terça-feira, 28 de maio de 2024

Uma ode ao octogenário da liberação de Paris - Daniel Afonso da Silva Jornal da USP

Uma ode ao octogenário da liberação de Paris

Por Daniel Afonso da Silva, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP

 Jornal da USP, 28/05/2024

Para Cremilda Medina e para Rubens Ricupero

Aquele 25-26 de agosto de 1944 foi um momentum sem par. Os aliados retomavam Paris. Vichy agonizava os últimos suspiros. O Reich ainda não. Hitler – sem saber para onde olhar nem ir tampouco o que fazer – talvez. Era geral a entropia da aventura nazista. Os mais sapientes intuíam o fim próximo daquela história macabra. Muitos já sentiam o cheiro acre de seu ocaso.

Alguns poucos notavam um novo mundo nascendo. Perto, muito perto, dali. Perto a ponto de já tocar corações.

O desembarque aliado, no Norte da África e no Sul da Europa, tinha sido um sucesso. Agora se vivia o desembarque exitoso na França.

A maior tragédia do século 20 – quiçá de todos os tempos –, assim, ia se decompondo. Do Mediterrâneo ao Ural, tudo parecia ir se renovando. O Mundo Livre – liderado pelos Estados Unidos e simbolizado pelo Reino Unido – ia, aos poucos, recuperando posições. A Wehrmacht sangrava. A Luftwaffe seguia em desarranjo. A Kriegsmarine estava cada vez mais dilapidada. Não apenas na França. Mas em todas as partes e em todos os lugares em terra, ar e mar.

Uma nova fase começava a se abrir. O “fim do começo” – que o primeiro-ministro Churchill identificou no desembarque no Norte da África em fins de 1942 – virava, aos poucos, passado. Entre o desembarque na Itália, em meados 1943, e o desembarque na França, em meados em 1944, tinha tido início o “começo do fim”. A liberação de Roma, no 4 de junho de 1944, era um sinal eloquente da desordem do fascismo. O desembarque meritoso na Normandia, dois dias depois, no 6 de junho de 1944, era mais um passo firme rumo ao galardão. Precisava combinar com os russos sobre Berlim. Da parte dos aliados, o projeto, agora, entrando na França, era liberar Paris.

O responsável pelo Bombing Command, o Sir Arthur Harris, havia persuadido britânicos e norte-americanos da eficácia do dilúvio de fogo na contenção e destroçamento das forças alemãs espalhadas pela Europa. Nesse intento que, desde 1943, a USA Air Force e a Royal Air Force bombardeavam diuturnamente as posições do Reich em todas as partes mediante uma insistente tempestade de chumbo. Nas manhãs e tardes sob a mira determinada dos pilotos do presidente Roosevelt e nas noites e madrugadas sob a fúria desmedida dos súditos de His Majesty, Albert Frederick Arthur George, George VI.

O propósito geral era a amputação de regiões estratégicas do Reich de suas conexões com Berlim. Por conta disso, vias terrestres – estradas de ferro e estradas de chão e terra – foram amplamente destruídas. Todas as imediações do Ruhr – espaços abundantes em carvão e aço e, portanto, deverasmente importantes para os nazistas –, nesse intuito, foram, assim, comprometidas. O desejo de Sir Arthur Harris era a promoção de um sinistro geral e total. E assim se fez. A superioridade aérea e balística dos aliados, nesse momento da guerra, já era implacavelmente superior.

No biênio 1943-1944, os norte-americanos chegaram a fabricar o número mágico de 100 mil aparelhos anuais em média. Isso evidenciava que a ciência aeronáutica evoluíra consideravelmente de uma Grande Guerra à outra. A integração entre ciência – física, química, matemática e afins – e ciências militares a serviço da vitória chegara a níveis jamais vistos.

E nos dois lados do Atlântico.

Desde a queda da França, em junho de 1940, que o primeiro-ministro Churchill começou a despachar os principais cientistas britânicos para Estados Unidos para partilhar e aperfeiçoar os seus inventos, especialmente, os aeronáuticos. Por isso os inventos – entre eles, o mais conhecido, o radar – do cientista britânico Robert Watson-Watt foram apresentados às equipes dos professores John Randall e Henry Boot da Universidade de Birmingham e, em seguida, melhorados e incorporados aos desígnios do general George Marshall, chefe do estado-maior norte-americano.

Dois anos depois, a sinergia entre Londres e Washington em assuntos aéreos já era integral. Tanto que a formação de pilotos, depois da efeméride de dezembro 1941, começou a se fazer conjuntamente. Do mesmo modo que a mise en placede aviões operacionais. Tudo em sintonia. Uma sintonia que permitiu a otimização de esforços na ampliação da quantidade e da qualidade de pilotos e aviões. Tudo para esmagar o Reich. E os alemães perceberam isso do modo mais amargo: contando os seus mortos.

Anotada em perspectiva, foi impressionante a evolução da letalidade da USA Air Force e da Royal Air Force. No triênio 1940-1942, enquanto era pequena a sinergia aeronáutica anglo-saxônica, os bombardeios aliados mataram 11 mil civis e militares alemães. De 1943 a 1945, esse número subiu para 600 mil. O melhoramento da tecnologia aeronáutica dos aliados foi, assim, um claro diferencial tático e o seu imenso salto de qualidade representou um verdadeiro tour de forcenas batalhas.

Mas, não só.

Nem só de aprimoramento tecnológico, como sabido, depende a sorte de uma guerra. É sempre necessário algo mais. E esse algo mais estava contido no ímpeto de vingança dos britânicos. Um desejo profundo lastreado no sentimento de humilhação acumulado desde o início dos bombardeios alemães em 1940. Nenhum britânico conseguia esquecer o verdadeiro pandemônio aéreo promovido pela Luftwaffe. A Battle of Britain foi traumática demais. Numerosos londrinos, por exemplo, desenvolveram síndromes de pânico irreversíveis. Mesmo com bons radares, bons sistemas de comunicação e bons abrigos, o medo de morrer na tempestade de chumbo era tamanho que os paralisava. Uma revanche implacável era o único antídoto. Mas precisaria ser na mesma medida e no mesmo formato. Feito Juízo Final. Vindo dos céus. Com chamas e chumbo.

Por isso, tão logo a aliança com os norte-americanos virou mais efetiva, a demanda insistente dos britânicos ao presidente Roosevelt de ampliação dos investimentos conjuntos em aperfeiçoamento aeronáutico. Quando o dinheiro começou a chegar, eles iniciaram a materialização de sua vingança. E, nesse intuito, a partir de 1943, tornaram o bombardeio de alemães numa questão de honra nacional. Tanto que bombardearam sem perdão – mas com muito orgulho – todas as cidades estratégicas do Reich. Especialmente Hamburgo e Berlim.

Hitler, acuado, vendo isso, seguia imóvel.

Salvar Hamburgo e Berlim era importante. Mas manter posições no Norte da África e em toda a Itália era essencial. E, mais que tudo, acoimar Stálin no front Leste continuava sendo decididamente fundamental.

Que fazer?

Como fazer?

Onde focar?

Desde o front Leste, o momentum Paulus – da capitulação do marechal alemão Friedrich Wilhelm Ernst Paulus, às portas de Stalingrado, em fevereiro de 1943 – tinha alterado profundamente as percepções. As relações de força tinham sido amplamente revertidas. O sucesso soviético deixou tudo inebriante. A Wehrmacht – era verdade – seguia altiva por lá. Mas Stálin, com a capitulação do inimigo, passava a dominar agendas, relógios e calendários e retirava de Hitler o controle sobre todos os movimentos seguros do Reich em todos os teatros de operações entre Berlim e Moscou.

A carnificina de Stalingrado marcou espíritos. Ocorreu nela a maior batalha urbana jamais vista na história das guerras. E o sucesso soviético jamais fora imaginado por Hitler.

Esse sucesso elevou todo o moral dos soldados da União Soviética. Tudo neles virou extraordinário. Seus olhos reluziam e seus corações batiam mais forte. Ninguém entre eles parecia temer a morte. Vingar Moscou, vingar os soviéticos e vingar Stálin tinham virado a sua obsessão. Nada, assim, os impediria de singrar decididamente até Berlim.

Do lado oposto, os soldados do Reich começavam a fraquejar. As vigas morais do regime começavam a esmaecer e a invencibilidade dos alemães começava a ser, internamente, posta à prova.

Foi verdade que o rompimento da não agressão germano-soviética causou danos colaterais gigantescos à organização mental da gente de Moscou. Stálin e Molotov sabiam o que poderia acontecer. Mas quando aconteceu, ficaram atônitos. Mas, claro, não por muito tempo. Precisou “apenas” a contenção da Wehrmacht às portas de Moscou, no inverno de 1941-1942, para esses herdeiros de Lênin e Trotsky se recompor. E dessa recomposição veio o sucesso de Stalingrado.

O sucesso de Stalingrado foi produto da mutação mental do camarada Stálin. Ele poderia ser grosso, mas não era inteiramente estulto. Por conta disso, na viragem de 1941 para 1942, ele passou subitamente a respeitar os seus generais.

Quando isso aconteceu, os comissários do partido foram sutilmente retirados das deliberações operacionais, táticas e estratégicas. Em seguida, oficiais de todas as patentes passaram a ter voz e a ser sinceramente ouvidos. E, assim, o determinado marechal Júkov foi, enfim, investido em todos os seus poderes.

Diante dessa verdadeira metanoia soviética, desde os Estados Unidos, o general George Marshall passou a venerar a competência do Exército Vermelho. Consequentemente, o presidente Roosevelt – que nunca escondeu a sua admiração pela determinação dos mujiques – passou a considerar impossível vencer Hitler sem o apoio de Stálin. E o primeiro-ministro Churchill – que, de sua parte, nunca escondeu o seu desprezo pelo mandatário de Moscou – também se obrigou a mudar.

Dessa mudança súbita não demoraram os desdobramentos concretos, que os alemães começaram a imediatamente constatar. E da pior maneira. Com o aumento exponencial de jipes, furgões, furgonetas, caminhões com marca, brasão ou logotipo de empresas bélicas britânicas e norte-americanas sendo utilizados pelos soviéticos. A aliança entre Moscou, Londres e Washington, assim, começava a ser para valer, e Hitler, mais uma vez, não sabia o que fazer.

Tudo isso até valeria um canto de Camões.

“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.”

Ninguém saiu incólume de Stalingrado.

Nem Hitler nem Stálin.

Nem o presidente Roosevelt nem o primeiro-ministro Churchill.

Mas, não.

Ou, pelo menos, não tão rapidamente assim.

Wehrmacht ainda dominava porções importantes do front Leste e o Führer ainda acreditava na vitória sobre Stálin. Mas a sua atenção estava dispersa demais. Ele olhava para Hamburgo, clamava por Berlim, sonhava com Moscou, chorava por Paulus, irritava-se com os desarranjos do Reich em Stalingrado, estatelava seus punhos em mesas e fuzilava com olhares o seu Großer Generalstab [estado-maior] enquanto gente da qualidade do general Dwight D. Eisenhower, do general Bernard Montgomery e do general George Patton começavam a dominar o Norte da África e a desembarcar no Sul da Europa.

O Reich – era verdade – estava cercado por todos os lados.

Desde no front Oeste pelos aliados e no Leste pelos soviéticos. Isso era claro desde 1941. Mas em 1942-1943, o primeiro-ministro britânico insistiu na criação de um terceiro front. O front do Mediterrâneo sob a responsabilidade de Londres.

Desde o desembarque na África, para ser justo, que o primeiro-ministro sugeria esse arranjo. Mas o alto-comando norte-americano sempre resistiu. No congraçamento em Casablanca, no Marrocos, em janeiro de 1943, no momento da conferência, o presidente Roosevelt – contrariando o seu chefe de estado-maior – aquiesceu frente à demanda. Dali em diante, os britânicos coordenariam as investidas na região.

Na conferência de Trident, em Washington, no mês de maio seguinte, o alto-comando norte-americano voltou a discutir o assunto. O general George Marshall hesitava muito sobre a capacidade dos britânicos. Mas os diplomatas do Departamento de Estado e “les visiteurs du soir” [conselheiros mais informais] da Casa Branca pensavam diferente. Entendiam que a divisão do front Oeste poderia otimizar a ofensiva.

O presidente Roosevelt os ouviu e, mais uma vez, ignorou os militares. Conseguintemente, no dia 10 de julho de 1943, teve início a operação Husky e o desembarque na Sicília sob a coordenação da gente de Londres.

O diferencial dessa coordenação foi a capacidade da inteligência militar britânica em despistar o Reich. O seu dispositivo Ultra, desde a Government Code and Cypher School, em Blentchley Park, quebrou altos níveis de criptografia do estado-maior alemão e inundou os sistemas de rádio e telex do Reich com informações falsas sobre o local, a data e o modo do desembarque dos aliados. Vários pontos do Mediterrâneo e até a Escandinávia foram falsamente informados. Planos e manobras espetaculares foram indicados. Tudo para confundir os soldados de Hitler, que, quando se aperceberam, os aliados já tinham adentrado o território italiano.

Mas a condução do primeiro-ministro britânico ia além. Ela propunha forçar o rompimento imediato da aliança entre Roma e Berlim para gerar defecções em cascata como ocorrera no armistício dos Búlgaros em setembro de 1918. Mais que isso, ela também sugeria que as penínsulas italianas deveriam virar pontos de apoio para a continuação do bombardeio de espaços estratégicos do Reich, como, por exemplo, as rotas de petróleo entre a Romênia e a Alemanha. Fazendo-se isso, a gente de Londres imaginava que seria possível a dominação do Mar Egeu, a retirada dos nazistas do Sudeste europeu e, quem sabe, a integração da Turquia na investida contra Hitler.

Mas a oposição dos militares norte-americanos voltou a se impor. Não às ideias do primeiro-ministro, consideradas como mera “imaginação”. Mas pelos desdobramentos do desembarque.
Os enviados do presidente Roosevelt queriam a rendição dos italianos mediante um texto curto, sem concessões nem maiores reflexões. Os súditos de His Majesty, por sua vez, desejavam uma longa convenção, com diversos dispositivos e muitas peças de convicção. Essa conversação não foi simples nem amena. Mas antes de ela chegar ao paralelismo, veio o 25 de julho de 1943, a destituição de Mussolini e a aceleração de tudo.

Se a gente do Reich ficou furiosa com o desembarque dos aliados na Itália, os italianos fascistas ficaram ainda mais. Como consequência, iniciaram a recomposição de seus quadros. A começar pelo próprio Duce. O caráter extemporâneo dessa decisão precipitou tudo. Os aliados se obrigaram a conversar com os novos italianos na função. Isso levou os norte-americanos a abandonar a disputa pelo formato do armistício e legar aos britânicos que fizessem como bem entendessem. Mas os italianos, por razões variadas, preferiram o texto curto sugerido por Washington em lugar do texto longo proposto por Londres. E o ato da rendição definitiva foi marcado para ocorrer, formalmente, no dia 3 de setembro de 1943.

Os desdobramentos de tudo isso – feitos como foram feitos, em afogadilho – foram francamente desastrosos.

A Itália foi simbolicamente instantaneamente cortada ao meio. O seu Sul virou um espaço dominado majoritariamente por aliados e o seu Norte, uma zona de influência das forças do Reich. O rei Vítor Emanuel III, cioso da preservação de seus interesses dinásticos, fugiu. O antigo chefe de estado-maior italiano, o general Pietro Badoglio, tornado primeiro-ministro na deposição de Mussolini, também declinou, desertou e desapareceu. Mussolini, por sua vez, intensificou tratativas com Hitler e o convenceu da continuação da aliança nazifascista no Norte da Itália.

Desse modo, os soldados do Reich recuperaram o Duce desde Roma e o conduziram em segurança até a região do Lago di Garda, na confluência de Lombardia, Vêneto e Trentino-Alto Adige, onde foi instaurada a Repubblica Sociale Italiana de Salò – ulteriormente imortalizada por Pier Paolo Pasolini em Salò – ou 120 dias de Sodoma.

Concomitantemente, naqueles inícios de setembro de 1943, as forças britânicas lideradas pelo general norte-americano Mark W. Clark desembarcaram em Messina, seguiram para o Norte de Salerno e foram bloqueadas pelas tropas do general Albert Kesselring. Essa demonstração de força persuadiu o estado-maior alemão a reagir. E, com isso, teve início a operação Axis. Que nada mais foi que um franco acerto de contas com os italianos desertores. Onde a Wehrmacht interceptou imediatamente vinte e cinco divisões italianas em solo italiano, desarmou os seus mais de 600 mil soldados e os enviou para as principais cidades do Reich em solo alemão na qualidade escravos de guerra para trabalhos forçados.

Tudo isso impôs aos diplomatas, militares e homens de influência em todos os núcleos de poder em Roma, Washington e Londres – e, quem sabe, até em Moscou – voltarem às mesas de negociação.

Tudo era simplesmente impressionante.

Quase tudo mudou subitamente após o 3 de setembro de 1943.

Hitler reagira, Mussolini renascera, os grandes dignatários italianos fugiram e os homens de Londres e Washington viam tudo aquilo bestializados. Não tinha jeito. Era imperativo superar a sangria. E, nesse empenho, os aliados voltaram a propor um texto de rendição longo aos moldes inicialmente sugeridos pelos britânicos. Tão logo se acertaram, o novo texto foi confeccionado e assinado pela Comissão Militar dos aliados no 29 de setembro de 1943. Como consequência, os italianos deixaram clara a sua situação e declararam guerra à Alemanha no dia no dia 13 de outubro de 1943.

Mesmo assim, o momento era complexo. Hitler e o Reich ainda dominavam fisicamente porções inteiras da Itália. A superação da linha Gustavo – fortificação entre Nápoles e Roma – ainda demandaria imensos esforços dos aliados. A libertação de Roma ainda figurava como um target distante. E todos sabiam que muito sangue ainda lavaria as vias romanas até se chegar a uma vitória total.

O primeiro-ministro Churchill havia prometido o sangue, o suor e as lágrimas de pelo menos 100 mil soldados britânicos. Mas, ao todo, até a liberação de Roma em junho de 1944 e a libertação de toda a Itália em abril de 1945, a campanha italiana faria mais de 312 mil baixas britânicas e norte-americanas ante 434 mil baixas alemãs. Sem se contar os danos colaterais e as indecências morais como a autorização do envio de praticamente todos os judeus de Roma para Auschwitz pelo receio de a Wehrmacht invadir e destruir o Vaticano. É difícil saber se Deus perdoou o Papa Pio XII por isso.

De toda sorte, aquele outono italiano de 1943 reorientou a geometria da guerra e, nesse sentido, o presidente Roosevelt convocou da Itália para Washington os seus principais generais – Eisenhower, Montgomery, Patton – para a preparação da operação decisiva contra Hitler no front Oeste que seria na França e por Paris.

A França – bem ou mal – era a maior conquista simbólica e moral de Hitler. Liberá-la era um imperativo para os aliados. Mas todos sabiam que não seria simples. O Reich faria de tudo para guardá-la. Toda a geração de alemães que amargou a inconstância da República de Weimar mantinha na memória e na retina os gestos arrogantes, prepotentes e incontinentes do primeiro-ministro francês George Clemenceau nas tratativas da paz após a guerra de 1914-1918. Os alemães nunca desejaram, portanto, simplesmente ocupar a França. Eles sempre quiseram humilhar os franceses. Como seus antepassados tinham feito em 1870-1871.

De toda sorte, o projeto da operação na França foi pensado ao longo de 1943 e o seu primeiro codinome foi Roundup. Mas os sucessos na Itália alteraram as pretensões. O George Marshall mensurou o desembarque na França como algo pessoal, feito o momento mais importante de sua vida. Como decorrência, procurou ampliar ao máximo o entusiasmo de seus comandados. E, para isso, modificou o codinome da operação para Overlord. Soberano. Só e apenas isso.

Overlord foi efetivamente gigantesca. Perto de 156 mil soldados foram mobilizados e treinados para desembarcar na Normandia a partir do 6 de junho de 1944. Outros 195 mil deram apoio no interior de 7 mil navios. E não menos de 15 mil fizeram sobrevoos de reconhecimento pilotando 11 mil e 500 aeronaves de todos os portes saídos de todos os hangares e porta-aviões de todos os aliados.

Nunca se viu nem se fizera uma operação militar assim. Talvez somente na imaginação de Homero. Quem sabe, nos tempos de Spartacus ou das Vidas Paralelas. Talvez nos mundos dos templários, Baudolino, Prestes João. Sabe-se lá. Mas em tempos contemporâneos, a Overlord foi humanamente sem par. Soberana.

Politicamente, ela foi conduzida pelo Supreme Allied Commander [comando supremo das forças aliadas na Europa] sob a direção do general Dwight D. Eisenhower. Como agentes complementares, foram designados o marechal aeronáutico britânico Arthur Tedder, o general norte-americano Bernard Montgomery, o marechal britânico Tradfford Leigh-Mallory e o almirante também britânico Bertram Ramsay. No plano dos contingentes, além dos britânicos e norte-americanos, foram também mobilizados expedicionários canadenses, poloneses e franceses. Mexicanos e brasileiros, ao que consta, ficaram apenas na Itália mesmo.

Tal e qual nos desembarques no Mediterrâneo, o ponto de partida operacional veio do empenho do serviço de inteligência britânico em desinformar o alto-comando do Reich. Dessa vez, os locatários de Blentchley Park inventaram a operação fictícia sob o nome Fortitude e intoxicaram os alemães com notas falsas sugerindo que o desembarque ocorreria em Pas-de-Calais a partir de abril de 1944. Nessa trilha desse engano, a Wehrmacht se moveu substancialmente para essa região francesa e a Luftwaffe bombardeou decididamente todas as suas linhas de acesso e trânsito. Consequentemente, cidades emblemáticas como Rouen, por exemplo, foram pesadamente destruídas e mais de 60 mil franceses perderam as suas vidas nesses bombardeios alemães antes mesmo do início do desembarque dos aliados no 6 de junho de 1944.

Uma vez consciente desses enganos, Hitler se viu novamente furioso. Mas, dessa vez, com agravantes. Mais que na Itália, o volume das tropas desembarcadas na Normandia era simplesmente verdadeiramente extraordinário. E o desespero no Reich também. Para conter, assim, esse mal-estar, restou ao Führer reabilitar aos fundamentos de sua diretiva n. 51 para a manutenção da presença nazista no Oeste da Europa e ampliar a sua batalha retórica para levantar o moral do Reich. Nesse empenho, ele voltou, então, a falar do inimigo “judeu-plutocrático” e a reavivar o fragmento de seu discurso do 1º de janeiro de 1944 que aduzia que, após os feitos italianos, “qualquer outro desembarque dos aliados na Europa fracassaria”.

Mas, pelo que se viu, não foi bem assim.

A partir do dia 12 de junho de 1944, os cinco setores do desembarque dos aliados na Normandia conseguiram ser reunidos e tornados operacionais. A Royal Navy e os United States Marine Corps conseguiram bloquear a movimentação da Kriegsmarine pelos mares e a USA Air Force e a Royal Air Force ampliaram a sua contenção da Wehrmacht e da Luftwaffe por terra e ar. Tudo isso para acelerar o acesso dos aliados no interior do país e pavimentar os melhores caminhos rumo a Paris.

Vendo tudo isso, o Führer decidiu modificar todo o alto-comando Reich no início de julho de 1944 – portanto, menos de um mês após o início do desembarque dos aliados.

Desse modo, ele indicou a troca do marechal Gerd von Rundstedt em favor do general Günther von Kluge para o Oberbefehlshaber West [alto-comando do Oeste da Europa] e depois, em cadeia, ordenou a modificação de todos os seus generais setoriais.

Como reação, os aliados intensificaram as ofensivas. E, não ao acaso, logo nesse início de julho, o general Bernard Montgomery começou a falar em “colossal cracks” para levantar o moral das tropas e o general George Patton, nos quadros da operação Cobra, coordenou um imenso bombardeio às divisões dos blindados alemães Lehr-Panzer. A demonstração de força, com isso, ganhava níveis inimagináveis.

Nisso tudo, em inícios de agosto de 1944, como última aposta para salvaguardar Paris, o mandatário do Reich nomeou o general Dietrich von Choltitz como novo Wehrmachtsbefehlshaber von Groß-Paris [comandante plenipotenciário da Wehrmacht em Paris]. E nesse ato a instrução nazista foi simples, clara, direta e sem arremedos: “[… a capital francesa] não deve cair nas mãos inimigas ou [se cair] somente como um chão de ruínas”.

Entretanto, o leite já ia quase todo derramado. Paris já era palco de intensa sublevação. A presença alemã não era mais sustentada. O regime de Vichy fazia água em todas as frentes. E os aliados já tinham tomado praticamente todas as suas cercanias.

Mesmo assim, o general alemão resistiu heroica e longamente. Nos mais de vinte dias que ficou na função, ele manteve amplas e fartas conversações diretas com Hitler, o Reich e seus aliados. Da mesma forma, que negociou incansavelmente com os enviados de Londres e Washington para tentar remediar a defecção alemã em Paris. Mas não teve jeito. No 25 de agosto de 1944, ele se rendeu e capitulou.

Tudo isso já tinha sido previsto por Berlim. Mesmo assim, os acessos de fúria do Führer foram imoderadamente incontidos. Aquela capitulação era um golpe duríssimo no Reich. Não era o final. Mas, seguramente, deverasmente, o mais letal.

O general Dwight D. Eisenhower sabia disso. Mas na qualidade de comandante geral da Overlord ele sabia mais. Sabia que era imensa a dimensão simbólica, espiritual e sensível daquele momento. Por conta disso, malgrado as forças norte-americanas já estivessem praticamente dentro de Paris na antevéspera da capitulação, ele determinou que os aliados aguardassem as tropas francesas para que os franceses iniciassem a liberação de Paris.

A honra militar jamais supera a honra do gesto político.

E, por isso, no momentum da assinatura do termo de rendição, diante do austero Hotel de Ville da capital francesa, o general Dietrich von Choltitz foi observado pelo silêncio vazio e perplexo do olhar dos determinados soldados franceses da segunda divisão regular de blindados liderada pelo general Philippe Leclerc.

Seguramente o general De Gaulle foi consultado para que o evento fosse feito assim. Certamente o próprio presidente Roosevelt e o primeiro-ministro Churchill também foram participados. Tudo ali, naquele 25 de agosto de 1944, era grande demais para ser tratado como mero detalhe de ofensiva militar. Liberar Paris era o passo mais importante dos aliados em toda a guerra. Todos sabiam do peso daquilo. Especialmente Hitler. Notadamente Stálin. O presidente Roosevelt, o primeiro-ministro Churchill e o próprio general De Gaulle nem se fale.

A queda da França em junho de 1940 fora um evento sem-nome. Nunca se vivenciara tamanha monstruosidade simbólica em nenhuma parte do mundo e em nenhum momento da existência do Ocidente. A capitulação passiva do marechal Pétain ampliou ainda mais a gravidade de tudo aquilo. O que era para ser só dramático virou infame. Um escárnio. A instauração do governo franco-nazista de Vichy instaurou uma chaga instantânea de desonra que nenhuma geração futura conseguiria superar.

O cultuado medievalista Marc Bloch, reagindo a tudo isso, entendeu se tratar de uma “étrange défaite” [estranha derrota]. Onde “Nos chefs n’ont pas su penser cette guerre. En d’autres termes, le triomphe des Allemands fut, essentiellement, une victoire intelectuelle et c’est peut-être ce qu’il y a là de plus grave” [Os nossos líderes não souberam pensar esta guerra. Em outros termos, o triunfo dos alemães foi, essencialmente, uma vitória intelectual e é talvez nisso resida o mais grave].

Essa aguda avaliação dominou interpretações. No entanto, ela obliterou que a França, ao fim das contas, era mundial. Pois o mundo inteiro falava, sonhava e amava em francês. Aquela, portanto, debacle dos franceses ultrapassaria rapidamente as cercanias da França e da Europa para tomar conta do mundo inteiro.

Primeiro com espanto. Depois com emoção. Por fim, em reação.

Sydney Morning Herald, do dia 14 de junho de 1940, sugeriu que, com a queda da França, “a luz da civilização se apagava”. O primeiro-ministro canadense Mackenzie King teria dito no 19 de junho que “le silence e la nuit sont tombés. Nous pleurons la tragédie d’une France brisée… Il est minuit en Europe” [o silêncio e a noite caíram. Nós choramos a tragédia de uma França aquebrantada. É meia-noite na Europa]. O principal jornal de Santiago do Chile da época, o Mercurio, acentuou, no 15 de junho, que “Paris havia entrado na noite”. O seu concorrente em Valparaiso, o South Pacific Mail, no mesmo diapasão, acentuou que “o mundo chora por Paris”.

O estupor geral foi, assim, imenso. A desesperação também.

Mas a queda da França foi bem mais que isso. Ela francamente destroçou o equilíbrio político, geopolítico, geoeconômico, geoestratégico e geodiplomático do planeta.

Os britânicos ficaram com receio das frotas marítimas francesas caírem sob o mando dos nazistas e, por isso, aceleraram o reconhecimento do movimento France Libre do general De Gaulle para tentar impedir que, ao menos, a marinha colonial francesa caísse no domínio do Reich. Do outro lado do mundo, no Japão, desde o 16 de junho de 1940, o príncipe e primeiro-ministro Fuminako Konoe apresentou uma nova orientação do expansionismo japonês a partir da ampliação de alianças com o Reich para mobilizar a marinha francesa da dominação dos mares do Sul no Pacífico.

Nos Estados Unidos, as implicações de tudo isso foram incrivelmente complexas. O Chicago Daily News, do 14 de junho de 1940, escancarava que “Paris falls ! France doomed, Britain next.” Essa premonição foi formatando o imaginário dos norte-americanos, que passaram a notar que o avanço de Hitler na Europa, ao fim das contas, solapava as quatro liberdades wilsonianas – entre elas, a democracia liberal e a liberdade de comércio – que regiam a própria condição de potência mundial dos Estados Unidos. Por conta disso, duas ou três semanas após a queda da França, o presidente Roosevelt liberou 50 destroyers [navios de guerra com dispositivos de interceptação e torpedos] aos britânicos em troca do direito de uso das bases navais de His Majesty em Terra Nova, Bahamas e Bermudas. E, nos meses de agosto e setembro de 1940, ele fez passar no Congresso norte-americano variados embargos sobre o aço, as ferragens e os demais produtos aeronáuticos demandados pelo Japão.

Na União Soviética, não foi diferente. O camarada Kruschev grafaria em suas Memórias que Stálin viveu um momento de transfiguração e ficou irreconhecível com a notícia da França. Ninguém em Moscou morria de amores por Paris. Mas a sua queda era uma sinalização mais que evidente de que o próximo target de Hitler seria Moscou.

Fala-se pouco, mas a queda da França também teve implicações no interior do próprio Eixo. O Duce ficou imediatamente extremamente excitado com a desgraça francesa. A sua excitação foi tamanha que ele mandou agendar um encontro de felicitações em pessoa com o seu homólogo nazista o quanto antes. Sem muitas questões, o encontro foi marcado para o dia 18 de junho de 1940 em Munique. E para Munique Mussolini levou o seu ministro do exterior Gian Galeazzo Ciano e um extenso plano de partilha dos domínios coloniais franceses. O congraçamento do Duce com o Führer foi, como de costume, caloroso, bem perto do carnal. Mas a excitação do primeiro foi interrompida quando o segundo rejeitou fleumaticamente o seu plano de conquista sobre os despojos da França. Contrariado e irritado, Mussolini retornou à Itália meditando sobre alternativas. E as encontrou. E, ainda no trajeto para Roma, convenceu os seus generais a iniciar imediatamente uma “guerra paralela”, autônoma do Eixo e de Hitler, no Mediterrâneo, para tomar o Egito do domínio britânico e avançar sobre a Grécia.

Mas isso não foi tudo.

A deriva francesa conduziu o Führer a convocar os seus aliados da Itália e do Japão para a pactuação de um acordo tripartite para a partilha do mundo. O teor desse acordo, assinado em Berlim, no dia 27 de setembro de 1940, indicava a harmonização da política exterior dos três países – Alemanha, Itália e Japão – para a afirmação uma New World Order na qual os italianos dominariam o sudeste europeu e os alemães, todo o resto da Europa, enquanto aos japoneses caberia desbaratar os norte-americanos da Ásia e seguir a sua expansão contra os chineses e contra os soviéticos. Se isso não bastasse, o ministro Ribbentrop ainda sugeriu a incorporação da Espanha do generalíssimo Francisco Franco nessa reconfiguração do mundo.

Nesse propósito, o Führer foi ter com Franco, no dia 16 de outubro de 1940, na comuna de Hendaye, nos Pirineus. A interação entre os seus diplomatas foi amena, mas conversação tête-à-tête entre eles, Hitler e Franco, foi péssima. A condição do general espanhol para a participação da Espanha naquele arranjo do Reich era a partilha dos domínios coloniais franceses. Mais precisamente do Marrocos (não necessariamente domínio colonial francês, mas historicamente sob sua forte influência) e a região de Orã na Argélia. Essa manobra deixou Hitler exasperado, e o acerto entre eles não avançou.

Revendo a queda da França por esses prismas e meditando sobre as suas implicações planetárias, fica evidente que aquela “étrange défaite” que aludia Marc Bloch fora, sim, “étrange”, mas “étrange” no mundo inteiro.

Internamente, o general De Gaulle foi dos primeiros a afirmar que aquela tragédia era uma continuação de 1914. O primeiro-ministro Churchill seguiu o general francês indicando se tratar de uma imensa noite escura. Alfred Rosenberg sugeriu que Hitler seria o novo “Napoléon de l’Europe” [Napoleão da Europa]. Hannah Arendt seguia considerando aquilo tudo como as fagulhas da grande explosão de 1914. E alguns mais embrenhados de História da França estabeleceriam paralelos daquele malaise terminal francês de 1940 com a derrota francesa na batalha de Pavie, no 24 de fevereiro de 1525, onde o rei François I teria dito que, para a França, “Toute est perdu fors l’honneur” [tudo se perdeu exceto a honra].

De toda sorte, no 14 de junho de 1940, quando a Wehrmacht começou a adentrar a capital francesa, mais de ¾ da população parisiense já tinha desertado. Menos, portanto, de 25% dos seus residentes permaneciam por lá. Por tudo isso, adiante, pouco a pouco, a cidade foi ficando alemã, falando alemão e vivendo ao estilo dos alemães. Monumentos emblemáticos – como a Ópera, a torre Eiffel, o hotel dos Inválidos, o Panteão, a basílica de Sacré-Coeur – passaram a ter o verniz do Reich. Apartamentos particulares e vilas privadas, hotéis e palácios públicos feitos o Bourbon, o Senado, as residências de ministros, imóveis industriais e comerciais, hospitais, cinemas e até prostíbulos [“maisons closes”] receberam o viés alemão.

Ao todo, foram milhões de ocupantes alemães que invadiram Paris e a França desse junho de 1940 até 1944 (1945-1947). Pelos números de Alya Aglan e Robert Frank, desembarcaram na França e, essencialmente, em Paris perto de 80 mil soldados alemães de junho a dezembro de 1940, mais 130 mil até fins de 1943 e mais um milhão e meio até agosto de 1944. Sem contar os milhares de nazistas civis alocados em todas as partes.

Quando, portanto, os aliados começaram a desembarcar na Normandia, no 6 de junho de 1944, era toda essa agonia generalizada que precisavam aplacar.

Complexo. Muito complexo. Difícil.

Complexo a ponto do general Dwight D. Eisenhower mandar os aliados aguardarem a chegada dos blindados do general Philippe Leclerc para adentrar Paris em agosto de 1944 e difícil a ponto do presidente Roosevelt, do primeiro-ministro Churchill e mesmo do camarada Stálin não terem argumentos para negar a reivindicação do general De Gaulle para o ingresso da França como membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas após a guerra.

Por tudo isso, aquele 25-26 de agosto de 1944 foi um momentum verdadeiramente sem par.

Menos de vinte e quatro horas depois da capitulação do general Dietrich von Choltitz, no dia 25 de agosto de 1944, o general De Gaulle adentrou Paris como um general pródigo. Feito, sim, o filho da pátria, enfim, de retorno.

Como dimensionar as suas emoções?

Como mensurar as emoções do homem de carne e osso que habitava as suas vestes de general?

Como recompor as emoções de todas as pessoas, notórias e ordinárias, que confiaram em sua determinação desde a debacle francesa de 1940 até aquela liberação em 1944?

Ninguém foi mais resiliente e consistente que ele ao longo de toda a guerra-mundo. Nem o presidente Roosevelt, tampouco o primeiro-ministro Churchill. As circunstâncias da deriva francesa, da deserção para Londres, da condução da resistência, da peregrinação pela África, da humilhação e do escárnio de todos os lados, notadamente desde Londres e Washington, do descrédito absoluto vindo de Moscou, do desprezo sem tamanho oriundo de Roma, Berlim, Madri e Tóquio, da indiferença desmedida de seus antigos liderados integrados ao governo de Vichy, da construção de solidariedades planetárias, do afeto dos militares dos países latino-americanos, da condescendência dos enviados brasileiros – mais diretamente do embaixador Vasco Leitão da Cunha – na Argélia, da compreensão dos seus antigos alunos africanos, da simples esperança no fim daquele martírio e da clarividência da dimensão profundamente histórica de tudo aquilo fizeram do general De Gaulle uma personagem incontornável de toda a Grande História daquele período. Não foi, assim, ao acaso que jornalistas, fotógrafos, cineastas, autoridades, artistas, militares, políticos e curiosos do mundo inteiro singraram para a capital francesa para acompanhar a sua chegada. Ninguém tinha dúvidas que, com o seu retorno, Paris voltava a ser Paris e a França, a França.

O simbolismo de tudo aquilo era imenso. E, talvez, sem par.

Embebido daquilo tudo, o general De Gaulle desembarcou no Arco do Triunfo em tributo aos resistentes em uniforme, ao soldado desconhecido e a todos os herdeiros de Napoleão. Em seguida, desceu caminhando em modo civil a avenida Champs-Élysées até a praça da Concórdia acenando para os populares em demonstração de deferência ao gigantesco momento histórico que todos ali viviam. Desde a Concórdia, ele seguiu em carro aberto pela rue de Rivoli, passando pelo Lovre, com destino à Notre-Dame-de-Paris. Era preciso agradecer, e ele queria agradecer.

A libertação de Paris tinha sido feita por gente de carne e osso. Mas o general De Gaulle acreditava que aquele sucesso decorria de arranjos divinos e celestiais. Coisa dos céus, coisa de Deus. Mesmo militar, general e herói da Grande Guerra de 1914-1918, Charles de Gaulle era, antes e acima de tudo, um católico fervoroso de fé cristã inquebrantável. Leitor infatigável da Bíblia, ele conhecia os Evangelhos de cor. Não ao acaso, vendo assim, o seu Apelo do 18 de Junho de 1940 teve um tom profético.

Mais le dernier mot est-il dit?” [a última palavra já foi dita?].

L’espérance doit-elle disparaître?” [a esperança está condenada a desaparecer?].

La défaite est-elle définitive?” [a derrota é definitiva?].

Onde todas essas perguntas conduziam a um “Non!” [não] retumbante, teleológico e condutor. Como anunciando a alvorada, o regozijo da vitória e o semblante inesquecível do dia bom.

Isso tudo em 1940. No 18 de junho de 1940. Quando tudo parecia perdido.

Agora, no 25-26 de agosto de 1944, diante da graça da liberação, restava a ele concluir a sua epopeica formulação profética. Que ele fez com:

Paris outragé!” [Paris ultrajada!]

Paris brisé!” [Paris quebrada!]

Paris martyrisé!” [Paris martirizada!].

Mais Paris libéré.” [Mas Paris liberada].

Bonito, excepcional, francês.

Tem oitenta anos.

P.S.: Uma ode ao octogenário da liberação de Roma, gentilmente publicado neste espaço do Jornal da USP, no último 29 de abril, recebeu expressivas manifestações de atenção. Francesco Franz Guerra, Joacyr de Lima, Juan Federer, Maria Eloísa, Paola Giacomoni e Ricardo Ortiz identificaram lapsos, sugeriram correções e aportaram complementos. Nina esteve presente em tudo. O embaixador Paulo Roberto de Almeida republicou a integralidade do artigo em seu prestigioso Diplomatizzando e ainda adicionou um generoso comentário de abertura. Mas a querida professora Cremilda Celeste de Araújo Medina, aqui da USP, e o querido embaixador Rubens Ricupero de tantos lugares roubaram a cena com comentários sinceramente arrebatadores, desconcertantes e iluminados. Tanto que decidi refazer este texto – que, no início, era bem curto – sobre a libertação de Paris para singelamente dedicar a eles dois, Medina e Ricupero, exemplos de vitalidade intelectual para todos nós.

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(As opiniões expressas pelos articulistas do Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.


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