Antigamente, os companheiros tinham muita raiva da burguesia. Agora acho que não mais; já se juntaram com ela. Mas quando eles atacavam a burguesia, e os burgueses, eu tive a ideia de escrever alguma coisa em defesa da burguesia, e da aristocracia também.
Eis o que escrevi em 2010, no auge da dominação de Lula 2:
2127. “Elogio da burguesia (com uma deixa para a aristocracia também)”, em vôo Lisboa-Roma, 26/03/2010; Firenze, 27.10.2010; Perugia, 28-29.10.2010; 8 p. Considerações sobre as elites culturais e a cultura popularesca. Via Política(10.04.2010). Reproduzido no site Dom Total (22.04.2010). Revisto e ampliado em Xian e Shanghai, 21-25.04.2010, 12 p. Publicado na Espaço Acadêmico (ano 10, n. 108, maio 2010, p. 51-60; link: http://periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10038; pdf: http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/10038/5591). Republicado na Espaço da Sophia (ano 4, n. 38, junho-julho 2010; ISSN: 1981-318X). Relação de Publicados n. 960.
Transcrevo aqui:
Elogio da burguesia (com uma deixa para a aristocracia também)
Paulo Roberto de Almeida
Resumo: A burguesia e a aristocracia não têm quem as defendam, na academia ou em outras esferas da vida cultural. Elas são objeto de todas as acusações e de todos os pecados, responsáveis por tudo de errado, iníquo e desigual que existe nas sociedades capitalistas contemporâneas (como se ainda houvesse sociedades socialistas dignas desse nome). Essas duas classes representantes das elites sociais parecem possuir todos os vícios e nenhuma virtude, sendo atribuídos a elas todos os supostos males do sistema capitalista. O ensaio faz a defesa das duas classes, em especial da burguesia, como classes progressistas e promotoras de padrões culturais mais elevados no cenário social. As sociedades "burguesas" podem não ser um primor de igualdade e de "justiça social", mas são, inegavelmente, sociedades de liberdade, de prosperidade e de maior justiça social do que as sociedades supostamente determinadas a superá-las e promover esses valores em patamares mais altos de realização. De fato, as experiências socialistas no mundo redundaram em violência, perdas sociais, patrimoniais e culturais, ausência completa de liberdades elementares, quando não diminuição dos padrões de vida e até da igualdade efetiva dos cidadãos.
Palavras-chave: Burguesia, aristocracia, padrões culturais
1. Sobre elogios e difamações de classe
Existem vários “elogios” na literatura universal, sendo os mais conhecidos o clássico de Erasmo sobre a loucura (Encomium moriae), um outro sobre a preguiça (de um discípulo de Marx, Paul Lafargue: Le Droit à la Paresse) e até mesmo um sobre a exploração (sim, este eu conheço bem, pois foi eu mesmo quem fiz; figura em meu livro Velhos e Novos Manifestos, de 1998). Estou também preparando um elogio da especulação (mas ainda não consegui terminar), posto que se trata de uma atividade essencial à boa saúde do sistema econômico (não apenas financeiro) e do próprio avanço da produtividade: sem ela, haveria muito pouco gosto pelo risco e raros empresários (venture capitalists) colocariam seu dinheiro em inovações.
Não me lembro, porém, de ter lido, alguma vez, em qualquer lugar, um elogio à burguesia e, menos ainda, à aristocracia. Não espero, por certo, encontrar nos meios acadêmicos alguma referência positiva a essas duas personagens coletivas, que são historicamente importantes; não existe a menor chance disso ocorrer nesse ambiente, pois ambas as classes são erradamente identificadas a elites reacionárias e, em consequência, execradas pelo pensamento esquerdista (supostamente marxista) que grassa anacronicamente em nossas faculdades de Humanidades (anacronicamente aqui, stricto sensu, posto que os acadêmicos em questão se enganam de século). A possibilidade de que uma delas (talvez a primeira, certamente jamais a segunda, em todo caso) possa ser vista ou considerada como “útil”, por algum papel positivo na história da humanidade, é próxima de zero, para não dizer abaixo disso.
E, no entanto, não preciso lembrar que um jovem discípulo de Hegel efetuou rasgados elogios à burguesia em um panfleto juvenil a quatro mãos, com seu amigo Engels: o Manifesto do Partido Comunista de 1848 (cuja versão adaptada para nossos tempos de globalização eu também coloquei no meu livro supracitado). Claro, o ódio à aristocracia era visível em muitas páginas, mas a burguesia era glorificada por vários feitos revolucionários do mais alto significado histórico, entre eles o de ter, supostamente, derrotado a primeira no curso de uma luta titânica, que levou inclusive à substituição do velho modo de produção “feudal” (vocês sabem: aquela coisa dos avanços materiais e o desenvolvimento orgânico das forças produtivas conduzindo inelutavelmente a mudanças nas relações de produção e, daí, a uma revolução completa na superestrutura política da sociedade e todo o blá-blá-blá conhecido).
É verdade que depois disso, notadamente no Capital, Marx deixa de premiar a burguesia com os fartos elogios encontrados nas suas obras de juventude; ao contrário: ela passa a ser assacada com as piores vilanias e responsabilizada pelos mais graves crimes supostamente cometidos contra o bem-estar da humanidade, sendo até mesmo jogada no fosso da depravação universal, junto com a aristocracia e todas as demais classes dominantes, ou quaisquer outras que por acaso não se aliassem – se submetessem, seria o termo mais correto – à nova classe emergente, o glorioso proletariado industrial, na sua marcha ascensional para a conquista do poder. Apesar de também ter sido, na juventude, um marxista radical, e até mesmo um leninista, sempre achei que Marx cometeu uma tremenda injustiça em relação à burguesia revolucionária, uma classe ainda ascendente em seu tempo. Nem menciono seus ataques à equivocadamente desprezada classe aristocrática, que, antes da burguesia, tinha preservado as luzes da civilização em face da barbárie inculta que se impunha à Europa, no rastro das invasões de povos nômades (visigodos, ostrogodos e outros godos). Afinal de contas, foi a aristocracia, constituída na decadência do Império Romano do Ocidente, devidamente romanizada, cristianizada e um pouquinho alfabetizada, que conseguiu preservar alguns elementos instruídos, saídos diretamente da era clássica, num mundo feudal marcado pela anomia social e pela fragmentação política (a despeito de defasado metodologicamente, recomendo aos interessados na história a leitura do clássico de Edward Gibbon).
Também sempre achei que Marx, tão enfático ao condenar o despotismo asiático, falhou terrivelmente ao diminuir, de maneira genérica, os méritos humanistas de aristocratas e burgueses, os primeiros resistindo bravamente em face da ignorância tirânica dos velhos bárbaros, os segundos defendendo as liberdades democráticas nas cidades livres e desmantelando os regimes exclusivos das velhas corporações feudais. Quanto aos revolucionários presumidos dos últimos cem anos, não é preciso registrar os resultados regressistas dos assaltos obscurantistas dos novos bárbaros, as hostes de revolucionários profissionais de extração fascista ou bolchevique, que desmantelaram o que havia restado de ilustrado nas sociedades pré-fascistas ou pré-comunistas da velha Europa. Sim, porque o que assistimos na Europa, desde o início do século 20, não foi exatamente um “assalto ao céu” por parte de uma nova classe educada para promover o enriquecimento cultural da sociedade, e sim um rebaixamento cultural e intelectual efetivamente ocorrido durante a vigência dos totalitarismos nazi-fascistas e leninistas, responsáveis, ademais, por várias dezenas de milhões de mortos no auge de seus respectivos regimes (quem duvidar pode ler o livro de Anne Applebaum, sobre o Gulag, ou a descrição realista das horas mais sombrias da Europa, em Tony Judt).
Por isso mesmo, não é possível aceitar acadêmicos que reincidem no velho exercício esquizofrênico de condenar não se sabe bem qual “barbárie capitalista”, ao mesmo tempo em que defendem, de forma vergonhosa, alguns dos piores regimes remanescentes do stalinismo totalitário. Creio que o verbo “aceitar” não seria, aliás, aceitável num contexto acadêmico: a expressão objetivamente correta é que não é mais admissível, atualmente, que qualquer pessoa minimamente informada e supostamente alfabetizada – ou seja, habilitada a ler a imprensa – possa defender um sistema que condena pessoas à fome, ou à greve de fome, por carências generalizadas no sistema produtivo e por falta total das liberdades mais elementares. Acadêmicos que assim procedem não merecem o título, pois só podem ser energúmenos completos e acabados, e sequer podem ser considerados como medianamente equilibrados; deixemo-los apodrecer na lata de lixo das faculdades de Humanidades (que, a despeito de suas muitas limitações, não merecem essa ofensa adicional, por certo).
2. Uma bibliografia rarefeita, jamais positiva
Pois bem, alguém me corrija se estou errado, mas acredito que não existem elogios diretos e declarados à burguesia e menos ainda à aristocracia, fora de livros de história que tentam recriar o velho mundo burguês, em grande medida identificado com a era vitoriana, como, por exemplo, na série de cinco livros de Peter Gay, enfeixados sob o título geral de “experiência burguesa” (1: The Education of the Senses; 2: The Tender Passion; 3: The Cultivation of Hatred; 4: The Naked Heart; 5: Pleasure Wars; ao que eu saiba, nenhum deles traduzido e publicado no Brasil). Existe também o livro do economista (aliás, da economista, posto que ele mudou de sexo) Deirdre McCloskey, The Bourgeois Virtues, mas não se trata exatamente de um elogio à burguesia enquanto classe “universal” – no sentido hegeliano da palavra – mas de uma discussão essencialmente de história econômica e de história intelectual da formação da moderna sociedade capitalista na passagem do mercantilismo para o sistema fabril. De certa forma não deixa de ser um elogio à burguesia, mas vista apenas pelo seu lado empreendedor e inovador, e não exatamente como portadora de valores humanistas que aqui se procura destacar. Trata-se, basicamente, de uma defesa da economia de mercado, tal como encarnada na burguesia enquanto agente econômico, não de um elogio filosófico à burguesia, genericamente.
Uma pesquisa sumária na literatura brasileira, publicada no Brasil, não registrou nenhum trabalho que pudesse ser aproximado, de perto ou de longe, com uma visão positiva da burguesia. Os mais amplamente utilizados em nossos meios universitários são o enviesado História da Riqueza do Homem, do marxista americano Leo Huberman, e o inacreditável Veias Abertas da América Latina, do perfeito idiota Eduardo Galeano, um jornalista mal informado que é recomendado por professores igualmente idiotas por não reconhecerem sua total má qualidade histórica. Não é preciso dizer que ambos exibem, a propósito da burguesia, uma visão tão risivelmente simplista que seria empobrecedor para este texto sequer pretender criticá-los.
Qual seria, então, a natureza da dificuldade que tem a “classe” acadêmica em ver na burguesia uma força basicamente progressista, inclusiva, aberta aos talentos e aos méritos de todo e qualquer cidadão empreendedor? São muitas as causas, algumas propriamente sociais, outras ideológicas, outras, enfim, puramente psicológicas, se a distinção pode ser feita entre essas diversas categorias que, na verdade, tendem a se confundir. Em primeiro lugar, se trata, provavelmente, de preconceito de classe, posto que a maior parte de nossos acadêmicos não tem sua origem social nessa classe, que classicamente constitui uma minoria em termos numéricos (sendo bem mais ampla, numericamente, e nela os acadêmicos, a categoria que, na terminologia marxista ou assemelhada, se chama pequena burguesia). Em virtude, então, de certo complexo de inferioridade, compreensível no plano psicológico (outro fator selecionado), nossos acadêmicos exibem uma rejeição apenas em parte natural à classe em questão.
A mais forte razão, contudo, parece ser de natureza ideológica, ainda que ela se confunda com ignorância, pura e simples: a incompreensão profunda que a maior parte dos acadêmicos demonstra em relação ao funcionamento de uma economia de mercado, ampliada pela convivência quase exclusiva com “explicações” históricas baseadas essencialmente numa interpretação “marxista” da história. Coloquei “marxista” deliberadamente entre aspas posto que o velho barbudo, ao lado de seu preconceito também arraigado contra a burguesia de seu tempo, havia pelo menos estudado o surgimento e a formação da economia capitalista e manifestava certa compreensão quanto ao papel “progressista” desempenhado pela burguesia industrial na construção da moderna economia de mercado (que ele tentou analisar, sem o conseguir realmente, na sua obra mais famosa). O “certa compreensão” deveria ir também entre aspas, posto que Marx coloca no centro de sua “explicação” da sociedade capitalista a tal “extração de mais-valia”, que todo universitário pretensamente marxista interpreta como sendo o nec plus ultra das explicações possíveis quanto ao funcionamento da economia capitalista (quando isso nada mais constitui senão um arremedo de microeconomia mal formulada e mal apresentada).[1]
3. O charme discreto da burguesia (e o mais distante da aristocracia)
Deixemos, contudo, nossos acadêmicos entregues a seus preconceitos habituais, aparentemente insanáveis, e vejamos o que pode haver de louvável nas classes burguesas e aristocráticas de outras eras (ou mesmo atualmente). Elas constituem, obviamente, duas elites refinadas e distinguidas no quadro das sociedades divididas em classes – com toda a ambiguidade que esse fenômeno pode comportar – e, como tais, são chamadas a exercer papéis de relevo nos sistemas econômicos, nos regimes políticos e na produção e na disseminação de conhecimentos e de cultura que essas sociedades normalmente exibem. Marxistas acreditam que todas as sociedades até aqui existentes são sociedades divididas em classes, o que de certa forma é verdade, mas não com essa característica avassaladora, quase absoluta, que eles emprestam ao conceito. Classes são, ademais de uma realidade tangível – embora fluída, sob certos aspectos –, uma convenção prática, que em alguns casos se presta a uma operação de mistificação sociológica (posto que elas estão longe de exibir o determinismo fatal que os marxistas costumam emprestar a essa realidade e a esse conceito). Indivíduos transcendem suas situações de classe e se movimentam no continuum social e no leque de possibilidades que é inerente a toda sociedade humana, mesmo as mais aparentemente rígidas e estratificadas.
Constituindo elites, no sentido mais elementar da palavra, é obvio que tanto a aristocracia quanto a burguesia reúnem, em torno de si, todos os elementos mais refinados, em termos de luxo, cultura e manifestações artísticas, que classes dotadas de poder e riqueza são capazes de amealhar, para si e para os que lhe são próximos. O que mais se poderia esperar de formações sociais e de categorias históricas que, além de terem reunido os atributos geralmente esperados de estratos dominantes (força e capacidade de mando), sempre souberam atrair o que de melhor a civilização humana produziu no campo da inovação e da engenhosidade humanas?
Pode-se até entender o despeito de tantos acadêmicos – que são geralmente da pequena burguesia – contra a burguesia e a aristocracia: afinal de contas, eles foram educados no desprezo das classes dominantes, bem como no empenho em derrubá-las, para substituí-las, se possível, pela classe ascendente, o proletariado. O que não se pode entender, contudo, é a estupidez de recusar determinadas qualidades de educação, de refinamento, de gosto pelo luxo e por determinados prazeres da vida mundana, apenas porque tais qualidades ou desfrutes sejam próprios, por vezes exclusivos, das classes privilegiadas da sociedade, no caso a alta burguesia e a hoje quase inexistente aristocracia. É compreensível que pequenos burgueses acadêmicos viajem de classe econômica ou se hospedem em albergues econômicos, mas acredito que eles não recusariam uma primeira classe de avião ou um hotel cinco estrelas se o prazer lhes fosse oferecido graciosamente (por alguma fundação imperialista, talvez).
Imagino que eles não tenham nenhuma dificuldade em admitir que o que de melhor foi produzido pela civilização do luxo sirva de desfrute para os representantes das classes dominantes – inclusive alguns do “andar de baixo” que momentaneamente ascendem a essa condição – ainda que proclamem o objetivo de repartir o refinamento com os excluídos de sempre. Parece lhes ser mais difícil aceitar que certas distinções possam continuar sendo exclusivas dos muito ricos, posto que o princípio filosófico que rege sua militância política é o igualitarismo obrigatório (mesmo se poucos, hoje, acreditem realmente nesse conto de fadas). Pode-se conceder-lhes a ilusão de que o objetivo da sociedade igualitária seja realizado no futuro, mas ainda assim permanece a deformação básica que os faz denegrir, em suas aulas de história ou de sociologia, tudo o que as classes aristocráticas ou burguesas do passado produziram de refinado nas sociedades que precederam a moderna civilização de massas do presente. Talvez um passeio pelo mundo possa corrigir essa visão míope sobre as sociedades elitistas.
4. Visitando as obras da aristocracia e da burguesia (não apenas nos museus)
Não há como recusar: tudo o que se pode visitar de notável, de rico e de culturalmente enriquecedor, atualmente, numa Europa largamente dedicada ao turismo de massa, foi obviamente construído como habitação exclusiva para nobres e burgueses – castelos, palácios, mansões – ou como lugares de culto abertos a todo o povo: igrejas e catedrais, eventualmente, também, como residências monacais, como abadias e mosteiros (estes bem mais rústicos, porém). Tudo isso foi praticamente convertido, pela burguesia (que os conservou também), em museus e monumentos nacionais, grandiosidades abertas à visitação pública, ao custo de muito dinheiro público e privado (já que custa caro manter essas imponentes construções, algumas na origem da decadência econômica da aristocracia).
A menos que nossos pequenos burgueses acadêmicos prefiram visitar, turisticamente, tugúrios camponeses e cortiços operários, em países pobres, ou então participar, voluntariamente, do corte de cana em Cuba, nas épocas de safra, supõe-se que eles também apreciariam conhecer o que de melhor a civilização ocidental criou em vários séculos de dominação das classes aristocráticas e burguesas. Acredito que, no fundo, em lugar de cortar cana em Cuba, eles prefiram, de longe, o desfrute desse tipo de requinte, mesmo com a prevenção ideológica e o desprezo ritual que eles parecem devotar às “classes exploradoras” (mas isso apenas para fazer o jogo dos companheiros). Afinal de contas, não se pode culpá-los por desejar exibir solidariedade – mesmo falsa ou forçada – com as “classes trabalhadoras”, ao mesmo tempo em que gozam, secretamente, de alguns prazeres burgueses – até mesmo aristocráticos – sem contudo revelar o “pecado” aos companheiros de militância. A carne é fraca, sabemos disso, mas eu estou aqui justamente para incitá-los ao desfrute.
Voltemos, contudo, ao que pode motivar um “elogio à burguesia” num texto provocador como este. Deve-se, em primeiro lugar, agradecer à burguesia o fato de ter preservado tão bem o legado das antigas classes dominantes, em face de tantas batalhas, revoluções, guerras civis e outras turbulências políticas: castelos, armaduras, afrescos, tapetes, quadros, objetos que de outra forma poderiam ter sido perdidos ao longo dos séculos. Barões “ladrões” – enriquecidos por monopólios diversos, golpes financeiros, roubalheiras abertas ou encobertas, assaltos muito pouco discretos aos cofres públicos – fizeram mais do que simplesmente preservar: compraram e mandaram “embrulhar”, para entrega nos Estados Unidos, castelos inteiros, igrejas aos lotes, obras de arte de todo tipo e qualquer quantidade de manifestações do espírito e do intelecto, que eles arrematavam, aos borbotões e a preço vil, numa Europa devastada por guerras e genocídios escabrosos.
Bastava mandar reconstruir ou montar em Nova York, na Filadélfia, no Tennessee, wherever, castelos inteiros, com tijolos e pedras numeradas, para uma reapresentação “perfeita”, onde o magnata desejasse, como se estivessem nos vales e colinas européias; ou então, réplicas melhores do que os originais, fakes inovadores, moldes milimetricamente calculados, gessos mais realistas do que os mármores e granitos e, zut, voilà: no interior do Kansas ou no Colorado, surge um templo grego, um castelo medieval, uma catedral gótica ainda melhor que na paisagem de origem (já que com ar condicionado, com máquinas de refrigerantes e banheiros limpos). Como é que nossos acadêmicos pequenos burgueses não podem achar geniais essas trouvailles da civilização burguesa, essas maravilhas do capitalismo, seja na preservação dos raros vestígios do passado, seja na reprodução perfeita dos originais praticamente destruídos ou inacessíveis? Como não apoiar essas demonstrações de prestígio da civilização burguesa? Aliás, ampla e democraticamente disseminadas.
Num capítulo mais especificamente acadêmico, como não elogiar esses mecenas saídos de uma modesta condição de origem para os pináculos da riqueza capitalista, que dotam suas universidades de formação com milhões de dólares, em troca, simplesmente, de um mármore no hall de salas de concerto, gravado para a eternidade com o seus nomes? Como não admirar a multiplicação dessas oportunidades de também reproduzir o mesmo modelo de benfeitoria social através de bolsas concedidas a estudantes de condição modesta, que podem assim aceder às melhores universidades do país, que de outra forma estariam fora de suas possibilidades de estudo? Todas essas orquestras sinfônicas juvenis, espaços de preservação ambiental, museus com coleções magníficas, bibliotecas inteiras doadas a instituições de estudo e pesquisas, tudo isso é obra da burguesia, bem mais do que um Estado por vezes muito lento a se movimentar e bem mais pobre do que se pode imaginar (aliás, por definição, posto que todo o dinheiro “do” Estado vem do trabalho de burgueses e trabalhadores, se por acaso nossos pequenos burgueses acadêmicos não sabem disso). Universidades americanas devem muito a seus mecenas burgueses.
Em face de todas essas contribuições ao enriquecimento intelectual das sociedades, parece risível o fato de nossas “elites” acadêmicas insistirem em recusar a “cultura burguesa”, promovendo, em seu lugar, manifestações de “cultura popular” que aparecem como artificialmente popularescas em sua demagogia simplória. No lugar de Bethoven, hip-hop; no lugar de Villa-Lobos, funk ou um batuque qualquer; em troca de Machado de Assis, sabe-se lá que cantor de rap ou “poeta popular”. Nunca o grotesco popular ocupou um lugar tão grande em nosso cenário cultural; jamais os acadêmicos foram tão omissos na defesa da produção intelectual de qualidade: tudo em nome do “combate à sociedade burguesa” ou à “cultura da elite”, é verdade. Não deixa de ser patético e, no limite, deplorável.
5. A burguesia trabalha, mesmo nos lugares mais inóspitos...
Pode ser, contudo, que esse cenário de opção intelectual pelo popularesco, em lugar da cultura refinada, esteja mudando. Com a queda do muro de Berlim e a implosão de quase todos os socialismos – dois bastiões miseráveis ainda padecem sob ditaduras totalitárias – os marxistas mais atilados (supõe-se que existam) passaram a reconsiderar a cronologia da implantação do socialismo. Aliás, segundo o próprio Marx, o socialismo só emergiria a partir do capitalismo maduro, ao cabo de sua gradual evolução a formas mais acabadas de produção mercantil e quando as relações de produção estivessem quase plenamente “socializadas”, a ponto de entrarem em “contradição” com o desenvolvimento incipiente das forças produtivas, constrangidas pela natureza privada da apropriação da mais-valia (enfim, o blá-blá-blá conhecido).
Se isso é verdade – e é presumível que sim, dado que o próprio Marx assim escreveu – então os marxistas mais espertos deveriam estar ajudando a burguesia em sua missão histórica de desenvolver ao máximo o modo capitalista de produção, até o limite de suas possibilidades materiais (sim, aquela coisa necessária, historicamente determinada). Kautsky e outros reformistas moderados da era do ouro do marxismo clássico – como Edward Bernstein, por exemplo – tinham essa concepção do processo, mas foram atropelados pela impulsividade revolucionária de Lênin (e devidamente classificados como renegados do marxismo. Lênin era, talvez um gênio em matéria de organização política – ainda que com grandes doses de autoritarismo e de centralismo antidemocrático – mas era também um completo bárbaro em matéria de economia, ou pretendia fazê-la dobrar-se aos ditames da sua política. Não considerando aqui a arquitetura totalitária do Estado soviético que ele implantou tão logo chegou ao poder, com laivos de terror robespierrista, foi Lênin quem pressionou para uma rápida transição a um sistema econômico socialista – ou melhor, completamente estatizado – quando nem a sociedade, nem a nova administração soviética, e nem mesmo o partido bolchevique, estavam preparados para esse salto.
É verdade que ele logo enfrentou os problemas daí decorrentes, e teve de fazer um passo atrás (na NEP), sem jamais, contudo, renunciar a seus objetivos de lograr uma completa engenharia social na imensa nação atrasada que era, então, a Rússia. Apenas aprendizes de feiticeiro se engajam em projetos de tal magnitude, envolvendo uma administração complexa dos fluxos e mecanismos da economia, sem a devida preparação e sem instituições adequadas. Não é preciso relembrar aqui o imenso desastre humano que representou a construção do socialismo na Rússia, um experimento que pode ser equiparado a uma espécie de escravismo industrial. Poucas sociedades no mundo, desse porte pelo menos, passaram por experiência semelhante de engenharia social, o grande exemplo sendo, obviamente, representado pela China, que aliás assistiu a novos episódios de privação, fome e canibalismo, produzidos pela mão do homem, coisas que já tinham ocorrido na deskulakização dos anos 1930.
Alguns espíritos mais realistas – como Ludwig Von Mises, entre outros – alertaram, no devido tempo, que esse grande laboratório a céu aberto e em tempo real não tinha condições de dar certo: seria impossível o funcionamento normal de um sistema econômico na ausência de sinalizadores mínimos, dados pelos preços de mercado. E, de fato, foi o que ocorreu: o socialismo sempre foi uma loucura econômica compulsória, não um ensaio voluntário de transformação de todo um sistema produtivo. Deu no que deu, portanto, e, tanto a Rússia, quanto a China, os dois grandes moedores de carne humana do século 20, só voltaram a uma relativa “normalidade” quando resolveram abraçar de volta mecanismos de mercado e instituições tipicamente capitalistas de administração econômica da sociedade.
Com esse retorno da História, nos dois países – a China mais cedo, e com suas peculiaridades de ter mantido um Estado comunista à frente de práticas e valores absolutamente capitalistas – a burguesia veio junto, não como um favor dos novos donos do poder em cada um deles, mas por absoluta necessidade do funcionamento do novo sistema. Na China, aliás, os próprios quadros do partido se apressaram em adotar métodos “burgueses”, quando não se converteram eles mesmos nos membros mais aplicados da nova classe. O PCC passou a admitir, anos depois de ter instituído o seu “capitalismo com peculiaridades chinesas”, burgueses como membros do partido, acolhendo-os com tal entusiasmo que se poderia pensar que os empresários se destinavam a constituir a burguesia oficial do partido, o que de certa forma é totalmente correto: parte da nomenklatura se transformou na nova classe burguesa.
Nas três curtas décadas – um segundo, apenas, na história milenar da China – que a transição ao capitalismo vem sendo operada no país, ela operou “milagres” em termos de modernização produtiva e de mudanças sociais. As transformações são tão visíveis que dispensam qualquer exposição mais elaborada. A Rússia, contudo, é um caso talvez diferente, na medida em que sua transição conduziu a um tipo de capitalismo mafioso, raramente visto na história desse sistema, no qual uma nova burguesia predadora e predatória – construída a partir dos escombros do PCUS – surge no lugar das velhas elites oligárquicas, ostentando desta vez abertamente seu comportamento de novos milionários que exibem seu consumo conspícuo nos lugares mais requintados do capitalismo contemporâneo. Mônaco que o diga...
Talvez essas duas novas burguesias ainda sejam rústicas e “selvagens”, se as compararmos com suas equivalentes históricas do Ocidente: nelas estão os banqueiros italianos do Renascimento, com suas tradições de luxo, ostentação e refinamento, e os atuais mecenas americanos, que doam alegremente milhões de dólares de suas fortunas pessoais para causas nobres. Mas elas também terminarão, como as outras, cumprindo sua missão histórica de preservação, restauração e construção de sítios de memória coletiva: castelos, palácios, mansões patrícias, museus especializados, áreas de preservação ambiental, etc. Ou então, elas contribuirão financeiramente com obras beneméritas controladas por seus respectivos Estados em seus locais de origem: universidades, edifícios públicos, até assistência social, como bolsas para estudantes pobres (pois quase todo burguês tem a compulsão de ser, ou de parecer, magnânimo).
Em qualquer hipótese, algo permanece nessas sociedades a partir do “poder burguês”, pois que nem tudo é acumulação privada e exibicionismo íntimo; a burguesia também adora, como qualquer outra elite, exibir-se publicamente, e com isso ela acaba acumulando obras de arte e outras riquezas exclusivas que, em algum momento, se converterão em patrimônio coletivo, direta ou indiretamente. Os companheiros que se apressaram em “socializar” o patrimônio da aristocracia e da burguesia – como na Europa oriental, por exemplo – acabaram, na verdade, vendendo de volta palácios deteriorados e propriedades destruídas a seus proprietários originais ou seus descendentes, que agora estão investindo milhões para recolocá-los em seu estado original, o que representou em atraso monumental do turismo nesses países.
6. Burgueses de todos os países, uni-vos...
Concluindo o meu panegírico à burguesia – certamente provocador, como era a intenção, mas dotado de argumentos que podem ser discutidos – gostaria de oferecer uma última avaliação metodológica sobre o quê caberia atribuir como responsabilidades históricas a cada categoria social presente na trama das sociedades. Por certo que meu exercício encomiástico deve ter chocado algumas almas cândidas da ignorantsia acadêmica, mas foi justamente com esse objetivo que empreendi este ensaio. Mas, o que vem agora deverá chocar muito mais.
Observando-se objetivamente o século que se passou – um dos mais mortíferos na história da humanidade – e mesmo descontando os episódios de guerras globais – com suas responsabilidades talvez compartilhadas, mas com um manancial de mortes provocadas, hecatombes sociais, genocídios e limpezas étnicas que pendem seguramente para o lado dos totalitarismos coletivistas – o balanço que cabe fazer da luta mortal que se desenvolveu entre os dois grandes sistemas ideológicos de nossa era maniqueísta poderia ser traçado da seguinte forma. Os companheiros – mais os comunistas do que os fascistas – que se aventuraram na construção do homem novo e na eliminação da exploração capitalista, deixaram atrás de si, junto com a burguesia reprimida, uma terra arrasada em termos de patrimônio material e de valores humanos: gulags, ampla censura, palácios deteriorados, repressão ao pensamento e, sobretudo, diminuição geral do nível de vida. A história registra objetivamente esses fatos, e apenas os cegos deliberados, os míopes ideológicos e os acadêmicos de má fé não se dispõem a reconhecer esses fatos e episódios em sua simplicidade brutal.
Em contrapartida, as sociedades e países que mantiveram estruturas sociais herdadas do passado – o que pode incluir revoluções violentas, igualmente – e que empreenderam processos progressivos de reformas sociais moderadas – em oposição aos grandes projetos de transformação radical da sociedade – souberam preservar, junto com as antigas classes dominantes, grande parte do patrimônio histórico coletivo de outras épocas. Certamente que essas sociedades apresentavam no passado, e algumas continuam a fazê-lo no presente, grandes desigualdades sociais e estamentos elitistas, características que estão justamente representadas em todos aqueles lugares simbólicos que constituem, atualmente, nossos lugares preferidos de visitas turísticas (hoje em dia um fenômeno de massa): castelos, palácios, museus, sem mencionar as melhores universidades do mundo, tradicionalmente elitistas, antes de sua abertura a todos os talentos, processo bem mais recente em todos os países.
Esse é o mundo da burguesia e da aristocracia – esta bem mais restrita numericamente – tão execrado por acadêmicos ingênuos ou deliberadamente ignorantes, cujas paixões políticas sobrepõem-se àquele mínimo de racionalidade que se espera de pessoas de cultura universitária. Acredito que esse tipo de equívoco pode ser sanado com uma simples abertura de espírito e a retirada das viseiras ideológicas.
De minha parte, não tenho nenhuma hesitação em terminar elevando uma saudação de “viva a burguesia!”, com a certeza de ter convertido à objetividade histórica pelo menos alguns poucos alunos desses acadêmicos equivocados. Vale!
[1] Remeto, para mais amplas explicações, a estes dois artigos meus: O fetiche do Capital e Falácias acadêmicas, 8: os mitos da utopia marxista, publicados na revista Espaço Acadêmico, respectivamente no n. 83 (abril de 2008) e no n. 96 (maio de 2009), disponíveis nos links http://www.espacoacademico.com.br/083/83pra.htm e http://www.espacoacademico.com.br/096/96esp_pra.htm.
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