Lima Barreto torceria pela Argentina?
Parte da torcida argentina chama nossos jogadores de macaquitos, ofensa racista que remonta a 1920 – e fator apontado para sempre agourar los hermanos. Mas o escritor negro desconstrói o insulto – e ajuda a destravar o grito: vai Argentina!
Assim que ficou definido que as seleções da Argentina e França disputarão a final da Copa do Mundo 2022, no próximo domingo, teve início, principalmente nas redes sociais, um acalorado debate sobre para qual país os brasileiros devem torcer. Arquirrivais no futebol torcedores brasileiros e argentinos não economizam nas ofensas e insultos mútuos, por isso muitos entre nós vão torcer pela França. Todavia há os que argumentam que torcer pelo país vizinho, nosso parceiro comercial e aliado político, é um gesto de reconhecimento da necessária integração sul-americana, e também de pertencimento à América Latina.
Do outro lado, além da dor de cotovelo de ver a Argentina novamente em uma final de Copa do Mundo, conquista que o Brasil não vive há 20 anos, uma das alegações para que não torçamos pela vitória do time argentino é de que eles são racistas e nos chamam de macaquitos. Sem minorar o comportamento de parte da torcida argentina, temos que nos lembrar que o racismo no futebol, infelizmente, ainda é uma constante, tanto no mundo, como no Brasil e que “incidentes de discriminação racial ainda são comuns nos estádios, assim como restrita presença de negros fora das quatro linhas, nos cargos de treinadores ou nas direções dos principais clubes do Brasil.”[1]
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O insulto, do qual os brasileiros se ressentem, e com razão, teve origem a partir de uma charge, que representava os nossos jogadores como macacos, publicada em 1920, pelo jornal sensacionalista argentino La crítica, quando o time brasileiro voltando do 4º Campeonato sul-americano de futebol, realizado no Chile, passou pela Argentina para jogar um amistoso com a sua seleção. Os ecos do incidente se fizeram sentir em 1921, pois o torneio que daria origem à Copa América seria realizado no país vizinho; o jornal carioca Correio da Manhã publicou, em setembro daquele ano, que a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) estaria discutindo não enviar jogadores negros ao certame. O impasse foi levado ao então presidente da República, Epitácio Pessoa, que decidiu pela exclusão dos atletas negros, o que fez com que craques como Arthur Friendenreich que foi o autor do gol que deu o primeiro título internacional à seleção brasileira, em 1919, ao derrotar o Uruguai no 3º Campeonato sul-americano de futebol, ficasse de fora.
O escritor Lima Barreto, arguto observador do cotidiano político e social do Brasil do seu tempo, e que muito combateu o racismo, do qual também era alvo, comentou de maneira ácida e irônica o veto de Epitácio Pessoa na crônica Bendito footbal, publicada na Revista Careta em 01/10/1921:
“Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não deveria figurar nas exportáveis turmas de jogadores; lá fora, acrescentou, não se precisava saber que tínhamos no Brasil semelhante esterco humano […]. A providência, conquanto perspicazmente eugênica e científica, traz no seu bojo ofensa a uma fração muito importante, quase a metade, da população do Brasil […]. P.S – A nossa vingança é que os argentinos não distinguem, em nós, as cores; todos nós, para eles, somos macaquitos.”
Entretanto outra foi sua atitude ao tomar conhecimento, em 1920, da charge publicada no jornal La crítica, utilizando-se do recurso do humor escreveu a crônica Macaquitos, que pode ser lida como uma refinada provocação aos discursos de superioridade racial vigentes à época, pois ao considerar o macaco, devido à sua inteligência e esperteza, superior aos demais animais, descontruiu a intenção desumanizadora do periódico argentino, combateu a discriminação racial, imprimiu leveza a um tema denso e de quebra, ainda hoje, nos faz rir. Que seja esse o espírito a presidir as torcidas no domingo. E da parte da autora deste breve comentário: #VamosArgentina!
Macaquitos, por Lima Barreto
Um jornal ou semanário de Buenos Aires, quando uma équipe brasileira de football, de volta do Chile, onde fora disputar um campeonato internacional, por lá passou, pintou-a como macacos. A cousa passou desapercebida, devido ao atordoamento das festas do Rei Alberto; mas, se assim não fosse, estou certo de que haveria irritação em todos os ânimos.
Precisamos nos convencer de que não há nenhum insulto em chamar-nos de macacos. O macaco, segundo os zoologistas, é um dos mais adiantados exemplares da série animal; e há mesmo competências que o fazem, senão pai, pelo menos primo do homem. Tão digno “totem” não nos pode causar vergonha. A França, isto é, os franceses são tratados de galos e eles não se zangam com isto; ao contrário: o galo gaulês, o chantecler, é motivo de orgulho para eles.
Entretanto, quão longe está o galo, na escala zoológica, do macaco! Nem mamífero é! Quase todas as nações, segundo lendas e tradições, têm parentesco ou se emblemam com animais. Os russos nunca se zangaram por chamá-los de ursos brancos; e o urso não é um animal tão inteligente e ladino como o macaco. Vários países, como a Prússia e a Áustria, põem nas suas bandeiras águias; entretanto, a águia, desprezando a acepção pejorativa que tomou entre nós, não é lá animal muito simpático.
A Inglaterra tem como insígnias animais o leopardo e o unicórnio. Digam-me agora os senhores: o leopardo é um animal muito digno? A Bélgica tem leões ou leão nas suas armas; entretanto, o leão é um animal sem préstimo e carniceiro. O macaco – é verdade – não tem préstimo; mas é frugívoro, inteligente e parente próximo do homem. Não vejo motivos para zanga, nessa história dos argentinos chamar-nos de macacos, tanto mais que, nas nossas histórias populares, nós demonstramos muita simpatia por esse endiabrado animal.
Crônica publicada na revista Careta, em 23/10/1920. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/11-textos-dos-autores/789-lima-barreto-macaquitos. Acesso em: 15 dez.2022.
[1] CARVALHO, Marcelo Medeiros. O negro no futebol Brasileiro: inserção e racismo. Disponível em: http://movimentoar.com.br/o-negro-no-futebol-brasileiro-insercao-e-racismo/. Acesso em: 15.dez.2022.
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