana Suarez Galvão e Walter Garcia.
O primeiro artigo, As caravanas: racismo e novo racismo, de Adélia Bezerra de Meneses (USP), explora a ambiguidade da toponímia (estudo linguístico e histórico da origem dos nomes de lugar) carioca na música As Caravanas, de Chico Buarque. A autora faz um aprofundamento da crítica literária dos versos mostrando como o passado escravocrata permanece na zona sul do Rio de Janeiro. Lançada em 2017, a música expõe temas como a exclusão social, o racismo e a islamofobia. A fim de ilustrar essas questões, Adélia realiza um aprofundamento na análise com notícias. Segundo ela, essa canção não é uma crônica carioca, ela vai fundo no ethos do País.
Braços nas argolas e sorrisos nos rostos: narrativas museais sobre a escravidão é o título do artigo de Vinícius Oliveira Pereira e Alexandra Lima da Silva, ambos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Trata-se do mapeamento e a identificação de museus dedicados ao temas sobre tráfico transatlântico de pessoas escravizadas e a escravidão. O texto se inicia com a cena de turistas tirando fotos e posando ao lado do Pelourinho de Mariana (MG), demonstrando insensibilidade com a memória que remete a anos de tortura e resistência. A partir daí os escritores se debruçam, entre outros temas, sobre “a insistência por parte das instituições museais em valorizar a dimensão da violência cometida contra escravizados” e “a desvinculação entre trauma e racismo”. O artigo examina imagens dos acervos disponíveis na internet e das postagens publicadas nas redes sociais dos museus identificados e a compreensão de narrativas sobre a escravidão visibilizada nesses espaços.
Já no ensaio de Paulo Toledo Bio (UFRJ), Modos de conexão popular no cinema brasileiro pré-64: Considerações sobre Vidas Secas, Os fuzis e o inacabado Cabra marcado para morrer, explora três exemplos da tentativa de estabelecer laços “com as frações populares e marginais do País” naquele período. Os destaques nas produções são a geografia do sertão, a miséria extrema, a luta de classes e o messianismo. Nesse sentido, o texto promove uma reflexão sobre a conexão dos realizadores desses filmes da década de 1960 com a população marginalizada brasileira no nível temático, estético e político das obras.
Ainda na área do cinema, mas em conjunto com os campos literário e historiográfico, Do dois ao três, ou A reprodução da burrice paulista, de Victor Santos Vigneron (USP), traz uma revisão bibliográfica e se ampara em pesquisa no acervo da Cinemateca Brasileira para analisar a adaptação cinematográfica de Amar, verbo intransitivo, de Paulo Emílio Salles Gomes. Inspirado no romance de mesmo título de Mário de Andrade, publicado em 1927, a adaptação cinematográfica é objeto de análise em relação às escolhas formais e temáticas feitas pelo autor com outros aspectos significativos de sua trajetória.
Parte da obra epistolar de Mário de Andrade e de sua fortuna crítica é analisada em Cartas para Murilo Miranda, o amigo com quem envelheço, artigo de Monica Gomes da Silva (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia) e Matildes Demétrio dos Santos (Universidade Federal Fluminense). As correspondências expõem o embate entre o funcionalismo público e a atividade artística que se refletiram em uma escrita que “transgride os limites convencionais do gênero […], pelo seu valor literário e histórico”. Nas cartas trocadas entre Mário de Andrade a Murilo Miranda entre 1934 e 1945, percebe-se um Mário muito distante da utopia vanguardista dos primeiros anos do Modernismo brasileiro.
As técnicas composicionais empregadas em Canções sem metro (1900), de Raul Pompeia, são objetos de estudo de Marconi Severo (Universidade Federal de Santa Maria). Em Literatura e filosofia em Raul Pompeia se observam as técnicas do “chiaroscuro” e da “circularidade interna” na obra de Pompeia que, para 0 autor, conseguiu, sob o preço da incompreensão crítica, abordar literariamente suas reflexões filosóficas. Para Severo, essas são mais reformistas do que revolucionárias; mais detidas no homem em si, apesar de considerá-lo como essencialmente mau, do que em aportes metafísicos. “Recorrendo a fontes originais, procuro destacar que a crítica corriqueiramente recaiu em um grande equívoco ao ressaltar um aspecto mais pessimista e sombrio de Raul Pompeia do que a análise de suas obras permite crer”, informa o autor.
A fim de estudar a interpretação de José Marianno Filho sobre a herança ibérica colonial brasileira, Ana Paula Koury (Universidade São Judas Tadeu) escreveu o artigo O Iberismo como primitivismo: a abordagem de José Marianno Filho. Nele, a autora expõe publicações da década de 1920, n’O Jornal, com a hipótese de que neles Marianno Filho incluiu a “herança ibérica como parte de um programa nacionalista, em sintonia com o quadro político do Brasil republicano”, acabando por fornecer elementos fundamentais para a “narrativa nacionalista do Modernismo”.
Recuando no tempo, Teatralidade e carnavalização. Zé Pereira no final do séc. XIX, de Marcelo Fecunde de Faria e Robson Corrêa de Camargo, ambos da Universidade Federal de Goiás (UFG), explora crônicas de Vieira Fazenda (1847-1917) e de Luís Edmundo de Melo Pereira da Costa (1878-1961)” e busca compreender “a criação do personagem Zé Pereira” em meio a um período de “mudanças radicais” no Brasil e, sobretudo, no Rio de Janeiro, período do qual fez parte “o processo de higienização das festas de ruas”. O artigo faz parte de projeto de doutorado que investiga a carnavalização, as performances e as teatralidades luso-brasileiras nas manifestações que se intitulam Zé Pereiras.
O último artigo da seção, Entre Ciência e História: Brasil, um Jardim para a França, de Ana Beatriz Demarchi Barel (UEG), estuda as relações entre romances de José de Alencar e relatos de viagem de Ferdinand Denis e de Auguste de Saint-Hilaire. Essa literatura de viagens que diz respeito às relações entre França e Brasil remonta aos tempos pré-coloniais, quando, ao menos no século 17, narrativas míticas circulavam na Europa e descreviam, imaginando, o território que virá a ser chamado pelos portugueses de Brasil.
Outras seções
A seção Criação – publicada pela primeira vez na edição anterior da Revista do IEB, com o objetivo de publicar materiais inéditos de escritores e/ou artistas, fotógrafos, desenhistas, além de documentos inéditos encontrados no Arquivo do IEB-USP – reúne três Contos baldios, de Márcio Marciano. Dramaturgo e encenador, Marciano fundou a Companhia do Latão, em São Paulo e o Coletivo de Teatro Alfenim, em João Pessoa. Atualmente é consultor da Academia Paraibana de Cinema. Nas palavras do crítico José Antonio Pasta (2017, p. 22), seu trabalho artístico “tem o vezo de procurar resolver os problemas, não ao aliviá-los, obviando o que neles é obstáculo, mas, ao contrário, incrementando a sua dificuldade, extremando-a, até que ela passe no seu outro”.
Na seção Documentação é publicado o artigo Quando restos mortais tornam-se rastros: algumas reflexões sobre a organização do Fundo Alice Piffer Canabrava do Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP), de Otávio Erbereli Júnior (USP). O texto é resultado de uma operação arquivística na qual fazer, sentir e refletir se entrelaçam, conforme o autor. Durante os anos de 2015 e 2016, Erbereli Júnior teve contato diário com a documentação de Alice Piffer Canabrava. Em um primeiro momento, o autor narra a operação arquivística relacionada ao tratamento da documentação. O segundo momento é fruto de um fazer-sentir a partir desse contato íntimo e diário com a documentação, ou seja, traz algumas reflexões sobre as práticas de autoarquivamento empreendidas por Canabrava.
Na última parte da revista, Fábio Alexandre dos Santos (Unifesp) analisa e interpreta História Econômica do Brasil: Primeira República e Era Vargas, organizado por Guilherme Grandi e Rogério Naques Faleiros, no segundo volume da Coleção Novos Estudos em História Econômica do Brasil. No texto, Santos se dedica a pensar no complexo período que vai da Primeira República ao fim da Era Vargas. Seus artigos expressam essa complexidade dialogando com o conjunto das dinâmicas do sistema capitalista que marcaram a economia mundial no período, além de propor reflexões que inevitavelmente nos trazem para os problemas do presente. Da cultura cafeeira e dos efeitos dela decorrentes à proibição de as garçonetes trabalharem à noite, suas problemáticas nos convidam a pensar o processo de acumulação no Brasil, suas peculiaridades e o que somos.
Revista do Instituto de Estudos Brasileiros número 80 pode ser baixada gratuitamente no Portal de Revistas da USP.
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