Introdução de Maurício David, meu anjo protetor em matéria de informação de boa qualidade:
Citação do dia (na verdade feita em 1830, mas que nos faz pensar até hoje...) de Simón Bolivar, poucas semanas antes de morrer, de acordo com os comentários publicados pelo embaixador Rubens Ricupero em seu livro de Memórias, recém-publicado pela editora UNESP :
“... lembrei que o historiador Mariano Picón Salas, embaixador da Venezuela no Brasil na época de Juscelino, achava que os latino-americanos tinham começado mal desde a independência. Contrastava o destino trágico de quase todos os próceres hispânicos – fuzilados, enforcados, mortos na prisão ou no exílio – com o dos Founding Fathers norte-americanos, pacificamente expirando em seus leitos, cercados da veneração da pátria.
Desde o princípio, a sensação de fracasso, de que tínhamos queimado a partida, vinha do primeiro e maior dos latino-americanos.
Pouco mais de um mês antes de morrer em Santa Marta, Simón Bolívar concluía na carta que escreveu ao general venezuelano Juan José Flores, primeiro presidente do Equador:
[…] exerci o comando por vinte anos e deles não deduzi mais que poucas conclusões seguras: 1o A América é ingovernável […]. 2o Aquele que serve a uma revolução ara no mar. 3o A única coisa que se pode fazer na América é emigrar. 4o Este país cairá infalivelmente em mãos da multidão desenfreada, para depois passar a tiranetes […] de todas as cores e raças. 5o Devorados por todos os crimes […], os europeus não se dignarão conquistar-nos. 6o Se fosse possível que uma parte do mundo voltasse ao caos primitivo, este seria o último período da América. (Barranquilla, 9.11.1830).
Não era a primeira vez que o Libertador expressava essa opinião. Na véspera de morrer, as circunstâncias lhe pesavam no ânimo: politicamente derrotado, chocado pelos atentados contra sua vida, deprimido, minado pela tuberculose, tudo isso agravou-lhe o julgamento. Não obstante, o libelo se tornaria o padrão para comparar o atraso latino com o progresso dos Estados Unidos, as tiranias degradantes sucedendo-se umas às outras, os degolamentos e atrocidades das guerras civis, as torturas, os desaparecimentos, as ditaduras militares.
De vez em quando, vive-se a ilusão, mais ou menos fugaz, do sucesso. A Argentina teve sua brilhante “era das vacas e do trigo”, foi a 6a maior economia do mundo; o México, a gloriosa Revolução de 1910, de Emiliano Zapata e Pancho Villa; o Uruguai chegou a ser a “Suíça da América do Sul”; o petróleo criou por um tempo a “Venezuela saudita”, o país de maior poder de compra do continente;
o Brasil conheceu, nos anos 1970, o “milagre brasileiro” e na primeira década do século XXI, o Cristo do Corcovado elevando-se aos céus como foguete foi a capa da revista The Economist. O último mito a desmoronar foi o do Chile, “país desenvolvido, uma espécie de Nova Zelândia descolada do resto da América Latina”.
Esse destino ciclotímico do continente não tem nada a ver com o sono eterno das civilizações mortas, ou, no outro extremo, com o dinamismo de chineses e de outras nações asiáticas, imperturbáveis no êxito ininterrompido de crescimento ao longo de quatro ou cinco décadas seguidas. A imagem que melhor nos define é a de uma espécie de montanha russa na qual a euforia embriagante dos pináculos se alterna com vertiginosos mergulhos no vácuo. No máximo se diria que ultimamente as subidas duram cada vez menos, enquanto a travessia dos vales se parece mais à estagnação dos cemitérios.
É por isso que não faz muito sentido indagar qual foi o ponto de inflexão, o momento em que nos perdemos. Simplesmente porque não cessamos de nos perder e de nos reencontrar de tempos em tempos. Cada geração passa incessantemente por vários extravios, uns mais longos que outros.
Para os nascidos no Brasil em fins dos anos 1930, não faltaram sobressaltos e rupturas: o autogolpe do Estado Novo em 1937 seguido de longa e repressiva tirania; o golpe militar contra a ditadura Vargas em 1945; o suicídio de Getúlio em 1954; a ameaça de golpe e contragolpe de 1955; a renúncia de Jânio em 1961; o golpe militar de 1964; o “golpe dentro do golpe” do AI-5 em 1968; a inesperada morte de Tancredo em 1985; o impeachment de Collor em 1992; o de Dilma em 2016, coincidente com a profunda crise moral da Lava Jato, a recessão econômica e o esboroamento da hegemonia de Lula e do PT.
(citação do livro “Memórias”, do embaixador Rubens Ricupero, recém-lançado pela editora da UNESP)
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