Decisão da Corte Internacional de Justiça deslegitima argumentação russa para invasão da Ucrânia
Por 13 votos a 2, a Corte Internacional de Justiça ordenou que a Rússia deve suspender todas as suas atividades militares na Ucrânia e que Moscou deve assegurar que entidades ou grupos armados não ofereçam continuidade a essas atividades militares. O vice-presidente Gevorgian e a juíza Xue Hanqin votaram contra, alegando razões processuais. Apesar de ser uma ordem em via preliminar (sem decretar em definitivo violações), a decisão é obrigatória.
O conflito russo-ucraniano confirma a tese de que mesmo a mais brutal das ações humanas — a guerra — precisa ser justificada legalmente. Decisões judiciais emprestam autoridade e legitimidade a uma controvérsia, e podem até mesmo determinar quem tem razão num conflito armado.
O caso na Corte da Haia versa justamente sobre essa hipótese, uma vez que a tese central do caso ucraniano é que (a) Ucrânia não violou a Convenção contra o Genocídio de 1948 e, em consequência (b) a justificativa da Rússia de que um genocídio estaria ocorrendo não poderia legitimar o uso da força armada em seu território, nem justificar o reconhecimento de novos Estados (as repúblicas de Luhansk e Donetsk).
Do outro lado, a defesa russa é de que a Corte não teria jurisdição sobre o caso por não se tratar, na realidade, de uma disputa sobre a interpretação da Convenção contra o Genocídio. Segundo Moscou, o caso é apenas uma tentativa mascarada de julgar questões da legitimidade do uso da força da Rússia na Ucrânia e a declaração de independência das regiões de Luhansk e Donetsk. Por essas razões, não haveria jurisdição e o caso deveria ser dispensado.
Diversos casos no passado foram recusados com argumentações processuais da ausência de jurisdição da Corte. Não raro, Estados recorreram à Corte para decidir questões secundárias em conflitos maiores. Inclusive, já existe um caso pendente a CIJ em que Ucrânia alega que a Rússia estaria discriminando ucranianos e a língua ucraniana na Crimeia. O processo foi iniciado em 2017 e aguarda decisão final.
No presente caso, a Corte convenceu-se de que era necessária ordenar medidas cautelares, diante da plausibilidade dos direitos envolvidos na Convenção de Genocídio, do risco de dano irreparável e urgência das medidas. A Corte usou palavras severas para condenar a extensão e os danos causados pelas atividades militares russas. A decisão pode ser certamente lida como uma vitória para a Ucrânia que obteve uma decisão judicial preliminar ordenando o fim da ação armada russa.
Qual é o significado último dessa decisão sobre medidas cautelares?
Em primeiro lugar, quando a Corte identifica ter jurisdição em via preliminar, com frequência isto é sinal de que ela também se considerará competente para decidir na fase do mérito. Isso significa que existirá uma decisão final, obrigatória, definitiva e inapelável sobre a questão. Em segundo, naquilo que vem sendo convenientemente chamado de guerra de narrativas, trata-se de uma aguilhoada pujante na versão russa da história. Em terceiro lugar, violações à medida cautelar são passíveis de responsabilização. Significa dizer que é mais uma obrigação internacional que se acrescenta à Rússia: o respeito das medidas cautelares ordenadas pela Corte. Por fim, juridicamente, diminui-se o espectro de razões jurídicas pelas quais a Rússia poderia usar a força em território ucraniano.
Há ainda o efeito não jurídico e até mesmo simbólico de uma decisão do gênero. Um dia o conflito cessará. A sociedade ucraniana terá de se reabilitar. Para as vítimas, é um registro de que o principal órgão judiciário da Organização das Nações Unidas emprestou sua voz à causa do direito internacional — à sombra, contudo, dos votos dissidentes.
*Lucas Carlos Lima é professor de Direito Internacional da UFMG. Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre Cortes e Tribunais Internacionais CNPq/UFMG. Foi advogado assistente nos casos do Desarmamento Nuclear perante a Corte Internacional de Justiça.
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