domingo, 25 de agosto de 2024

Venezuela: o Brasil no labirinto de Maduro: “Estrada para a salvação”?!?! - Ricardo Seitenfus

Estrada para a salvação

Ricardo Seitenfus

25/08/2024

Um dos episódios mais aviltantes de nossa história diplomática se desenrola atualmente sob o nosso olhar. Não estamos enfrentando um poderoso inimigo, como no caso da Questão Christie no século XIX, mas sim o governo de uma Estado contíguo que nos é simpático e a quem supostamente pretendemos auxiliar. Recebemos como resposta das autoridades venezuelanas unicamente menosprezo e ironia. Nossa diplomacia, até então cantada em prosa e verso, é objeto de chacota internacional.

Abandonamos princípios fundamentais de nosso relacionamento externo e de maneira irresponsável avançamos três sinais perigosos:

1. somos fiadores de acertos cujo respeito independe de nossa vontade (Acordo de Barbados):

2. consideramos assunto doméstico venezuelano o fajuto referendo que pretende anexar grande parte de território pertencente a Guiana (Essequibo);

3. calamos frente a violência contra a oposição e o desrespeito aos Direitos Humanos por parte do governo Maduro.

Fomos longe demais e não vislumbro muito o que fazer a não ser esperar por uma hipotética e improvável reviravolta da posição golpista do governo venezuelano. No entanto, é indispensável extrair lições destes infaustos episódios, para que não repitamos tais desatinos que contrariam nossos interesses e afetam nossa respeitabilidade.

Minha sugestão é simples e objetiva; devemos respeitar de forma inflexível a Doutrina Estrada. Segundo ela, a política exterior dos Estados não deve julgar positiva ou negativamente os governos e as mudanças de governo dos demais países. Tais ações seriam atentatórias a soberania, ao princípio de não intervenção, a solução pacífica das controvérsias e a autodeterminação dos povos.

Elaborada por Genaro Estrada, Ministro das relações exteriores do México (1930), a situação do reconhecimento de governo sugere situação radicalmente distinta ao do reconhecimento de Estado, pois, observando os princípios de soberania e independência, os Estados podem dotar-se livremente de variadas formas governamentais. Novos governos podem conquistar o poder através de quaisquer meios, inclusive os inconstitucionais, sem que tal fato venha ser pertinente para o Direito Internacional. Este exige tão-somente o respeito ao princípio de continuidade dos Estados e o atendimento dos compromissos internacionais.

Tal indiferença é contrariada pela percepção constitutiva. Esta defende o princípio de que um governo resultante de processo inconstitucional (golpe de Estado, revolução, fraude eleitoral) não pode ser reconhecido como representante do Estado, a não ser que tenha sido legitimado por uma assembleia livremente eleita (Doutrina Tobar, Equador, 1907).

A recente prática dos Estados e das organizações internacionais, como a União Europeia (cláusulas búlgara e báltica) e o MERCOSUL (Protocolo de Ushuaia), preocupa-se em atacar a ilegalidade de regimes inconstitucionais a montante, antes que eles se transformem em fatos. Assim, estas organizações possuem em seus estatutos cláusulas democráticas que preveem a suspensão de um país-membro em caso de ruptura do Estado de direito e da ordem constitucional. Estes dispositivos prévios e coletivos afastam a possibilidade de conceder reconhecimento a um governo inconstitucional.

Após vários séculos de prática de reconhecimento de governos, a Inglaterra aderiu, em 1980, à Doutrina Estrada. Ao constatar a inutilidade deste tipo de reconhecimento, Londres considera a origem do novo governo como um assunto interno. Trata-se, portanto, de um fato objetivo que não interroga os terceiros Estados.

Nesta ocasião o Foreign and Commonwealth Office (FCO) divulgou uma nota justificativa, na qual resume os inconvenientes do reconhecimento de governo:

Decidimos deixar de conceder o reconhecimento a governos. O governo britânico reconhece Estados em conformidade com a doutrina internacional comum. Quando ocorre uma mudança inconstitucional de regime num Estado reconhecido, os governos dos outros Estados devem necessariamente considerar que relações manterão com o novo regime e se este se qualifica para ser considerado como o governo do Estado em questão. Muitos dos nossos parceiros e aliados adotam a posição de não reconhecer governos e, portanto, não surge qualquer questão de reconhecimento em tais casos. Pelo contrário, a política seguida por sucessivos governos britânicos foi a de que se deve tomar e anunciar uma decisão “reconhecendo” formalmente o novo governo. Esta prática foi, por vezes, mal interpretada e, não obstante explicações em sentido contrário, o nosso “reconhecimento” foi interpretado como uma aprovação. Por exemplo, em circunstância em que possa haver uma preocupação pública legítima sobre a violação dos Direitos Humanos pelo novo regime, ou sobre a maneira pela qual este chegou ao poder, não tem bastado dizer que o anúncio do “reconhecimento” é simplesmente uma formalidade neutra.

Concluímos então que existem vantagens práticas em seguir a política de muitos outros países de não conceder reconhecimentos a governos. Como eles, continuaremos a decidir, à luz da nossa apreciação, a natureza das nossas relações com regimes que chegam ao poder de forma inconstitucional.

A Doutrina Estrada considera a prática do reconhecimento de governo como ofensiva à soberania dos Estados, além de perigosa à medida que politiza as relações internacionais, que deveriam manter-se no campo estritamente jurídico.

Para os puristas claro está que ela abre amplo leque para o exercício da hipocrisia. Todavia todos sabem que inexiste campo de atividade humana mais fértil à prática da hipocrisia e do engodo que as relações internacionais. Ao contrário do filme de Sam Mendes, Estrada para a perdição, a estratégia da Doutrina Estrada seria a salvação para uma diplomacia que perdeu o rumo.

Professor Universitário, publicou juntamente com José Honório Rodrigues, o livro Uma História Diplomática do Brasil, 1531-1945 (Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1995). É Autor do Direito Internacional Público, Editora Livraria do Advogado, Porto Alegre, quinta edição. Foi Vice-Presidente do Comitê Jurídico Interamericano da OEA.

 

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