segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

‘Smart autonomy’ para a política externa brasileira - Leonardo Paz Neves (O Estado de S. Paulo)

 Opinião

‘Smart autonomy’ para a política externa brasileira

Nova abordagem reconhece importância do multilateralismo, mas também vê como crucial aprofundamento da relação com países-chave

Por Leonardo Paz Neves

O Estado de S. Paulo, 23/12/2024


A política externa brasileira foi, nas últimas décadas, caracterizada por uma lógica de autonomia nacional. Sua primeira abordagem, conhecida como autonomia pelo distanciamento, foi adotada durante o regime militar. Ela não indicava uma ruptura com nenhuma das duas superpotências globais à época, mas sim um distanciamento dos projetos de poder ideológicos dos Estados Unidos e da União Soviética. Durante a década de 1990 do pós-guerra fria, a política externa brasileira entra em uma nova fase: a da autonomia pela participação. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso identifica que o fenômeno da globalização era uma “força irresistível”, apostando no projeto multilateral e no fortalecimento dos instrumentos e regimes internacionais.

Já durante os governos do Partido dos Trabalhadores, uma nova lógica foi adotada: a da autonomia pela diversificação, refletindo um novo cenário internacional, com assunção desse grupo emergente ao centro dos espaços de decisão da governança global. A criação do G-20 na virada do século já dava o tom dessa tendência. Mais forte e autoconfiante, o governo do presidente Lula da Silva buscou, sem prejuízo da sua relação com os EUA e com o Ocidente, diversificar seu leque de parcerias internacionais. Fomentou a criação de um conjunto de espaços de diálogo e buscou institucionalizar algumas relações mais estratégicas, como Brics, Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (Ibas) e União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

Com a chegada de Donald Trump à presidência dos EUA, a vitória do Brexit no Reino Unido e o fortalecimento de grupos antiglobalistas, os ventos do multilateralismo e das apostas pela globalização perderam força. A intensificação da rivalidade entre EUA e China, a eclosão da covid-19, a guerra da Ucrânia e o retorno de Trump ao poder nos EUA parecem ter consolidado o que começamos a ver em 2016. Vivemos uma nova era, um retorno das rivalidades geopolíticas em que o combate às novas ameaças internacionais e o desenvolvimento de bens públicos globais ficam submetidos às agendas políticas e de segurança das principais potências.

É nesse novo contexto que a diplomacia brasileira precisa se reinventar de modo inteligente e pragmático para que o País possa mitigar os efeitos dos novos desafios e aproveitar as escassas oportunidades para o desenvolvimento. Assim, propomos uma nova lógica: a da autonomia inteligente (smart autonomy).

Hoje, o Brasil não pode prescindir de ter ótimas relações com a China e os EUA. O Brasil não tem o luxo de escolher. Os EUA são a nossa principal origem e destino de investimento direto externo, é onde está localizada a nossa maior diáspora e é um país com o qual compartilhamos profundos laços culturais. A China é nosso principal parceiro comercial e financiador de nosso superávit externo, é a principal economia do mundo e é o centro nevrálgico da região mais dinâmica do planeta. Ambos os países são indispensáveis para o desenvolvimento do Brasil. Seremos, sem dúvida, pegos no fogo cruzado no futuro (vide pressão americana em relação à adoção da tecnologia 5G). Saber navegar entre os interesses geopolíticos da China e dos EUA, sem alienar nenhum dos dois ou sofrer danos econômicos mínimos, será uma arte.

O multilateralismo está em baixa, mas isso não significa que devamos abandonar um bem tão precioso da sociedade internacional moderna. É apenas através dele que conseguiremos mitigar os principais desafios do nosso tempo, como mudança climática, emergências sanitárias, cibersegurança, etc. No entanto, não deve ser nossa única aposta. Já fizemos essa opção ao apostar tudo na solução multilateral da Rodada Doha, da Organização Mundial do Comércio (OMC), e perdemos o timing para avançar em outras parcerias comerciais. Com isso, vimos nossa participação no comércio internacional ficar estagnada por décadas.

Em paralelo à defesa do multilateralismo, nossa estratégia deve também ser mais agressiva no estabelecimento de parcerias táticas com países que também veem na sua internacionalização um caminho para o seu desenvolvimento, e estão menos presos a interesses geopolíticos. Destaco o caso da Coreia do Sul, que é um país que tem o seu desenvolvimento dependente de sua inserção internacional, além de ter uma economia dinâmica e complementar à brasileira. Possui tecnologia avançada em setores críticos para o nosso desenvolvimento, como comunicação e energia (a exemplo do hidrogênio verde e semicondutores). A relação com a Coreia sofreria menos limitações em razão de questões geopolíticas.

Nesse sentido, a smart autonomy é uma abordagem flexível e pragmática. Ela foca na construção de uma agenda positiva com ambas as potências do nosso tempo, ao mesmo que tenta evadir-se das pressões geopolíticas impostas por elas. A smart autonomy reconhece a importância do multilateralismo, mas ao mesmo tempo vê como crucial o engajamento tático no aprofundamento das relações com alguns países-chave. Deveríamos formular estratégias mais robustas para nos adequar a essa abordagem. Afinal, países como Coreia do Sul, Índia e Indonésia podem ser fundamentais para nosso desenvolvimento futuro.


Opinião por Leonardo Paz Neves

É pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional Fundação Getulio Vargas (FGV NPII)

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