Fórum de Davos: o piquenique invernal do capitalismo bem-comportado
Paulo Roberto de Almeida
Diplomata, professor
(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com; pralmeida@me.com)
Artigo sobre o Fórum Econômico Mundial de 2023.
Publicado em versão revista e editada na revista Crusoé: “O capitalismo bem-comportado de Davos”, revista Crusoé (13/01/2023; https://crusoe.uol.com.br/secao/reportagem/o-capitalismo-bem-comportado-de-davos/).
Por mais de meio século, o suíço Klaus Schwab tem liderado esses convescotes anuais na atraente estação de esqui de Davos, reunindo centenas das maiores empresas mundiais e líderes políticos para debater temas de grande atualidade econômica e política e até alguns problemas de urgente necessidade de resolução cooperativa, como conflitos militares, crises econômicas ou ameaças ambientais e sanitárias de dimensões mundiais. Em 2023, o tema escolhido, de forma talvez deliberadamente ambígua, foi “Cooperação em um mundo fragmentado”, o que parece ser, na tradicional expressão em inglês, uma clara demonstração de understatement, ou seja, uma minimização da situação atual da política mundial.
De fato, a pandemia da Covid-19 em 2020 e 2021 — que levou o Fórum de Davos a se reunir online —, assim como a guerra de agressão da Rússia contra a vizinha Ucrânia — ex-república federada do finado império soviético- não causaram (ainda?) uma grave alteração da ordem global, a despeito de sobressaltos inevitáveis e de alguns impactos mais graves (como crises de abastecimento energético e alimentar em certas regiões do planeta, na Europa ocidental e na África em particular). A ordem econômica quase global de Bretton Woods continua funcionando, assim com a ordem política quase universal da ONU continua não funcionando em seu modo habitual, isto é, com muita retórica, mas poucos resultados práticos.
Na verdade, falar de “cooperação num mundo fragmentado” parece ser, no nosso próprio linguajar, “chover no molhado”, pois que se existe fragmentação no mundo atual este é claramente o momento, e se inexiste cooperação esta é exatamente a conjuntura sob a qual vivemos, duas situações para as quais o encontro de Davos será ineficaz para qualquer tipo de encaminhamento prático.
Nem sempre foi assim no passado, pois alguns convites a líderes de países em conflito — como no caso de Israel e palestinos, por exemplo — ou, na vertente photo opportunity, a celebridades hollywoodianas permitiram avançar alguns centímetros na direção da minimização de danos, nos temas ambiental, de refugiados de guerras civis ou interestatais e até crises sanitárias graves.
Não parece ser assim nesta edição de 2023, pois inexiste qualquer possibilidade de cooperação no caso do mais grave conflito militar no continente europeu desde a Segunda Guerra Mundial, a invasão e a destruição sistemática da Ucrânia pelo seu poderoso e criminoso vizinho, o que gerou uma das emigrações em massa, num curto espaço de tempo, jamais conhecidas em toda a história mundial. A tragédia ucraniana (e seus impactos externos) é totalmente devida à paranoia e à prepotência arrogante de um dirigente russo que não possui qualquer disposição para o diálogo em termos aceitáveis do ponto de vista do Direito Internacional ou simplesmente no contexto da Carta da ONU, cujas obrigações ele violou deliberadamente diversas vezes, e em relação aos quais já se tornou suscetível de “indiciamento” por crimes de guerra, contra a humanidade e contra a paz, as mesmas acusações que levaram líderes civis e militares nazistas ao Tribunal de Nuremberg em 1946.
Tal situação está muito acima da capacidade do Fórum de Davos de tratar de qualquer possibilidade de minimização de danos, assim como é o caso da própria ONU (congelada em face do inaceitável exercício do direito de veto por qualquer um dos cinco membros permanentes do CSNU, quando um deles é o próprio violador da sua Carta).
O Fórum de 2023 consistirá, portanto, em mais um exemplo de keep talking, continue falando a respeito, mas, sobretudo, perca a esperança de avançar em qualquer solução cooperativa, com fragmentação ou sem. Historicamente, nenhum dos grandes problemas da humanidade — desde o Congresso de Viena de 1815, passando pelas negociações de paz de Paris, de 1919, que levaram à criação da Liga das Nações, nem as conferências diplomáticas entre as grandes potências na Segunda Grande Guerra, que resultaram na fundação da ONU — foram resolvidas pela via multilateral e pacifica, e sim por um próprio arranjo consensual entre elas ou no completo esgotamento de outras possibilidades de resolução, depois de imensos danos acumulados.
Foi assim nos casos da primeira guerra da Crimeia (1853-55), do tratado impositivo de Versalhes (1919) e da própria conformação iníqua e discriminatória do órgão decisor, em última instância, do Conselho de Segurança na conferência de San Francisco que criou a ONU em 1945.
Naquela ocasião, em nome do fundamento doutrinal central do multilateralismo contemporâneo, que é o princípio da igualdade soberana dos Estados — defendido arduamente por Rui Barbosa, na segunda conferência mundial da paz da Haia, em 1907 —, a delegação brasileira em San Francisco (ainda em pleno Estado Novo varguista) opôs-se formalmente ao direito de veto, justamente por ser iníquo e discriminatório, assim como a diplomacia brasileira do pós-guerra continuou opondo-se durante cerca de três décadas ao Tratado de Não Proliferação Nuclear pelas mesmas razões.
Tais questões, pertencentes ao exercício unilateral de uma espécie de “soberania imperial”, que está restrito ao domínio exclusivo da Realpolitik, exercida de forma arrogante pelas grandes potências, está muito além da capacidade resolutiva de um Fórum de “keep talking” como o de Davos, assim como da própria ONU. Os capitalistas multinacionais, assim como os líderes políticos necessitados de alguma photo opportunity, continuarão a frequentar o convescote criado por Klaus Schwab, mas não conseguirão apor sequer um band-aid à fragmentação atual e persistente do mundo.
Desde os anos 1970, quando foi criado, o Fórum de Davos não teve nenhuma influência sobre a dinâmica da Guerra Fria geopolítica dos anos 1947-1990: esta só veio a termo pela implosão autoinduzida do socialismo realmente existente, não por qualquer vitória do capitalismo triunfante sobre seus inimigos autocráticos e estatistas. Também parece improvável que ele consiga influenciar a dinâmica da atual Guerra Fria Econômica entre os Estados Unidos e a China, e a da presente confrontação militar entre a Otan (indiretamente, pela via da Ucrânia) e a Rússia semi-imperial do neoczar Putin.
Davos continuará a ser um jamboree anual de capitalistas bem-sucedidos, condescendendo em ouvir alguns belos discursos entre uma e outra descida de esqui nos Alpes suíços. Todos eles merecem um pouco de divertimento em meio ao extenuante trabalho de garantir lucros e dividendos para proprietários e acionistas dessas grandes empresas politicamente corretas. Superricos também são humanos…
E o Brasil nisso tudo? Em 2003, Lula (recém-empossado) compareceu, numa imediata sequência, ao Fórum Social Mundial de Porto Alegre, aqueles dos antiglobalistas (hoje praticamente desaparecido, por sua própria contradição nos termos), e ao Fórum Econômico Mundial de Davos, globalista por excelência, falando em cada um aquilo que correspondia exatamente às expectativas das respectivas plateias, o que sempre foi o seu estilo populista. Em 2023, salvo impedimento maior, ele deveria arriscar novamente seu grande prestígio mundial, para tentar atrair alguns bilhões de investimentos externos tão necessitados pela combalida economia brasileira. Como o antigo Fórum “Surreal” Mundial já não apresenta qualquer atrativo midiático, Lula pode exercer o melhor do seu talento na tentativa de “desfragmentar” o mundo e apelar para o aumento da cooperação ao desenvolvimento dos países mais pobres. Apelos desse tipo sempre confortam o ânimo e retiram um pouco do “remorso social” desses capitalistas multinacionais que torram algumas dezenas de milhares de dólares nos poucos dias que passam em Davos. Superricos também têm coração, e um tino especial para novas oportunidades de ganhos. Só não se sabe se o Brasil de Lula III oferece, realmente, oportunidades tão aliciantes quanto aquelas dos anos 2000, quando a economia mundial parecia flutuar em céu de brigadeiro e quando a China e os Estados Unidos ainda pareciam entreter a complementaridade perfeita de uma Chimérica, como sugerida pelo historiador Niall Ferguson.
Os tempos são outros…
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4292: 22 dezembro 2022, 4 p.
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