Política internacional e teorias conspiratórias: considerações pessoais
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)
Notas para entrevista oral no quadro de emissão no YouTube, “Psicoeducação”, animado porVitor Matos de Souza, no YouTube, em 27/04/2022, 20hs (link: https://www.youtube.com/channel/UCtGmAFkxO7RzofDE4ROSGYw) .
1) Falar um pouco sobre a tese dos três blocos, globalista, islâmico, e russo-chinês numa perspectiva de modo a sinalizar o que é real e o que delírio nessas teses.
PRA: Não existem três blocos estritamente configurados sob essas três designações, o que de toda forma seria altamente aleatório apresentar tais configurações como “teses”, sob tais “agrupamentos” definidos dessa forma. O que existe, sim, mas com arquiteturas muito diferentes, são instâncias de coordenação, consulta e cooperação entre países ou grupos de países, sob diferentes instrumentos regionais ou globais (eventualmente mundiais, mas não necessariamente universais), que congregam Estados – os do arco ocidental das democracias de mercado, por exemplo – ou comunidades civilizatórias ou religiosas – como é o caso da Organização da Conferência Islâmica, congregando 57 países de línguas e culturas diversas, mas de maioria islâmica em suas populações –, ou, bem mais recentemente, a declaração de “aliança sem limites” entre a Rússia e a China, mas neste caso congregando duas nações bastante diferentes entre si, apenas unidas por motivos circunstanciais, que é a oposição virtual ao G7, ou ao bloco supostamente hegemônico das potências ocidentais.
Existe um lado real, mas vagamente identificado com três “blocos” tal como acima mencionado, mas obedecendo a diferentes critérios de “agregação”, bem mais evolutiva e natural, no caso das democracias de mercado vulgarmente chamadas de potências ocidentais e essa entidade mais vagamente unida em torno de uma mesma religião (mas com diversas vertentes dentro do conjunto) que é a Conferência Islâmica, constituída em grande medida em reação à dominação ocidental, mais exatamente europeia, sobre antigos territórios, povos e Estados colocados no grande arco civilizatório da comunidade islâmica, mas com fracos laços políticos e econômicos entre eles. Por fim, é um fato que se formou uma “aliança” entre a Rússia e a China, depois de séculos de evolução diferenciada, de uma fugaz identidade comum sob o comunismo da III Internacional, mas logo distanciados por grandes diferenças de visão quanto ao mesmo comunismo e tornados até hostis por disputas territoriais e visões distintas quanto à ordem mundial. A “aliança sem limites” proclamada por Putin e Xi Jinping em fevereiro de 2022 deve encontrar seus limites políticos, econômicos e geopolíticos, à medida em que os dois grandes irmãos do socialismo tiveram marcados processo de desenvolvimento econômico e político nas últimas décadas, o que deve se acentuar nos anos à frente, sobretudo com as consequências duradouras da guerra de agressão de Rússia contra a Ucrânia. A Rússia será o irmão menor dessa aliança, a despeito de possuir um poder de fogo razoável em termos bélicos.
2) Qual foi o efeito de devastação do governo Bolsonaro para a diplomacia brasileira e se ele conseguiu ser pior que o governo Lula.
PRA: O qualificativo de pior não é o mais adequado para colocar numa linha de comparação as diplomacias lulopetista e a bolsonarista, tão diferentes quanto água e vinho. A despeito de desvios partidários e ideológicos em alguns aspectos da política externa, a diplomacia do lulopetismo representou uma continuidade de desenvolvimentos anteriores, notadamente no terreno regional, no campo multilateral e na questão do tratamento dos temas inscritos nas agendas sociais, culturais e ambientais mundiais. Já o bolsonarismo diplomático representou uma ruptura com tudo o que havia antes, começando pela recusa absolutamente ridícula do globalismo, um fantasma que se traduziu numa recusa do multilateralismo, o eixo central das relações internacionais contemporâneas.
O show de horrores teve início ainda antes da inauguração do governo e mesmo antes do pleito eleitoral de outubro de 2019, quando o deputado venceu as eleições com discurso enganador, até mentiroso, prometendo luta contra a corrupção, política econômica liberal, fim do que tinha sido caracterizado como “velha política” – ou seja, cargos e subsídios em troca de apoio congressual – e postura eminentemente técnica na formulação e implementação das políticas públicas. O prenúncio da ruptura com os valores e princípios da diplomacia profissional, com as linhas tradicionais da política externa brasileira já tinha sido feito na entrega do programa de governo do candidato ao TSE, em agosto de 2018: nele constavam apenas cinco parágrafos da pior qualidade substantiva sobre quais seriam as grandes metas e diretrizes da nova política externa, supostamente não ideológica, mas totalmente tomadas por orientações essencialmente ideológicas, já prometendo um alinhamento com governos de direita e uma adesão unilateral à política dos Estados Unidos, e mais especificamente ao então presidente Trump.
O que se assistiu nos primeiros dois anos e meio do governo Bolsonaro na frente externa foi muito pior do que o esperado, com o abandono de relações longamente cultivadas na região e fora dela, assim como a inversão totalmente ideológica de posturas anteriormente assumidas, sobretudo no plano multilateral, objeto de uma ridícula, na verdade, atroz, rejeição do multilateralismo, assimilado, por um raciocínio tão irracional quanto estúpido, ao fantasmagórico inimigo do “globalismo”, que seria uma coalizão de banqueiros de esquerda, de burocratas não eleitos da ONU e de esquerdistas tradicionais, todos eles devotados a retirar soberania dos Estados nacionais, para substituí-la por uma governança mundial de caráter antinacional e de cunho comunista. Os diplomatas foram chamados a partilhar desse manancial de bobagens oferecidas em discursos, entrevistas e artigos, da parte do primeiro chanceler acidental e de alguns ideólogos do olavismo, uma das seitas influentes no novo esquema de poder.
A diplomacia brasileira deixou para trás uma avaliação de grande prestígio, de que gozava anteriormente, pelo seu profissionalismo exemplar na defesa dos grandes temas e questões do multilateralismo contemporâneo, para se refugiar num antiglobalismo não só estéril, como sumamente ridículo. O Brasil ficou isolado internacional. Descrevi e analisei toda essa deriva alucinante em diversos livros que acompanharam a fase mais aguda do bolsolavismo delirante: Miséria da diplomacia: a destruição da inteligência no Itamaraty (2019), O Itamaraty num labirinto de sombras, seguido de Uma certa ideia do Itamaraty (2020), completados por O Itamaraty Sequestrado e Apogeu e demolição da política externa(2021), este último já abrangendo as quatro últimas décadas da diplomacia brasileira.
3) Qual o caminho para o desenvolvimento brasileiro agora que o liberalismo foi associado ao bolsonarismo e que o próximo governo tende a ter uma ideologia cepalina e dirigista em relação a economia?
PRA: Há um equívoco de percepção em certos setores ao se acreditar que o liberalismo está associado ao bolsonarismo. Talvez esta tenha sido uma impressão induzida por uma falsa propaganda de uma pretensa vocação liberal do novo governo durante a campanha eleitoral e nas primeiras semanas de governo, quando se anunciavam privatizações de grandes empresas estatais, abertura econômica e liberalização comercial, quando nada disso se fez, sobretudo por oposição do próprio presidente, um estatista nacionalista dos mais medíocres, e também pelo tradicional protecionismo das elites econômicas tradicionais, tanto industriais quanto agrícolas. Diversos assessores importantes da área econômica foram se distanciando do governo, justamente pelo abandono de todas as promessas enganosas de campanha, assim como pela total contradição entre as promessas de luta contra a corrupção e as práticas efetivas de apoio aos setores políticos mais corruptos do sistema político brasileiro, em especial a partir de meados de 2020, quando o governo se rende definitivamente ao chamado Centrão, o núcleo duro do fisiologismo corrupto da política brasileiro. Se alguns liberais ainda acham que o governo Bolsonaro ainda possui qualquer vocação liberal podem ser pessoas mal-informadas, iludidas, equivocadas ou de má-fé.
Não se sabe ainda que tipo de governo teremos em 2023, assim que não cabe antecipar qualquer tipo de política pública mais ou menos identificada com as linhas básicas do antigo cepalianismo de cunho dirigista. Cabe esperar para ver o que será o próximo governo.
4) Como você vê a questão do globalismo? É possível que a integração econômica mundial coexista com uma integração política? Até que ponto as autoridades nacionais podem continuar relevantes nesse cenário?
PRA: O mundo caminhou, desde a era moderna, da formação e consolidação dos Estados nacionais – cujos princípios básicos de funcionamento foram sendo definidos e moldados em algumas grandes etapas das relações internacionais, em Vestfália (1648), em Viena (1815), em Paris (1919 e em San Francisco (1945) – até o advento de um sistema internacional baseado na preeminência do multilateralismo de cunho político. Ao mesmo tempo, no campo econômico, coexistiam grandes impérios e empreendimentos coloniais que sustentaram a dominação europeia sobre os assuntos do mundo durante os últimos cinco séculos. Paralelamente, esses processos de primazia da Europa ocidental – a partir do século XIX complementado pela ascensão dos Estados Unidos – sobre os assuntos do mundo foram sendo complementados por uma nova onda de globalização (a primeira tinha ocorrido nos Descobrimentos, mas logo compartimentada pelos impérios coloniais excludentes), que se acelerou tremendamente na primeira (1750-1830) e na segunda Revolução Industrial (1870-1914), integrando mercados, estabelecendo as grandes linhas de uma economia mundial que ainda permanecem no século XX, a despeito da Grande Guerra (1914-1918) e do advento do socialismo (com uma duração de aproximadamente 70 anos, mas um alcance apenas parcial sobre os grandes vetores da economia mundial).
O globalismo econômico, de fato mais consolidado, sobretudo quando a ordem desenhada em Bretton Woods alcançou as antigas economias socialistas, conseguiu integrar praticamente todos os continentes e regiões a uma grande divisão mundial do trabalho, passando a definir grandes cadeias de valor e o comércio internacional a partir dos interesses das grandes empresas multinacionais, mas também de ofertantes competitivos em economias menores ao redor do planeta. Não ocorreu, entretanto, nenhum processo de globalismo político – ao contrário do que afirmam as teorias conspiratórias sobre o poder mundial de uma superburocracia global, não eleita –, uma vez que a ONU e suas múltiplas agências continuam dependendo do que decidem os Estados nacionais, sobretudo as grandes potências, jamais de acordo sobre as grandes linhas de um alegado governo global. Alertas e alarmes nesse sentido são simplesmente desprovidos de qualquer fundamentação empírica e são unicamente disseminadas a partir de pequenos grupos e movimentos que entretêm um tipo de crença sem qualquer consistência no plano do funcionamento efetivo da agenda mundial. Os grandes itens da agenda mundial – na área econômica, social, ambiental e no tratamento dos chamados problemas comuns – continuam a ser determinadas pelos Estados mais poderosos e por coalizões flexíveis de grupos de países que convergem em vários desses temas, o que não existe, entretanto, no campo da segurança internacional e no da capacitação militar, que resta exclusivamente baseado em concepções realistas de poder e prestígio internacionais. Basta apenas recordar que o dispositivo da Carta da ONU prevendo uma Comissão Militar dotada de poderes para movimentar forças próprias da ONU, segundo decisões de seu Conselho de Segurança, jamais foi implementado como previsto no texto de San Francisco. Em outros termos, os temores de um governo global, onipotente ao ponto de ameaçar a soberania e a autonomia dos Estados nacionais são altamente exagerados e totalmente infundados.
5) Na Europa, é comum que os populistas culpem Bruxelas por tudo. Hoje a direita é contrária a existência da Otan, ONU, Unicef e qualquer entidade global de gestão. Quais seriam as consequências da falência dessas entidades para o mundo.
PRA: As entidades de cunho universalista criadas ao final da Segunda Guerra Mundial são certamente imperfeitas e muitas vezes inoperantes para os fins delineados na própria Carta da ONU e nos estatutos constitutivos de suas diferentes agências: paz e segurança internacional, cooperação para o desenvolvimento de países e regiões mais pobres, ausência de ameaças ao bem-estar de diversos povos, seja por fatores internos (os mais frequentes), seja por pressões externas (como ocorre atualmente na guerra de agressão da Rússia contra a vizinha Ucrânia, que já fez parte dos impérios russo e soviético), ou por desafios ambientais e crimes transnacionais. O mundo ainda é muito desigual, e certamente um maior grau de abertura econômica, de liberalização comercial, de integração das políticas públicas nacionais num sentido convergente com objetivos de prosperidade e bem-estar global, seria muito bem-vindo, na medida em que avança, a despeito de percalços, a globalização econômica. No entanto, ambições nacionais, miopia de dirigentes políticos, corrupção em governos de todos os tipos (democráticos ou não) dificultam a consecução desses objetivos meritórios, que demandariam um amplo acordo político interestatal e uma visão compartilhada quanto à necessidade dessa convergência de políticas, tentativamente implementadas ao longo das últimas décadas em diferentes projetos desenhados e discutidos na ONU, desde sua origem. Depois das metas do milênio – e anteriormente de diversas décadas do desenvolvimento dos países mais pobres – e agora, com os objetivos do desenvolvimento sustentável, governos nacionais e tecnocracia onusiana fazem tentativas de disseminar educação, segurança, promoção do bem-estar para as populações mais frágeis e vários outros indicadores de prosperidade compartilhada, mas o próprio princípio da soberania nacional absoluta, escrupulosamente consolidado e em princípio respeitado na Carta da ONU torna difícil concretizar e disseminar tais objetivos nobres e meritórios.
O mundo ainda vive sob o domínio dos Estados nacionais, com talvez alguns grandes impérios informais, com um poder incontrastável de determinar as agendas globais, seja pela força de suas economias, seja pela intimidação de seus aparelhos militares. Entre esses impérios informais é possível distinguir o americano (notadamente a partir de 1917 e, em especial, desde 1945), o chinês (praticamente desaparecido durante alguns séculos, mas de volta ao grande jogo geopolítico desde o início desde milênio), o russo (anteriormente estabelecido na vastidão dos territórios sob a dominação czarista dos Romanov, depois novamente refeito sob os setenta anos de jugo soviético, agora tentando renascer numa vertente neoczarista sobre os mesmos antigos territórios da Europa e da Ásia centrais), e possivelmente o europeu, organizado coletivamente sob a forma da União Europeia, depois da derrocada dos antigos impérios coloniais dos países da Europa ocidental. A esses grandes impérios informais – pois que desprovidos de centralização política e de uma governança única, reconhecida como tal –, podem ser alinhadas potências médias, como diversos países do G20, como Índia, Japão, Canadá, Brasil, Indonésia, África do Sul e vários outros.
Não é certo que todas essas economias, Estados nacionais e agrupamentos regionais possam ser definidos em termos de alinhamento político a uma determinada corrente ou ideologia, mas é possível, sim, identificar democracias de mercado – na América do Norte, na Europa ocidental e representantes esparsos em diversos outros continentes – e alguns grandes e pequenos Estados dominados por regimes autocráticos ou iliberais, como se convencionou chamar aqueles não exatamente caracterizados pela alternância política entre partidos nacionais dispondo de plena liberdade de organização, expressão e atuação. As democracias vêm, inclusive, recuado temporariamente ou parcialmente, sob os golpes de diferentes lideranças populistas que resvalam frequentemente para o autoritarismo. A evolução para regimes plenamente democráticos em todos os continentes, na maioria das regiões do mundo, é um processo lento, nem sempre irreversível, e sempre dependente de crises econômicas, pressões migratórias provenientes de culturas diferentes e sujeitas a constantes ameaças por parte de candidatos a ditadores, abertos ou disfarçados.
O mundo não dispõe de nenhuma garantia de que os direitos humanos e as liberdades democráticas – tais como expressas, por exemplo, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em protocolos democráticos aprovados em escala regional, e em dispositivos da própria Carta da ONU – possam efetivamente se impor com a força do Direito, uma vez que se trata de meras declarações de intenção, sem a compulsoriedade de tratados dotados de meios efetivos de implementação. Daí que o direito da Força ainda continua a ser exercido em diferentes quadrantes do globo, sem que ele possa ser coibido por alguma força supranacional que é simplesmente inexistente. O mundo contemporâneo não é mais tão hobbesiano como ele foi até meados do século XX, mas ele ainda é, e assim será por algum tempo mais, insuficientemente kantiano ou lockeano. A educação cidadã ainda precisa progredir bem mais, em praticamente todos os países do mundo – e os retrocessos podem ocorrer inclusive em países avançados, como nos revela a força de autocratas autoritários nos Estados Unidos e na própria Europa ocidental –, para que os ideais de liberdades, de democracia, de bem-estar, de segurança e de justiça possam ser disseminados de maneira mais resoluta e mais efetiva.
Exercícios e tentativas de Idealpolitik podem até ser desprezados pelos partidários do realismo cru dos nacionalistas irredutíveis, aqueles que acreditam unicamente na expressão totalmente soberana dos interesses exclusivamente nacionais, mas eles constituem um objetivo sempre meritório no plano das aspirações humanas e sociais. Prefiro acreditar que esse mundo venha a existir algum dia, pois ele corresponde à racionalidade civilizatória, que vem se expandindo cada vez mais, a despeito dos soluços autoritários e destrutivos que se manifestam ocasionalmente. O mundo atual é melhor do que aquele que tivemos em qualquer época passada, e o mundo do futuro será certamente melhor do que o atual.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4136: 26 abril 2022, 7 p.
Emissão “Psicoeducação”, a convite de Vitor Matos de Souza, por via do YouTube, em 27/04/2022, 20hs (link: https://www.youtube.com/channel/UCtGmAFkxO7RzofDE4ROSGYw).
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