quinta-feira, 3 de novembro de 2022

Prefácio ao livro de Arnaldo Godoy: Direito e História: formação do Estado brasileiro - Paulo Roberto de Almeida

O prefácio que escrevi para a obra de um grande mestre do Direito, da história política e constitucional do Brasil e da evolução jurídica comparativa dos Estados modernos, com um conhecimento ainda mais preciso sobre a formação do Estado brasileiro: 


Da construção do primeiro Estado brasileiro aos desafios atuais

  

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

Prefácio ao livro de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy: Direito e História: formação do Estado brasileiro (Londrina: Thoth, 2022, p. 13-19; ISBN: 978-65-5959-341-5).

 

 

No frontispício a este livro, o intelectual Arnaldo Godoy seleciona uma frase pouco reproduzida do francês Alexis de Tocqueville, um dos grandes fundadores da sociologia, em uma de suas obras menos famosas, O Antigo Regime e a Revolução: “A história é uma galeria de quadros em que há poucos originais e muitas cópias”. 

De fato, esta é uma tendência visível nas mais diversas comunidades humanas organizadas em forma de Estados, ao longo de toda a história: imperadores, estadistas, partidos políticos, movimentos sociais, pensadores individuais, tendem a reproduzir ideias, formações políticas e instituições que, em democracias ou em regimes autocráticos, prolongam conceitos e organizações que perpassam toda a história humana, ou até das civilizações. Isso se aplicava à própria história francesa, como Tocqueville registrou naquela obra, registrando aqui que em 1848, quando ele foi por breve tempo, chanceler da Segunda República, a França estava ainda na sua quinta constituição, das quinze que o país exibiu até chegar na atual Quinta República. Ou seja, a França teve quase o dobro das constituições quanto o Brasil teve de moedas, campeão absoluto na história monetária mundial (até aqui, esperando a Venezuela chavista nos ultrapassar). 


 Essa característica se aplica particularmente à feitura de novas constituições, que, na história política dos países modernos e contemporâneos, tende a repetir uma glosa dos mesmos dispositivos e instituições mais ou menos num estilo à la Montesquieu, com alguns toques de Benjamin Constant e o liberalismo político da Carta de Cádiz (1812), com outros dispositivos da constituição americana naqueles países presidencialistas, como o Brasil. Praticamente todos os países contemporâneos – com poucas exceções – tendem a consolidar formas de Estado com base no esquema tripartite dos poderes, que devem, pelo menos em teoria, serem harmônicos e independentes entre si, com algumas instituições assessórias no plano judiciário ou no controle dos gastos públicos. Parafraseando George Orwell, se poderia dizer que “todos os animais estatais são iguais, mas alguns são mais iguais que outros”. 


 O livro de Arnaldo Godoy parte do momento em que se funda “o nascimento do Estado brasileiro”, e ele tem razão em identificar o adjetivo brasileiro, uma vez que “Estado”, ou algo equivalente, o Brasil (ou os “Brasis”, pois que não tivemos, de fato, uma nação unificada até meados do século XIX) já tinha, desde que aqui chegou o primeiro governador-geral, Dom Tomé de Souza, em 1549, depois trocado por vários vice-reis e, finalmente, pela Corte dos Braganças em sua inteireza, em 1808. Foram eles que construíram os rudimentos do futuro Estado independente, que toma forma, muito precariamente, em 1821, ainda sob a regência do príncipe Dom Pedro, para depois se apresentar ao mundo como “Império do Brasil”, no final de 1822. O reconhecimento diplomático formal demorou um pouco, ainda que os Estados Unidos tenham dada a partida em 1824, mas as grandes potências europeias só começaram a reconhecer nossa existência depois que “acertamos as contas”, com Portugal e com Dom João VI, no tratado patrocinado pela Grã-Bretanha em 1825.


 No momento em que “comemoramos” – as aspas podem ser necessárias numa fase de aparente “desunião” da nação – os 200 anos desse ato de criação, esta obra é indispensável para conhecermos: como se organizou o novo Estado, a partir da Constituição de 1824 (outorgada, depois do fechamento arbitrário, pelo jovem imperador, da primeira Assembleia Constituinte); como era financiado esse Estado (muito precariamente, para dizer o mínimo, daí a sucessão de empréstimos externos); como se consolidou esse Estado (basicamente pela “parada institucional” oferecida pelo chamado Regresso, depois dos impulsos liberais dos primeiros tempos); quais eram os fundamentos conceituais, no plano econômico e político, da jovem nação americana, a segunda maior do hemisfério (mas muito atrasada em relação ao gigante anglo-saxão do Norte) e, finalmente, quais eram, no início de nossa conturbada história política, os projetos para o Brasil, essencialmente o Estado unitário monárquico que Bonifácio estimava indispensável à preservação da própria existência da nação, e os impulsos libertários, republicanos e progressistas, avançados por Frei Caneca, um dos maiores intelectuais de nossa história, infelizmente ceifado pela prepotência da Corte do Rio de Janeiro, na breve experiência da Confederação do Equador, em 1824, proponente de um Estado federal, como finalmente a República se encarregou de instituir, 67 anos depois. 

O foco central da obra de Arnaldo Godoy é essencialmente o Estado brasileiro, como aliás evidenciado no subtítulo (que é, conceitualmente, o título do livro), antes que a nação, pela simples razão – como já enfatizado por dezenas de historiadores e cientistas políticos – que o Estado precede a nação, e de certa forma a cria, a molda, a organiza (algumas vezes de forma brutal, como na escravidão do século XIX, ou nas ditaduras do século XX). O centralismo ibérico foi preservado na institucionalidade aqui implementada pelos Braganças e depois adaptado às vicissitudes da terra, como detectaram desde cedo os liberais conservadores das Regências e do Regresso ao início do Segundo Reinado. Sua reflexão fundada no Direito e na História – que é o título real da obra – vai de 1808, quando se tem um Estado português no Brasil, até 1831, quando a política “brasileira” deixa, finalmente, de ser em parte portuguesa, como registrado em inúmeras inclinações políticas e diplomáticas do primeiro imperador. Alguns intérpretes, como Manoel Bomfim, no início do século XX, acreditam que o Estado só se tornou realmente “brasileiro” depois de 1831, embora Hipólito da Costa, que pode ser considerado o primeiro estadista brasileiro – a despeito de jamais ter vivido na terra que ele considerava sua, desde os estudos em Coimbra, na última década do século XVIII –, tinha plena convicção de que a nação começou a ser forjada desde a transferência da Corte, quando ele também dá início ao seu grande empreendimento intelectual, o Correio Braziliense, editado em Londres de 1808 a 1822.

O autor tem razão em sublinhar a origem europeia de nossas instituições de Estado, e não poderia ser de outro modo, dados os vínculos de toda a sorte que nos prendiam ao molde português e, em parte, ao espírito liberal da Carta de Cádiz, que foi adotada em Portugal depois da Revolução do Porto, em 1820, e que, portanto, influenciou, em grande medida, os constitucionalistas eleitos e os membros da comissão que redigiu a Carta de 1824. Ele também chama a atenção para o aspecto crucial do financiamento do Estado, autor que é de inúmeros livros e artigos sobre a história e o funcionamento dos diversos sistemas tributários do Brasil, assim como membro de grupos de pesquisas nessa área e, principalmente, um “burocrata-mor” da organização e aplicação da tributação no Brasil atual. Não se trata apenas de um exegeta de normas constitucionais e legais relativas ao Estado e seu funcionamento, mas de um pesquisador no plena sentido da palavra, pois que vai às fontes primárias, aos documentos históricos que fundamentam o que ele chama de “primeiro Estado brasileiro”. 

Ele refaz a “história real”, não apenas aquela documental – como, por exemplo, em Varnhagen, Rocha Pombo e outros – pois que resgata a importância do “corso” utilizado por Dom Pedro, durante os entreveros com os portugueses pretensamente “restauradores” do pacto colonial. A guerra de corso era um empreendimento dos soberanos nos conflitos contra Estados inimigos sem a necessidade de mobilizar frotas e exércitos, contratando simplesmente – por vezes dando cartas patentes oficiais – seus “empresários marítimos” que dividiam o butim, as presas, com os soberanos contratantes. Cabe não confundir corsários com piratas, estes uma espécie de “microempresários” da pilhagem individual, ao contrário dos primeiros, que agiam em favor dos Estados aos quais estavam vinculados. Nos tempos coloniais, os piratas agiam de maneira mais intensa nas águas do Caribe, saqueando os galeões espanhóis carregados de ouro e prata arrancados do México e das colônias andinas da América do Sul. Os corsários visitavam mais frequentemente o continente na parte atlântica e no Pacífico: Brasil e Peru, por exemplo, receberam muitas “visitas” dos corsários mais conhecidos: Fulton, Cavendish, Francis Drake e alguns franceses. Por incrível que pareça, o corso continuou impune durante várias décadas depois do Congresso de Viena (1815) e só foi abolido formalmente em 1856, pelo tratado de Paris, que sacramentou a “nova ordem internacional”, depois da primeira guerra da Crimeia (1853-55); este também foi o primeiro instrumento “multilateral” ao qual aderiu o Brasil do Segundo Reinado. 

O pequeno (menos de 200 páginas) livro de Arnaldo Godoy impressiona pelo volume de minúcias e detalhes sobre a organização e o funcionamento do primeiro Estado brasileiro, um mini-Leviatã burocrático que explica um pouco como chegamos ao super-Leviatã dos tempos atuais. A parte sobre o financiamento daquele Estado, tanto sob Dom João VI quanto sob Dom Pedro I, é primorosa, e completa, em sua descrição das múltiplas formas de “extorsão” estatal, algo certamente preservado em nossos tempos. A tributação foi especialmente “cuidadosa” nas questões do tráfico e da escravidão, provavelmente a maior “tragédia” nacional em mais de 500 anos de história, pois que deixou marcas indeléveis na nacionalidade, mesmo depois de terem sido ambos abolidos. O Brasil, por sinal, é o mais antigo e frequente “cliente” dos relatórios anuais da mais antiga ONG do mundo, a British (depois internacional, quando o Reino Unido aboliu a escravidão) Anti-Slavery Society, pois que nunca deixamos de figurar em seus registros, seja durante o tráfico, depois enquanto durou o regime escravo, seja ainda, contemporaneamente, na parte das “formas análogas à escravidão”, que são ainda abundantes no vasto heartland brasileiro, e até em algumas grandes cidades (e até capitais dos estados). Os três volumes de Laurentino Gomes sobre a escravidão no mundo e no Brasil vão, provavelmente, figurar como clássicos em nossa literatura, e, quando traduzidos, na bibliografia internacional sobre a questão.

Os fundamentos doutrinais e jurídicos desse primeiro Estado – e dos que se seguiram, nos últimos dois séculos – são analisados pela ótica do estudo do Direito, nas duas faculdades criadas ainda no Primeiro Reinado, reformadas no final do Império e na República. Machado de Assis e Joaquim Nabuco comparecem nessa vertente, provavelmente a mais simbólica de uma nação bacharelesca, que continua dando um prestígio talvez exagerado aos bacharéis de Direito. Estes integram a quase totalidade da diplomacia profissional, aberta aos mais diversos talentos – como queria o verdadeiro “pai” da política externa brasileira, Paulino Soares de Souza, o Visconde do Uruguai –, mas essencialmente “lotada” de bacharéis em Direito (nos últimos tempos de egressos dos cursos de relações internacionais). Talvez não por outra razão, o peso do Estado é mais sentido sobre aqueles que cometem crimes contra o Estado, do que aqueles que “florescem” na sociedade civil.

Os dois últimos capítulos, sobre os primeiros pensadores do Estado e da nação – Cairu e Silvestre Pinheiro Ferreira – e sobre aqueles que pioneiramente pensaram a organização do Estado e a forma de governar um continente ainda disperso em regiões pouco conectadas entre si – Bonifácio e Caneca, justamente, talvez devessem ser lidos em primeiro lugar, pois nesses quatro intelectuais estão as ideias fundamentais que percorreram e sustentaram – nem sempre com sucesso, como no caso do frei pernambucano – o processo de formação do Estado brasileiro. Todos eles eram “iluministas” no sentido largo do conceito, mas foram em grande medida contidos em seus projetos pelo arcaísmo da Contrarreforma ibérica, que continuou imprimindo sua marca – como na Inquisição, por exemplo – até meados do século XIX, senão até tempos mais recentes. 

Centenários, ou datas redondas, oferecem uma oportunidade de refletir sobre o que fizemos em nosso passado, sobre o estado presente das coisas e sobre o que nos resta fazer para completar os projetos dos grandes estadistas da nação. Em 1922, começamos com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo, um empreendimento vagamente afiliado ao futurismo que então agitava os círculos intelectuais europeus, e continuamos com as comemorações oficiais da Exposição Internacional do Rio de Janeiro, uma iniciativa que procurava emular as exposições universais que estavam voga desde a Grande Exposição do Palácio de Cristal, em Londres, em 1851. Dom Pedro II compareceu em 1876 à Exposição da Filadélfia, que também comemorava o primeiro centenário da nação americana, quando foi apresentado ao telefone e o trouxe precocemente ao Brasil, pelo menos para uso dos poucos “mandarins” do Estado. Do lado menos oficial, tivemos a fundação do Partido Comunista do Brasil (seção brasileira da III Internacional), nosso mais conhecido Partidão, ou PCB, assim como as primeiras revoltas tenentistas, que desembocariam na Revolução “Liberal” de 1930.

No Sesquicentenário da Independência, em 1972, tivemos a republicação dos Arquivos Diplomáticos da Independência, organizados pelo Itamaraty e publicados entre 1922 e 1926, assim como um bizarro “passeio” dos ossos do primeiro imperador por várias “províncias” brasileiras, como uma espécie de resgate histórico da nossa “lusitanidade”. Ela ainda permanece, como aventado por um projetado novo “passeio” do coração do mesmo imperador, o que certamente será incluído em mais um exemplo de nossas bizarrices. Um dos grandes intelectuais brasileiros, justamente especialista em identificar algumas dessas excentricidades – como representado pela figura de Macunaíma –, traçou um diagnóstico algo melancólico daquele impulso frustrado para a modernidade que ele e seus demais colegas da intelectualidade tinham procurado imprimir com a iniciativa da Semana de Arte Moderna em 1922. Dois anos depois, constatando que o Brasil ainda não tinha deslanchado para o futuro, Mário de Andrade confessou num poema-revelação, bizarramente chamado “O poeta come amendoim”, ele escreveu, de forma talvez decepcionante, o seguinte: “Progredir, progredimos um tiquinho, que o progresso também é uma fatalidade”. 

O livro de Arnaldo Godoy, pela riqueza de informações fundamentadas em fontes primárias, pela densidade de seus argumentos e interpretações, nos demonstra que o Brasil carrega, em seu projeto de nação, um tanto de ideias generosas – as dos intelectuais aqui examinados – e um tanto de fatalismo, que é o peso do Estado central. Este já deixou há muto de ser aquele agente do crescimento e dos grandes empreendimentos nacionais para se converter num freio, talvez até um obstáculo, a um processo de crescimento sustentado, e muito menos um promotor do desenvolvimento social e cultural. Da “altura” destes 200 anos, e baseando-nos nas reflexões de Arnaldo Godoy, podemos traçar um modesto balanço, e talvez até um diagnóstico mais preciso, de nossas insuficiências acumuladas até aqui, como reveladas nas instituições e experiências formuladas e implementadas quando do “primeiro Estado brasileiro”, para concebermos novos projetos para o decorrer do terceiro centenário. 

Arnaldo Godoy está perfeitamente credenciado para, tendo já aplicado o seu bisturi analítico ao “primeiro Estado”, orientar-nos na superação dos entraves burocráticos, jurídicos e políticos, do atual Leviatã inzoneiro, o Estado que, aparentemente moderno, preservou os traços essenciais do patrimonialismo que, segundo Raymundo Faoro, deita raízes na era medieval portuguesa. Um novo exercício de análise do “segundo” Estado – seria o das Regências, o do Regresso, o do Segundo Reinado? – e dos diversos Estados sucessivos – da República Velha, da “curta” era Vargas (que vai dos anos 1930 até praticamente a ditadura militar), da República dos bacharéis de 1946, das duas décadas de tecnocracia autoritária –, até chegarmos ao estado melancólico da “Nova República”, ameaçada em seus fundamentos doutrinais e até burocráticos pela divisão política da nação por dois projetos populistas que nos remetem ao lugar comum dos populismos latino-americanos, considerando todos esses “Estados” incompletos que tivemos nos últimos dois séculos, uma nova arrancada explicativa e interpretativa deste grande intelectual que é Arnaldo Godoy poderia nos ajudar a prever alguns dos desenvolvimentos possíveis de um futuro Estado brasileiro do terceiro centenário. 

Do “nascimento do Estado brasileiro” aos primeiros “projetos para o Brasil”, Arnaldo Godoy conduziu, com mão firme e uma bibliografia adequada, uma compreensão refinada de nossas origens enquanto novo Estado independente no hemisfério americano do início do século XIX. Resta agora apontar os caminhos para o Estado democrático avançado nas próximas etapas de nosso desenvolvimento histórico.

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4163: 29 maio 2022, 6 p.


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