segunda-feira, 11 de novembro de 2024

Um ataque frontal à democracia americana - Carmen Lícia Palazzo e Lourival Sant’Anna (O Estado de S. Paulo)

 Carmen Lícia Palazzo transcreveu e introduziu este artigo impecável de Lourival Sant'Anna, sobre o neofascista Trump, amigo e chantageado pelo neoczar Putin.

“Bom resumo da situação, feito pelo Lourival [Sant’Anna].

E acho que devemos nos preocupar, sim, inclusive com o nosso compatriota tosco e com tendências neofascistas. 

Acrescento da minha parte [CLP] o que eu penso, lendo os dados sobre quem votou no Trump e na Kamala:

O fascismo, em qualquer lugar do mundo, chega ao poder pelas vias da democracia, com o voto das pessoas mais simples, com um discurso que "levanta as massas" (li muito sobre como o Mussolini chegou ao poder na Itália). E a maioria do eleitorado nos EUA (e certamente também no Brasil) não é letrada e nem faz grandes considerações mais sofisticadas. Foi o caso dos chamados rednecks norte-americanos. Aí mora o perigo. E o poder de alcance dos discursos eivados de ignorância, de incitação à violência é que dá a muitos uma ideia de pertencimento a um grupo liderado por alguém que é percebido como um macho forte e que conduz a tropa a algum hipotético futuro, fantasiosamente melhor. 

Copio o artigo do Lourival:

"Trump vai eliminar a separação de Poderes e os freios concebidos pelos ‘pais fundadores’

Trump está mobilizado pelo desejo de ver materializada a sua delirante visão de mundo

Por Lourival Sant'Anna

09/11/2024 | 17h00

A volta de Donald Trump à Casa Branca equivale a um terremoto no alicerce da democracia, da diversidade, da valorização da ciência e dos fatos, uma derrota no combate às mudanças climáticas e uma vitória para as ditaduras que contestam a ordem mundial, lideradas por China e Rússia. É a revanche de setores de baixa renda e sem ensino superior contra a elite intelectual.

Trump está mobilizado pelo desejo de ver materializada a sua delirante visão de mundo. Dessa vez, não haverá “adultos na sala” — assessores civis e militares que sutilmente descumpriram suas ordens e heroicamente mitigaram os efeitos desastrosos de seu primeiro mandato. 

Trump conta que em 2016 não conhecia muita gente em Washington — a capital que tanto despreza — e acabou sendo vítima da traição de inúmeros colaboradores. Esse é um dos combustíveis de seu rancor. 

Desta vez, Trump se cerca de pessoas escolhidas não pelo critério da competência ou reputação, mas da lealdade. Ele deixou claro que usará o Departamento de Justiça, equivalente à Procuradoria-Geral da República, para perseguir seus adversários políticos, a começar pela ex-presidente da Câmara Nancy Pelosi. 

Com maioria na Suprema Corte, no Senado e provavelmente na Câmara, e o propósito explícito de colocar o Estado a seu serviço, Trump procurará eliminar a separação de Poderes e os freios e contrapesos concebidos pelos chamados “pais fundadores” no século 18 para criar uma república e evitar a tirania representada, na época, pela monarquia absolutista e colonialista britânica, de cujo jugo acabavam de libertar sua jovem nação. 

Esse sistema, aperfeiçoado ao longo dos séculos para incorporar os direitos das mulheres, dos negros e de outras minorias, pressupõe a existência de uma elite guiada pelos valores do Iluminismo. A falibilidade e o egoísmo humanos eram limitados por um contrato social de busca do bem comum e de patriotismo. Quando esse consenso falhasse, o Congresso, a Justiça, a academia e a imprensa disparariam mecanismos de correção. É esse arcabouço que o trumpismo se dedica a destruir.

Trump e seus seguidores nutrem teorias conspiratórias contra o establishment político, jurídico e estatal, incluindo os órgãos de inteligência, contra a ciência e a imprensa, como cúmplices de um complô para extorquir a população e destruir sua identidade e tradições. 

Com vitória de Trump, republicanos veem sinais de uma nova coalizão de eleitores para se manter no poder

Em seu governo, a saúde deve ficar a cargo do ex-candidato independente à presidência Robert Kennedy Jr., que pretende retirar o flúor da água, responsável pelo quase desaparecimento das cáries; revisar o uso de vacinas e adotar terapias alternativas. Suas teses têm a qualidade daquele lampejo de Trump de injetar detergente no sangue para combater o vírus da covid. 

Kamala perdeu a eleição porque os eleitores de renda e escolaridade mais baixas deram preferência a Trump, e eles são a maioria. Ela teve 47% dos votos dos que ganham menos de US$ 50 mil por ano (27% dos eleitores) e 46% da faixa entre US$ 50 mil e US$ 100 mil (32%). Só ganhou entre os que recebem mais de US$ 100 mil (40% dos eleitores), com 51%, segundo a boca-de-urna da CNN.

Dos eleitores com ensino superior, 55% votaram em Kamala. Mas eles são apenas 43%. Na maioria, que não tem diploma, ela teve 42% dos votos. Kamala recebeu 53% dos votos das mulheres, que representam 53% de quem votou, mas apenas 42% dos homens. Obteve 52% dos votos dos latinos (12% dos votantes) e 85% dos negros (11% dos que compareceram às urnas).

Joe Biden teve mais apoio desses três grupos em 2020, embora Kamala seja mulher, filha de imigrantes e negra. Suas margens não foram suficientes para compensar a preferência dos brancos, que representam 71% dos eleitores, por Trump, que teve 57% dos votos deles. Até mesmo um quarto das mulheres pró-aborto dos Estados-pêndulo da Pensilvânia, Michigan e Wisconsin votou em Trump.

Esses resultados são a expressão da frustração com o alto custo de vida e da sensação de que o poder de compra era maior no governo Trump. Esses sentimentos se combinam com a percepção mais estrutural e profunda de que a elite intelectual, representada por Biden e Kamala, construiu um mundo que lhe favorece.

O livre comércio e a imigração levaram para longe as fábricas que davam empregos de qualidade para os operários e trouxeram os estrangeiros que aceitam trabalhar por salários menores. Trump entendeu isso e se elegeu prometendo elevar as tarifas de importação, deportar e barrar os imigrantes ilegais. Diante disso, a democracia, os direitos individuais, a ciência, o meio ambiente, a ordem internacional baseada em regras e a imprensa parecem distrações de intelectuais."”

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