Colegas, amigos muitos, Falar sobre o "Ruana", como vários o chamavam, é fácil. Dificil é, para os que não privaram com ele, avaliar o tamanho dessa perda, pela dimensão imensurável de seu caráter e personalidade.
Minha experiência com ele durou bem além das mais de quatro décadas que passei na carreira ativa, no Brasil e fora. Conheci-o de nome, antes de entrar para o IRBr, nos albores da "Gloriosa", seu nome vinculado a formulações sócio-políticas que apontavam para uma provável - felizmente jamais ocorrida - repressão.
Com efeito, a esquerda do Rouanet era iluminada por uma estrutura de pensar autenticamente humanitária e democrática, parâmetros filosóficos que guiaram suas atitudes ante a vida até sua morte. Era um mestre do pensamento, como cabe aos filósofos de porte. Sua obra é imensa e abrangente, sobre multidisciplinar, à semelhança de sua erudição e cultura.
Sua fama me veio da primeira informação a seu respeito, de que passara para o segundo ano de Direito, na PUC do RJ, sem dependência, como invariavelmente ocorria, em Filosofia do Direito, ministrada por jurista de origem polonesa, Sbrozec, implacável em sua avaliação dos alunos. O resultado, segundo consta, foi não só de aprovar, mas aplaudir, de pé, Sérgio Paulo Rouanet.
Foi meu Professor de Política Internacional, no segundo ano do IRBr, ainda nas dependências da Candelária, no RJ. Sua fala monocórdia podia dar sono, mas o entrecho não deixava jamais dormir. Nas aferições de conhecimento, que exigiam nota valorada, conforme os ditames de um sistema de ensino que julgava incoerente e ultrapassado, além de urdido com severas falhas, nunca deu menos do que 8, pois acreditava que as provas, ginasianas que eram em seu método de aferição, pouco indicavam do valor real do examinando.
Com isso, meu deu 10 em duas provas, cujas questões (Morgentau e a Teoria do Poder, Nash e a Teoria dos Jogos) ainda são de minha completa memória, como quase tudo que dele me veio. O mesmo ocorreu em seminário dinâmico que propôs à turma, para encenar confronto multilateral, no qual me coube o papel de representante da Comissão da então Comunidade Econômica Europeia, ato que situo na raiz de meu interesse por aquela integração econômica, e, em provir dinâmico, política, que terminou sendo um de meus avatares temáticos na Carreira e tema de minha tese de CAE.
Sempre em contato, após esse prelúdio acadêmico, viemos a reencontrar-nos na Delegação Permanente em Genebra, em minha primeira lotação lá (2 e 1S), período em que tive o privilégio efetivo de compartilhar com ele a mesma sala de trabalho, por inteiros quatro anos. Fui seu segundo em matéria de UNCTAD (Comissões de Manufaturados, de Produtos de Base e de Assuntos Financeiros e Junta de Comércio e Desenvolvimento), no que foi o melhor aprendizado de minha vida, ao habilitar-me a atuar em seu lugar e a pensar estrategicamente, no contexto da buscada reforma do sistema econômico internacional, em que, ademais, militavam algumas das melhores cabeças da Casa: Souto Maior, Amaury Bier, Ronaldo Costa, Lindenberg Sette, Paulo Cabral de Melo, Paulo Nogueira Batista, George Alvares Maciel, Antônio Sérgio Frazão, Antônio Francisco Azeredo da Silveira, nos planos mais elevados, complementados por uma incrível turma de assessores da mais alta competência, e com outros bem menores, como eu, na rabeira da lista.
Esses foram anos realmente dourados, no dia a dia com Sérgio Paulo, na mesma diminuta sala de trabalho, com os papéis desencontrados de sua mesa derramando-se sobre a minha, em contraste com seu pensamento dialético, perfeitamente ordenado, que se vertia sobre mim. E isso numa convivência intra e extracurricular de grande variedade, entre almoços nos desvãos horários do Palais des Nations e um que outro jantar na Vieille Ville, em seu apartamento da Grand'Rue, ou em minha casa de Conches.
Nessa época, finalmente, após troca infinita de profissionais do campo, encontrou um analista que podia ouvi-lo sem perder-se ante o cérebro maciçamente informado e culto de seu paciente. Foram seis anos de "sessões", durante algumas das quais, nos quatro anos citados, pedia-me que o substituísse, quando se chocavam com nossa agenda unctadiana. Lembra-me bem o dito "rompimento final", em que, dada a profundidade dos laços assim formados, Rouanet encontrou certa dificuldade de liberar-se, o que, de repente, ocorreu quando, como me disse, se deu conta de que se tratara, verdadeiramente, de um diálogo com seu próprio inconsciente.
Daí em frente, não mais trabalhamos juntos, a não ser ocasionalmente, em conferências internacionais, onde a liga que formáramos se repetia com facilidade.
Nossos papos nunca foram papos-cabeça por si mesmos, ainda que mormente inspirados pelo nível que inevitavelmente tomavam quaisquer tertúlias, sobre qualquer tema, de cinema a automóveis (com exceção de esportes, que não o atraiam, apesar de sua notável força muscular). Por exemplo, foi nessa época que, com José Guilherme Alves Merquior, outro exímio pensador e, curiosamente, sua nêmese ideológica, realizou a celebrada entrevista, seminal, de ambos com Michel Foucault.
Singularmente, vem-me à lembrança que, naquele período genebrino, o governo brasileiro (apesar de ainda estar no poder a "gloriosa") decidiu condecorar com a Grã-Cruz do Cruzeiro do Sul o pensador e educador suíço Jean Piaget. O Embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro, nosso então chefe em DELBRASGEN, fez a entrega da honraria em sua residência, para o quê incumbiu Sérgio Paulo de preparar-lhe breve discurso. Para admiração geral dos convivas, Piaget começou seu agradecimento pela menção de que jamais, em sua vida, ouvira tão concisa, precisa e substantivamente profunda análise de seu pensamento.
Tendo recebido do Brasil um dinheiro - muito bem-vindo naquela conjuntura de severa estagflação dos anos 70/80 e seus dois sucessivos Choques do Petróleo -, decorrente da venda de sitio que herdara de meu pai, resolvi investi-lo na compra de uma pequena Ferrari, marca que, à época, como várias outras de nome, davam desconto para diplomatas, pelo sentido de propaganda que seu uso por eles ensejava, o qual permitia revender o carro, mais tarde, sem perda de valor, a preço equivalente ao da compra, senão maior. Diferentemente de outros colegas que viam naquilo abuso ou irresponsabilidade, Sérgio Paulo achou engraçadíssima minha decisão e tratou de fazer juma análise psicanalítica do objeto da compra, que assim descreveu, precisamente, sem dela ter conhecimento, da publicidade da marca: "De corpo suave e sensual, é arrepiante em seu desempenho, como o som de seu motor". Ou seja, Rouanet era gente.
Daí para a frente, foram sempre águas tranquilas, confirmadas pela boa liga que formei com sua nova companheira, logo depois esposa, Bárbara Freitag, sólida intelectual por seus próprios méritos de socióloga do Grupo de Frankfurt, algo mais radical no uso de Marx do que seu marido, porém com encaixe que a comum das mortais nunca conseguiria com ele. Juntos, no final dos anos 70, no sítio que Sérgio Paulo comprara nos arredores de Brasília, em meio a jabuticabeiras, goiabeiras e mangueiras, glosávamos os ataques de Carlos Frederico Werneck de Lacerda, notável golpista de sempre, repudiado até pela "gloriosa", que tanto apoiou, à postura crítica, daquela que chamava, maldosamente, de "A Dama de Berlim". à educação no Brasil, severamente afetada pela visão, vinda dos militares no poder, das reformas de que esse setor tanto carecia, como ainda hoje, por sinal.
A Lei Rouanet, hoje posta em cheque pela mesma visão dantesca da "gloriosa", imperante até 1985, creio que resume bem Sérgio Paulo Rouanet. Enquanto as esquerdas desilustradas e pró-ditatoriais repelem, ou buscam corromper, o empresariado industrial, Rouanet insistia em que este deveria ser cooptado para compor, positivamente, com seus vultosos recursos, o quadro de redenção social de que o Brasil estruturalmente necessita com urgência. O uso de parte de suas receitas, em benefício da cultura, em última análise colima esse fim e tem efeito exemplar para estender medidas desse gênero a outros campos de nosso processo de desenvolvimento.
Sua entrada para a Academia Brasileira de Letras é prova marcante de quanto precede. Longe de ser aquele sarcófago para velhotes literatos, visto por muitos "revolucionários" como antro de conservadorismo, é, a rigor, o nec plus ultra da consagração do intelecto, hoje estendido para muito além de premiação da produção estritamente literária, para cobrir campos diversos com efeito sobre a cultura nacional.
Hoje, às 14 horas, despedi-me de meu amigo, de e para sempre, Sérgio Paulo Rouanet.
João Gualberto Marques Porto Junior.
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