domingo, 10 de dezembro de 2023

Brasil potência ambiental? Só abandonando o petróleo - Dossiê revista Veja

O Brasil é uma potência ambiental, mas apenas potencial. Falta muito para consolidar esse papel e a exploração de petróleo não é exatamente a via. (PRA)

                 

É preciso mais do que boa vontade para virar a 'Arábia Saudita da energia renovável'

Por Ernesto Yoshida
Veja, 9 dezembro 2023


Poucos dias antes de participar da conferência da ONU sobre o clima (COP28), em Dubai, o presidente Luiz Inácio Lulada Silva esteve em Riad, na Arábia Saudita, onde se reuniu com autoridades e empresários. Durante o encontro, em 29 de novembro, o presidente enalteceu o papel do Brasil na produção de energia limpa. “Daqui a dez anos, o Brasil será chamado de a Arábia Saudita da energia renovável. É para isso que estamos trabalhando”, declarou Lula.

A comparação com a Arábia Saudita, a maior exportadora de petróleo do mundo, não é inteiramente descabida. As dimensões continentais, com abundância de recursos naturais como sol, vento e água, colocam o Brasil em uma situação privilegiada para desempenhar um papel global relevante na produção de energia renovável. Hoje, 85% da matriz elétrica brasileira é proveniente de energia limpa, ante a média de 27% no mundo. Em termos de matriz energética, que engloba todas as formas de produção de energia, incluindo as utilizadas em transporte e processos industriais, o Brasil tem 47% de fontes renováveis, em comparação com a média global de 14%.

“O Brasil já é uma potência em energia verde. O país está hoje aonde o mundo quer chegar em 2050”, diz Nivalde de Castro, professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no qual coordena o Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel). Para se aproximar do padrão brasileiro, o mundo virou a chave. A Agência Internacional de Energia estima que 1,7 trilhão de dólares estão sendo investidos globalmente neste ano em energia limpa, ante 1 trilhão de dólares em combustíveis fósseis. Há cinco anos, os recursos destinados a energia renovável e não renovável eram equivalentes. A mudança da rota é liderada pela China, que expandiu seus investimentos em energia de baixo carbono desde o início dos anos 2000 para reduzir a dependência em relação ao carvão.

arte enxurrada de recursos

O apetite chinês inclui a aquisição de ativos de energia no exterior. No Brasil, somente a State Power Investment Corporation (SPIC), uma das cinco maiores geradoras de eletricidade do mundo, investiu 12 bilhões de reais em seis anos de operação. “O ambiente propício para investimentos, aliado ao compromisso com a transição energética, torna o Brasil um destino estratégico para as empresas com foco global como a SPIC”, diz Adriana Waltrick, presidente da subsidiária brasileira. A corporação chinesa atua em 46 países e tem 213 gigawatts de potência instalada. No Brasil, atua em energia hidrelétrica, eólica e solar, além de gás natural e hidrogênio verde.

Entre os negócios da SPIC no Brasil está a operação da Usina Hidrelétrica São Simão, na divisa de Minas Gerais com Goiás. A empresa planeja investir 1 bilhão de reais nos próximos nove anos para modernizar o empreendimento, em um processo conhecido como repotenciação — o aumento da capacidade de geração de uma usina por meio da atualização dos equipamentos ou da instalação de turbinas mais eficientes. “É o caminho mais eficaz para o desenvolvimento do parque hidrelétrico brasileiro sem a necessidade de novos empreendimentos”, afirma Waltrick.

As hidrelétricas representam hoje 50% da matriz elétrica brasileira — essa fatia já foi superior a 90%, nos anos 1990. Apesar da perda de participação, as usinas hidrelétricas devem continuar ocupando um papel importante, por sua capacidade de funcionar como grandes “baterias de água” — armazenar energia potencial em forma de água nos reservatórios. É um modo de evitar oscilações na oferta de eletricidade, um ponto crucial devido à natureza intermitente das energias renováveis. Embora o Brasil tenha sofrido alguns apagões de energia nos últimos anos, Castro não vê motivos para preocupação. “Esses apagões foram problemas pontuais que ocorreram, por exemplo, por causa de uma queimada sob uma linha de transmissão, mas tudo foi normalizado em poucas horas. Não há um problema estrutural.”

artes enxurrada de recursos

Para Luiz Augusto Barroso, presidente da consultoria em energia PSR, o melhor caminho é diversificar a matriz energética, aumentando a inserção de eólica e solar, que são fontes competitivas e complementares à hídrica, e usar a geração térmica a gás natural para dar mais estabilidade ao sistema. Barroso diz que um dos principais desafios para “limpar” ainda mais a matriz brasileira é a transição no setor de transportes, que usa basicamente combustíveis fósseis e responde por 33% do consumo de energia no país. “No curto prazo, a melhor estratégia é usar biocombustíveis como o etanol na frota de veículos leves, eletrificar a frota de ônibus urbanos e usar gás natural para caminhões”, afirma. “No médio prazo, a eletrificação será o caminho mais econômico para todos os meios de transporte.”

Com sua matriz elétrica predominantemente limpa, o Brasil tem grande potencial para produzir hidrogênio verde, o combustível resultante da eletrólise (a passagem de uma corrente elétrica para quebrar a molécula da água), usando fontes renováveis. Para Castro, há dois caminhos possíveis para o hidrogênio verde que o Brasil vai produzir: exportá-lo ou usá-lo internamente para substituir combustíveis fósseis em setores de difícil descarbonização, como as indústrias siderúrgicas e de cimento. “Exportar hidrogênio seria como vender água e sol. É melhor usar o hidrogênio para converter as indústrias nacionais para a economia verde e exportar os produtos fabricados com energia renovável, com maior valor agregado”, afirma Castro.

Para ele, nenhum país tem atributos como o Brasil para se tornar, de fato, uma potência em economia verde. O que falta? “Falta estruturar todo o potencial que temos em uma política de Estado, não só de governo, para definir os passos necessários nos próximos dez ou vinte anos”, diz Castro. Sem uma política bem planejada e executada, e sem a clareza do que é preciso fazer para se tornar a “Arábia Saudita da energia renovável”, a frase do presidente Lula pode virar só uma anedota.

 

O que falta para o Brasil investir na produção de energia eólica no mar

Aprovação de um marco regulatório deve destravar o potencial do país nessa área

Por Carla Zimmermann

Com cadeias maduras de suprimento de energia eólica em terra firme, o Brasil se prepara para desbravar também o potencial dos ventos marítimos. Por meio das chamadas eólicas offshore, em que os geradores são instalados no mar, o país pode ampliar a capacidade de produção energética movida por ventos em 3,6 vezes, segundo um estudo da Confederação Nacional da Indústria, a CNI. O Nordeste se destaca como a região com maior potencial de exploração dos ventos do alto-mar. Hoje a região já responde por 90% da produção nacional de energia elétrica de fonte eólica. Para o Brasil acelerar na implantação de parques eólicos offshore, no entanto, falta a definição de um arcabouço de regras.

arte eólica

Um passo importante nesse sentido foi dado no final de novembro, com a aprovação do marco regulatório da energia eólica offshore pela Câmara dos Deputados. Agora, a nova legislação aguarda o aval do Senado. A expectativa é que os senadores também deem o sinal verde para a regulamentação, considerada fundamental para a criação de uma estrutura jurídica do setor. O projeto de lei 11 247, concebido em 2018, que estabelece o marco regulatório das eólicas offshore, permite a outorga pelo governo de áreas marítimas para a exploração da atividade.

Ao mesmo tempo, o mercado se movimenta para acelerar os investimentos nessa nova fronteira de produção de energia. O Ibama, responsável pela concessão de licenças ambientais para projetos dessa natureza, já recebeu pedidos para a liberação de parques eólicos no mar com potencial para gerar 200 gigawatts de energia. Até outubro, o órgão havia registrado o recebimento de autorizações para 78 projetos de eólicas offshore.

“Com o marco regulatório do setor, o mercado deverá se viabilizar, seguindo uma tendência de redução de custos de produção e aumento da demanda”, diz Davi Bomtempo, gerente-executivo de meio ambiente e sustentabilidade da CNI, que vem conduzindo estudos sobre o tema. “A partir do momento em que o arcabouço jurídico for sancionado, o Brasil deverá se inserir na cadeia global de empreendimentos do segmento de eólica offshore.”

Em 2022, segundo dados da Agência Internacional de Energia, do total de 900 GW de capacidade eólica instalada no mundo, 93% correspondiam a sistemas onshore e os restantes 7% a parques eólicos offshore. A expectativa é que a produção energética offshore cresça rapidamente nos próximos anos, para aproveitar o potencial dos ventos mais fortes em alto-mar.

No Brasil, uma das principais iniciativas nessa área é capitaneada pela Petrobras. A estatal fechou uma parceria com a WEG, fabricante de motores elétricos, para o desenvolvimento de aerogeradores que serão instalados em alto-mar. Os investimentos da Petrobras no projeto somam cerca de 130 milhões de reais. As estruturas de geração de energia eólica offshore serão montadas em dez áreas, sete delas no Nordeste, em estados como o Rio Grande do Norte e o Ceará. O plano é gerar cerca de 23 GW de energia. No longo prazo, os investimentos devem crescer ainda mais. Só a Petrobras deve destinar cerca de 25 bilhões de reais a projetos de energia eólica (com espaço para a offshore) e solar até 2028.

Além da Petrobras, outras petroleiras têm revelado interesse pelo mercado de energia eólica offshore. Uma das principais motivações tem sido a necessidade de investir na transição energética. A expertise em infraestruturas em alto-mar, voltadas para a exploração de petróleo, é outro fator importante nessa equação.

Potencial brasileiro

Parâmetros técnicos, referentes à profundidade do mar adequada para a instalação de turbinas eólicas offshore e sua distância da costa (limitada a 200 quilômetros em função de requisitos operacionais), e fatores ambientais apontam quais estados brasileiros apresentam maior potencial para a geração de energia em alto-mar. No mapa de oportunidades, elaborado pela CNI, as maiores áreas de viabilidade técnica se encontram no Piauí, no Ceará e no Rio Grande do Norte. Estados do Sudeste, como o Rio de Janeiro e o Espírito Santo, também se destacam.

Um dos primeiros projetos-piloto está programado para entrar em operação no litoral do Rio de Janeiro, a 42 quilômetros de Cabo Frio, sob a liderança da Petrobras. A intenção é gerar 3,2 GW de energia mediante a instalação de mais de 150 aerogeradores, cada um com capacidade de 18 MW, segundo a empresa. A estatal vem testando estruturas de geração de eólica offshore em uma parceria com a Universidade de São Paulo e com o Laboratório de Tecnologia Oceânica da Coppe/UFRJ, o centro de pesquisa e ensino de engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os primeiros testes com aerogeradores já foram realizados, com resultados positivos.

O Rio Grande Norte também segue firme na corrida para o início da produção de energia eólica offshore no Brasil. O estado assinou um acordo, em maio deste ano, com a EDF Renewables, multinacional francesa de energia renovável, e com a Internacional Energias Renováveis, empresa brasileira voltada ao desenvolvimento de projetos de energia solar e eólica. O objetivo é identificar oportunidades de exploração da nova fonte energética e implementar parques eólicos offshore. A EDF Renewables anunciou que pretende operar um complexo eólico offshore no Rio Grande Norte com capacidade para gerar 2 GW. A inauguração está prevista para 2030.

O Ceará tem metas até mais ambiciosas. O estado já protocolou 22 projetos de energia eólica offshore junto ao Ibama e aguarda a aprovação dos pedidos de licenciamento ambiental. Além da Petrobras, grandes grupos globais do setor de óleo e gás, com destaque para a norueguesa Equinor, a britânica Shell e a francesa TotalEnergies, acompanham de perto a liberação de licenças. Caso os projetos se concretizem, a capacidade de produção de eólica offshore no estado pode chegar a 56,6 GW.

“O Brasil tem uma oportunidade muito grande de exploração e produção de eólica offshore e agora estamos construindo as bases para esse desenvolvimento”, diz Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica (ABEEólica). Caso o marco regulatório da atividade seja sancionado pelo Senado até o final do ano ou nos próximos meses, a expectativa é que o primeiro leilão de cessão de área marítima para a exploração da fonte energética seja realizado em 2024. Os trâmites do processo de licenciamento devem levar mais três anos, segundo a ABEEólica. “Com isso, teríamos os primeiros parques de eólica offshore funcionando a partir de 2030”, afirma Gannoum.

Não há tempo a perder, na visão do mercado. Apesar do grande potencial de geração de energia eólica, o Brasil largou atrás na corrida pela exploração dos ventos que sopram no mar. Na China, os primeiros projetos de eólica offshore tiveram início há duas décadas — hoje o país asiático é o maior produtor mundial, com a geração de mais de 17 GW, seguido por Reino Unido, Alemanha e Holanda. A União Europeia tem redobrado os esforços para ampliar a produção eólica offshore, considerada uma importante fonte no mix energético do continente. Planos como o REPowerEU, lançado recentemente com o objetivo de tornar a União Europeia autossuficiente em energia até 2030, eliminando a dependência de importação de combustíveis fósseis da Rússia, vêm impulsionando os investimentos no setor. Além disso, a Dinamarca, a Bélgica, a Alemanha e a Holanda assinaram um tratado para acelerar a produção de eólica offshore no Mar do Norte, com uma meta de produção de 150 GW até 2050.

Custos em queda

Esses avanços vêm sendo viabilizados não só em função da demanda por descarbonização e diversificação da matriz energética. A tecnologia também vem avançando, com ganho de escala e redução de custos. Nesse sentido, o futuro é promissor. Um estudo da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, projeta que até 2035 os custos para instalação de parques eólicos no mar deverão diminuir entre 17% e 35%. O custo médio para a produção de energia eólica offshore já caiu 40% de 2010 a 2021, chegando hoje a 2 858 dólares por quilowatt. Mesmo assim, a geração de energia elétrica offshore ainda custa o dobro da opção onshore, por questões operacionais, preço dos equipamentos, logística e manutenção.

Na visão de analistas, o Brasil está bem posicionado para obter uma relação custo-benefício atraente na exploração do potencial dos ventos marítimos, especialmente em relação a outros mercados emergentes. “A expertise brasileira em projetar estruturas offshore para exploração de petróleo pode ser de grande importância nesse cenário”, diz Bomtempo, da CNI. Mesmo assim, deverão ser necessários investimentos significativos e que demandarão anos até ser concretizados. “Além disso, precisaremos adequar nossa infraestrutura de logística, transmissão e distribuição de energia”, completa Bomtempo.

A boa notícia é que avanços tecnológicos têm permitido a produção de turbinas eólicas mais eficientes. Desde 1991, quando foi instalada a primeira turbina offshore, a potência vem crescendo. Passou de 1,5 MW por turbina no ano 2000 para 6,5 MW em 2020. Em 2025, deve chegar a 12 MW, em média, segundo o Global Wind Energy Council. As pás das turbinas eólicas também têm evoluído, principalmente por meio do desenvolvimento de novos materiais para sua construção, como fibra de vidro e carbono. Esses materiais oferecem maior resistência e impermeabilidade, reduzindo a corrosão, um problema do ambiente marítimo.

Com o crescimento do mercado, a expectativa é que a cadeia de produção se amplie. Hoje, os principais fornecedores de equipamentos de parques eólicos offshore estão na Europa, com destaque para a Alemanha e a Dinamarca, além da China. No Brasil, o segmento de eólica onshore, estabelecido há algum tempo, conta com fornecedores como Casa dos Ventos, Omega, Ecoenergia, Enel e EDPR. O mercado offshore, no entanto, ainda precisa ser estruturado, o que deve começar a ocorrer a partir da aprovação do marco regulatório do setor. Empresas brasileiras como a Eólica Brasil e a Neoenergia já revelaram interesse em desenvolver equipamentos de parques offshore, segundo a CNI. Para o desenvolvimento do setor no país, só falta dar o pontapé inicial, com a regulamentação do mercado e os primeiros leilões dos parques eólicos offshore.

 

Alvo de polêmicas, as hidrelétricas vivem tempo de incertezas no Brasil

Em meio a questões socioambientais, a energia gerada pelas águas continuará a ter um papel fundamental no país

Por Flávio Bosco

Quando as primeiras turbinas da hidrelétrica de Belo Monte entraram em operação, em 2016, a tônica dos discursos das autoridades era a grandiosidade da usina. O colosso erguido no meio da Amazônia tem capacidade de 11 233 megawatts (MW), que o colocam como a segunda maior hidrelétrica do país e a quinta do mundo. O empreendimento, no entanto, ficou marcado pelos impactos ambientais e sociais em terras indígenas e no curso do rio Xingu — os protestos contra a construção da usina chegaram a reunir ativistas em Nova York, entre eles a atriz Sigourney Weaver, que interpretou a doutora Grace Augustine no filme Avatar, um épico sobre os efeitos devastadores da exploração de recursos naturais.

Belo Monte virou uma obra emblemática do fim da era das grandes usinas. Nos últimos anos, apenas nove hidrelétricas entraram em operação no país. A maior delas com 700 MW de potência — quase nada em comparação com Belo Monte. Isso porque o potencial hídrico ainda disponível para a construção de grandes usinas no Brasil está concentrado no norte do país, sobretudo na Região Amazônica. O desafio é erguer empreendimentos dessa envergadura na maior floresta tropical do planeta — uma região plana, que exigiria o alagamento de áreas enormes para a construção de reservatórios.

“É uma pena os povos indígenas não poderem também participar dos negócios, inclusive hidrelétricas, como acontece em outros países como Estados Unidos e Canadá. Aqui são tratados como incapazes de negociar por si mesmos, e sempre alguém — que não os indígenas — trata de dizer o que é melhor para eles”, diz Rafael Kelman, especialista da consultoria em energia PSR. As desavenças ajudaram a afundar o debate relativo à expansão hidrelétrica no Brasil. O projeto da usina São Luiz do Tapajós, no Pará, com potencial de 8 040 MW, nem sequer saiu do papel após o Ibama arquivar o processo de licenciamento ambiental. “Hoje a construção dessas grandes usinas na região Norte é absolutamente inviável”, afirma Luiz Eduardo Barata, ex-diretor geral do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) e atual presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia.

Isso não significa um ponto-final para a hidreletricidade. A energia gerada pela água vai continuar sendo a fonte mais importante da matriz elétrica brasileira nos próximos anos. No início da próxima década, segundo o Plano Decenal de Expansão de Energia 2031, estudo elaborado pela estatal Empresa de Pesquisa Energética (EPE), 45% da energia elétrica do país virá de usinas hidrelétricas. Hoje, a energia elétrica gerada pela vazão de água nas turbinas iguala a soma de todos os outros recursos energéticos.

Essa participação já foi maior: até o final dos anos 1990, as hidrelétricas eram     responsáveis por 90% da matriz elétrica brasileira. Entre 1960 e 2000, o Brasil soube aproveitar bem a abundância de rios e que­das-d’água. Nesse período, a hidrelétrica era a alternativa econômica mais atraente para atender à expansão necessária. Além disso, o planejamento e os investimentos do setor eram atribuições de empresas estatais verticalizadas (responsáveis desde a geração até a distribuição da energia elétrica), o que favoreceu o financiamento dos projetos de grande porte.

O quadro começou a mudar em 1997 com a reforma do setor elétrico brasileiro. As atividades de geração, transmissão e distribuição de energia foram fracionadas e o papel do Estado foi redefinido. Em 2001, quando o país enfrentou o maior racionamento de energia elétrica de sua história, o governo decidiu incentivar a construção de usinas termelétricas movidas a gás natural importado da Bolívia para depender menos do regime hidrológico. A privatização da Eletrobras, em 2022, representou a mais recente página virada nos rumos da geração hidrelétrica no país. “Ainda temos potenciais de menor porte nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e até na Região Sul. Obviamente que elas não são tão economicamente vantajosas quanto as grandes hidrelétricas”, diz Barata.

Pequenas usinas

Nos últimos anos, as hidrelétricas têm cedido espaço para projetos de geração eólica e solar. Esses projetos demandam investimentos menores, possuem tempos de implementação mais curtos e, consequentemente, proporcionam tarifas mais baixas para os consumidores. O Novo PAC, programa de investimentos apresentado neste ano pelo governo federal, lista entre os projetos do eixo Transição e Segurança Energética uma hidrelétrica e vinte pequenas centrais hidrelétricas, que terão capacidade de adicionar 256 MW à oferta de energia elétrica. É 5% do que os 120 novos parques eólicos ou 3% da potência que as 196 usinas solares previstas deverão adicionar no mesmo período. Nesse ritmo, até 2040, as energias solar e eólica devem superar, juntas, a capacidade de geração das hidrelétricas, conforme indica o “New Energy Outlook”, relatório elaborado pela empresa Bloomberg New Energy Finance.

Nos últimos anos, parte da energia elétrica acrescentada ao sistema brasileiro veio das pequenas centrais hidrelétricas (PCH), uma categoria de usinas com capacidade de 5 MW a 30 MW, que contou com subsídios na tarifa de uso dos sistemas de transmissão e distribuição (a chamada energia incentivada) e a contratação compulsória estabelecida por lei. Em novembro de 2023, as PCHs em operação no país somavam 7 200 MW, de acordo com dados da Agência Nacional de Energia Elétrica. Além das PCHs em construção, a EPE estima um potencial de 14 000 MW para essas usinas de pequeno porte. Como comparativo, a capacidade atual das usinas hidrelétricas totaliza quase 104 000 MW.

Ainda assim, o Brasil pode tirar mais energia das hidrelétricas existentes por meio da repotenciação — processo que pode envolver a troca de componentes, a construção de uma nova casa de força ou a instalação de unidades geradoras em poços existentes para tornar as usinas mais eficientes e ampliar a capacidade instalada. Até 2030, de acordo com um relatório da Associação Internacional de Hidreletricidade, mais da metade da capacidade hidrelétrica mundial deverá passar por repotenciação ou modernização de instalações.

Os estudos da EPE com 51 usinas (todas com mais de 25 anos de operação e potência instalada superior a 100 MW) indicam que há um potencial de 3 000 a 11 000 MW, com orçamento menor e menos dificuldade no licenciamento ambiental em relação à construção de uma nova usina — o investimento médio observado em usinas já repotenciadas ou ampliadas vai de 1 000 a 5 000 reais por quilowatt, dependendo das características do empreendimento, até metade do valor das últimas usinas construídas no país.

arte água

Especialistas também defendem o modelo de usina reversível — a água não utilizada no período chuvoso é armazenada em um segundo reservatório e pode ser bombeada nos períodos de seca. “Isso aumenta a capacidade de armazenamento e o ONS pode usar a energia armazenada para ter a flexibilidade necessária ao atendimento à demanda. Esse talvez seja o ponto mais inovador e o caráter mais estratégico das hidrelétricas”, diz o professor Nivalde de Castro, do Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A despeito de sua presença preponderante na matriz, a geração hidrelétrica ganha outra importância em face da característica intermitente das fontes eólica e solar, que dependem de fatores climáticos para gerarem eletricidade. Como o sol não brilha nem o vento sopra 24 horas por dia, outro recurso precisa complementar a oferta de energia para dar mais segurança ao sistema elétrico. Hoje essa regulação é feita em parte pelas hidrelétricas e em parte pela operação de usinas termelétricas — até mesmo por baterias, em outras partes do mundo. “Antes o sistema hidrelétrico era especialmente importante para garantir potência e energia. Agora ele passa a ter um papel muito mais relevante, de estabilizar a inserção daquelas fontes, que entram à medida que o recurso esteja disponível”, diz Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo.

Na ponta do lápis, a energia elétrica gerada pela vazão de água é a alternativa mais econômica quando comparada à geração termelétrica, que queima combustível para gerar vapor e mover turbinas. Resta saber quanto vale esse atributo na contratação da energia. “Há um problema no modelo de precificação e o sistema não tira proveito das grandes vantagens que esse novo cabedal de recursos emergentes permite para o país”, afirma Sauer.

Em tempos de transição energética, as hidrelétricas continuam sendo projetadas e construídas no mundo, principalmente no continente asiático. “Os números da China, por exemplo, são impressionantes. Até 2030, o país vai instalar 80 GW em hidrelétricas. Para usinas reversíveis, o plano é instalar 120 GW até lá”, diz Kelman da PSR. Está claro que uma matriz elétrica sustentável — e equilibrada — não pode abrir mão das hidrelétricas.


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