quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Por uma frente ampla diplomática - Editorial O Estado de S. Paulo

Por uma frente ampla diplomática

Isolamento promovido pela militância ideológica bolsonarista denunciada pelo novo chanceler só será revertido se o governo lulopetista renunciar à sua própria militância ideológica

Editorial O Estado de S. Paulo, 5/01/2023 


Não se pode negar que a exposição dos desafios da política externa brasileira apresentada pelo novo chanceler, Mauro Vieira em seu discurso de posse, alicerçada em uma longa experiência como funcionário de carreira do Itamaraty, foi lúcida e ampla. Mas entre as palavras e os atos, há que se desfazer um complexo de incertezas, cujo maior epicentro é justamente o Palácio do Planalto.

Ao avaliar o legado do último governo, Vieira criticou o alijamento do cenário internacional “por força de uma visão ideológica militante”. De fato, Jair Bolsonaro submeteu a política externa aos seus instintos confrontacionais e sectários. Como já dissemos neste espaço, no editorial Entre párias e megalomaníacos (9/7/22 [transcrito abaixo]), o legado do governo anterior nas relações internacionais é fiel ao imperativo, enunciado por Ernesto Araújo, dublê de chanceler e ideólogo do bolsonarismo, de fazer do Brasil um orgulhoso pária. Para isso, o País desprezou direitos humanos, aderiu ao negacionismo científico em plena pandemia e também nas questões ambientais, brigou com valiosos parceiros comerciais por mera birra ideológica e alinhou-se a extremistas de direita sem qualquer contrapartida.

Essa dilapidação do soft power (poder brando) do Brasil, em especial de seu protagonismo nas instâncias multilaterais, não poderia ter ocorrido em pior hora. Como destacou Vieira, o Brasil navega em “um dos mais conturbados momentos no cenário internacional”. As tensões entre grandes potências, a guerra na Europa, as sequelas da pandemia, tudo isso cria um quadro de incertezas nas cadeias de suprimento, no abastecimento de energia e na segurança alimentar.

Essa “crise de governança global sem precedentes” é agravada pela paralisação de mecanismos como a Organização Mundial do Comércio ou o Conselho de Segurança da ONU. O quadro é ainda mais tenebroso, quando se pensa na indispensabilidade da cooperação internacional ante os grandes desafios do século 21, como a revolução digital ou as mudanças climáticas.

“Existe uma clara demanda do mundo pelo Brasil”, apontou Vieira. De fato, sem uma atuação construtiva do Brasil, não há como equilibrar o tripé que alicerça uma economia global sustentável: a segurança ambiental, energética e alimentar.

A agenda delineada por Vieira é ambiciosa. O chanceler aludiu a desafios ambientais, direitos humanos, reforma do Conselho de Segurança da ONU, acordos para facilitação do comércio e neutralização de barreiras protecionistas, revalorização do Mercosul, equilíbrio das relações com parceiros tradicionais como EUA e União Europeia e ampliação das relações com o bloco Ásia-Pacífico.

A fórmula de Vieira para nortear essa agenda, a “ideologia da integração”, pode ser considerada o equivalente na política externa à “frente ampla democrática” propagada na campanha do presidente Lula da Silva para a política doméstica. E aqui começam as incertezas. Na formação do governo, a “frente ampla” se mostrou mais reduzida do que esperavam muito de seus apoiadores, e está, simbolicamente, restrita às figuras do vice-presidente Geraldo Alckmin; da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva; e da ministra do Planejamento, Simone Tebet.

Na política externa, Lula tem capital político e prestígio com a mídia e muitos governos estrangeiros. Mas nem o histórico do PT no poder nem as palavras do presidente até o momento permitem supor que a “ideologia da integração” de Vieira, em tese muito “ativa e altiva”, não será subvertida, na prática, pela “visão ideológica militante” lulopetista, que, a seu modo, também condicionou a política externa ao sectarismo e, a seu modo – seja priorizando o viés “sul-sul”, seja renegando acordos com países desenvolvidos (cujo maior emblema é o descaso com o ingresso do Brasil na OCDE, o “clube dos ricos”) – também desperdiçou oportunidades para o País.

“O Brasil está de volta”, repete sem cessar Lula, ecoado por Vieira. Mas, para que isso seja realidade e não mera idealização, é preciso que o velho ranço ideológico fique petista fique no passado.

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Entre párias e megalomaníacos

Para contrastar o ‘orgulho’ bolsonarista de ‘ser pária’, o PT ameaça retomar a política externa partidária e ideológica que fez a alegria de tiranos esquerdistas nos governos lulopetistas

Editorial O Estado de S. Paulo, 9/07/2022 

Tradicionalmente a política externa é tema sem relevo nas eleições. Mas, seja pelas transformações estruturais do mundo, seja pelas condições conjunturais do Brasil, nunca foi tão importante subverter essa tradição.

Aos desafios do século 20 – como as ameaças nucleares ou o terrorismo – o século 21 acrescentou novos, como os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável – mudanças climáticas, ajustes na saúde e seguridade com as transformações demográficas, as crises migratórias –, além da interdependência econômica e cultural promovida pelas tecnologias digitais. A pandemia mostrou a importância da cooperação internacional ante esses desafios. Mas guerras comerciais – especialmente entre EUA e China – ameaçam fragmentar o mercado global, e conflitos como o da Ucrânia ameaçam o retorno da guerra fria.

Tradicionalmente pacífico, o Brasil é a segunda maior democracia do Ocidente e, em que pesem as mazelas de seu passado escravagista, é um exemplo de pluralismo multiétnico. A riqueza de seus biomas é decisiva para solucionar dois desafios planetários: a sustentabilidade ambiental e a segurança alimentar.

Por suas dimensões continentais e populacionais, o País é uma potência regional e pode se tornar uma potência global. O fato de estar alijado de instrumentos tradicionais de poder – como armas e dinheiro – torna a diplomacia mais, não menos importante. Transformando essas carências em ativos, o País construiu, com base nos princípios constitucionais de adesão aos direitos humanos e às soluções negociadas e no profissionalismo do Itamaraty, uma consistente tradição de “pluralismo de contatos”.

A dilapidação desse soft power brasileiro será um dos legados mais perniciosos do governo de Jair Bolsonaro. Traduzidos para a política externa, os instintos personalistas, sectários e confrontacionais que pautaram sua carreira militar e parlamentar fomentaram não a propalada “independência” do País, mas seu isolamento. O desprezo pelos direitos humanos; o negacionismo na pandemia; o antiambientalismo; a subserviência ao desvairado presidente americano Donald Trump e as consequentes hostilidades ao sucessor de Trump, Joe Biden; a adulação a líderes autoritários; os atritos gratuitos com líderes como Angela Merkel ou Emmanuel Macron ou com parceiros comerciais como China e Argentina: tudo isso é mero corolário de uma doutrina exprimida de forma lapidar por seu chanceler predileto: o “orgulho de ser pária”.

O petista Lula da Silva, por sua vez, promete fazer tábula rasa dessa doutrina. Mas não se corrige um erro com outro: 13 anos no poder mostraram o que é a política externa “ativa e altiva” que o lulopetismo pretende ressuscitar. Não foi ativa, mas ativista; não foi altiva, mas megalomaníaca.

O voluntarismo ideológico traduzido no emblema “Sul-Sul” desperdiçou oportunidades comerciais com as grandes potências ocidentais, privilegiando negócios periféricos com parceiros irrelevantes, cujo traço comum era seu feroz antiamericanismo. Esse terceiro-mundismo militante da diplomacia lulopetista atravancou a inserção internacional do País.

Mesmo políticas mais ou menos social-democratas adotadas internamente foram renegadas no plano internacional pelo alinhamento doutrinário com tiranias socialistas, que prejudicou a integração do Mercosul e produziu episódios lamentáveis, como a conivência com a invasão de uma instalação da Petrobras na Bolívia, em 2006, ordenada pelo então presidente Evo Morales, amigão de Lula.

Paradoxalmente, do ponto de vista de política externa, a pauta mais importante que os partidos políticos poderiam oferecer é justamente a despartidarização da diplomacia. Por antagônicos que sejam, o lulopetismo e o bolsonarismo compartilham do mesmo apetite por submetê-la aos seus interesses ideológicos. Em um aspecto o resultado foi idêntico: a degradação da isonomia e do profissionalismo da Casa de Rio Branco, a começar pela escassez orçamentária precipitada pela irresponsabilidade fiscal de ambos. Nem um nem outro foram capazes de promover – ao contrário, obstinaram-se em perverter – os princípios da diplomacia nacional definidos pelo Conselho do Império e corporificados na Constituição de 88: “Inteligente sem vaidade, franca sem indiscrição, enérgica sem arrogância”.


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