Pós-colonialismo
CULTURA DA LEMBRANÇA
Acho que ainda vivemos a hegemonia de uma memória que mistura a memória de esquerda (construída, sobretudo, por comunistas e nacionalistas de esquerda) e a memória liberal (construída ao longo dos anos 1970, por conta do afastamento político dos liberais em relação à fase mais repressiva do regime). Ela se funda na ideia de uma "resistência democrática" ecumênica e da "sociedade vítima" da ditadura. Eu a chamo de "memória hegemônica", por estar presente na mídia, nas artes, no sistema escolar e nos movimentos sociais, por exemplo. Mas, nos últimos dez anos, esta memória vem sofrendo um forte revisionismo.
Para a esquerda, incluindo aí alguns historiadores, há exagero em ver a "democracia" como eixo universal de todas as resistências e em enxergar a sociedade como "vítima", dado o grande apoio à ditadura, sobretudo nas elites e na classe média. Para a direita, a ditadura foi "branda" e só merece esse nome durante a vigência do AI-5. Para a "extrema direita" foi boa, popular e seu único pecado foi ter sido "branda", permitindo a esquerda sobreviver no sistema político e na sociedade. Este último revisionismo ainda não tem legitimidade no debate público, mas tem crescido na sociedade, sobretudo nas redes sociais.
Esses grupos que pedem a volta da ditadura e da intervenção militar no Brasil foram vistos, inclusive, nas manifestações pró-impeachment da presidente Dilma Rousseff, a partir de 2015.
Como disse, trata-se de uma memória nostálgica da ditadura, como um tempo de abundância e segurança pública. A primeira deve ser relativizada, pois a concentração de renda só piorou, e a última não se sustenta nos fatos, mas, enfim, a memória não precisa ter compromisso efetivo com a realidade passada. Aliás, esta é a diferença entre memória e história. Em minha opinião, esta memória está ligada à cultura autoritária e ao conservadorismo de boa parte da sociedade brasileira, que permaneceram vivos mesmo com o fim do regime militar, ainda que invisíveis, em bolsões com pouca penetração no sistema cultural e na mídia mais sofisticada.
O Brasil preocupa-se de maneira menos intensa com a questão da preservação da memória do que outros países da América do Sul, como Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo?
Não, pois há um debate público e acadêmico sobre o tema no país, além de uma profusão de memoriais, políticas de arquivo muito interessantes, monumentos, entre outras iniciativas. O que ocorre é que tanto a cultura da memória recente (entendida como a memória sobre a ditadura), como a memória histórica no conjunto da sociedade brasileira tem lugares e papéis diferentes, e também mais dispersos, em relação aos países da América do Sul, formando assim identidades menos orgânicas, incoerentes e desconexas. Por exemplo: não é incomum a pessoa ser "contra a ditadura" e ao mesmo tempo achar que "direitos humanos só defendem bandidos", o que, no contexto atual, representa a mescla incoerente de valores de esquerda e de direita.
Por isso temos a sensação de uma "falta de memória" no Brasil. No caso do regime militar, há um conjunto de memórias desencontradas, em conflito: a) uma memória das esquerdas (intelectuais, movimentos, sindicatos); b) uma memória dos liberais (muito forte na imprensa, em algumas entidades civis e no sistema político); c) uma memória militar institucional, tratada por eles próprios como "tabu" (ou seja, "melhor esquecer e não falar sobre isso"); d) uma memória da direita e extrema direita, que até pouco tempo não tinha lugar no espaço público, mas que sempre foi forte nas redes sociais, e agora ocupa lugar até na mídia liberal e no sistema político-partidário.
Qual foi, afinal, o papel da grande imprensa em relação ao golpe de 1964?
A grande imprensa tem um papel ambíguo em relação à memória do golpe e do regime. É notória, assumida e comprovada a participação direta da imprensa liberal na conspiração e na queda de João Goulart. Mas também é notório, embora menos conhecido, o afastamento seletivo da imprensa liberal em relação ao regime, sobretudo após o AI-5, em 1968. Mesmo antes disso, alguns jornais que tinham apoiado o golpe, passaram a criticar a ditadura, a exemplo do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, muito importante à época. Ao se afastar do regime, mesmo sem nenhuma simpatia pela esquerda armada ou desarmada, a imprensa ajudou a construir uma memória crítica, sobretudo condenando a censura e a violação aos direitos humanos, sem falar na crítica ao estatismo na economia a partir do governo Geisel, em meados dos anos 1970.
Mas, a rigor, ela nunca fez uma autocrítica “para valer”, em relação ao Golpe de 1964. A culpa pela eclosão deste evento no país sempre foi atribuída à esquerda trabalhista, "corrupta, subversiva e incompetente". Quanto ao registro das violências de Estado, não se pode atribuir à imprensa omissão em relação a isso, pois ela sempre noticiou casos de tortura, prisões arbitrárias e assassinatos extrajudiciais de militantes e lideranças sociais. A questão da impunidade nada tem a ver com "esquecimento" ou "falta de registro". Foi uma opção política e jurídica das elites brasileiras, com aval passivo de parte das esquerdas anistiadas, em nome da estabilidade política pós-regime militar.
Qual é o papel do cinema e de outras ferramentas culturais na representação do passado no Brasil?
O cinema brasileiro é um dos principais vetores de memória sobre a ditadura, por exemplo. Em sua maioria, os filmes de ficção estão mais alinhados à chamada "memória hegemônica". Nos filmes, via de regra, os militares são "maus", os guerrilheiros são "jovens idealistas", mas frequentemente também são "ingênuos" ou "radicais", a imprensa é "heroica" e a sociedade e o cidadão comum são "vítimas inocentes". Claro, há nuances, mas no geral a tendência é esta.
Nos documentários, o painel da época é mais complexo. Mas dado o revisionismo conservador que predomina no Brasil atual, não duvido que o cinema logo entrará nesta onda. Veja o sucesso de Tropa de Elite que trouxe glamour, com muita competência técnica, diga-se, à violência policial. Quanto à preservação da memória, ou melhor, à construção de uma memória voltada para a promoção da democracia e para a cidadania, o caminho a meu ver é a combinação de políticas educacionais, políticas culturais e um sistema jurídico calcados na defesa da pluralidade ideológica, comportamental e religiosa, nos direitos civis e nos direitos humanos. Dentro destes parâmetros, não haveria nenhuma ameaça à democracia embutida no debate esquerda/direita, aí compreendido seus diversos matizes. Mas, infelizmente, não é assim que o debate atual se apresenta, dando espaço para os discursos de ódio ideológico e para preconceitos de raça e classe.
Marcos Napolitano Foto: Editora ContextoMarcos Napolitano é professor do departamento de História da Universidade de São Paulo e autor de livros como “1964: História do Regime Militar Brasileiro” (editora Contexto, 2014).
"No Brasil, temos a sensação de falta de memória"
Entrevista com o historiador Marcos Napolitano
Revista Humboldt, Instituto Goethe
Março 2025
Quando se fala do regime militar no Brasil (1964-1985), qual é a memória hoje dominante? Acho que ainda vivemos a hegemonia de uma memória que mistura a memória de esquerda (construída, sobretudo, por comunistas e nacionalistas de esquerda) e a memória liberal (construída ao longo dos anos 1970, por conta do afastamento político dos liberais em relação à fase mais repressiva do regime). Ela se funda na ideia de uma "resistência democrática" ecumênica e da "sociedade vítima" da ditadura. Eu a chamo de "memória hegemônica", por estar presente na mídia, nas artes, no sistema escolar e nos movimentos sociais, por exemplo. Mas, nos últimos dez anos, esta memória vem sofrendo um forte revisionismo.
Para a esquerda, incluindo aí alguns historiadores, há exagero em ver a "democracia" como eixo universal de todas as resistências e em enxergar a sociedade como "vítima", dado o grande apoio à ditadura, sobretudo nas elites e na classe média. Para a direita, a ditadura foi "branda" e só merece esse nome durante a vigência do AI-5. Para a "extrema direita" foi boa, popular e seu único pecado foi ter sido "branda", permitindo a esquerda sobreviver no sistema político e na sociedade. Este último revisionismo ainda não tem legitimidade no debate público, mas tem crescido na sociedade, sobretudo nas redes sociais.
Esses grupos que pedem a volta da ditadura e da intervenção militar no Brasil foram vistos, inclusive, nas manifestações pró-impeachment da presidente Dilma Rousseff, a partir de 2015.
Como disse, trata-se de uma memória nostálgica da ditadura, como um tempo de abundância e segurança pública. A primeira deve ser relativizada, pois a concentração de renda só piorou, e a última não se sustenta nos fatos, mas, enfim, a memória não precisa ter compromisso efetivo com a realidade passada. Aliás, esta é a diferença entre memória e história. Em minha opinião, esta memória está ligada à cultura autoritária e ao conservadorismo de boa parte da sociedade brasileira, que permaneceram vivos mesmo com o fim do regime militar, ainda que invisíveis, em bolsões com pouca penetração no sistema cultural e na mídia mais sofisticada.
O Brasil preocupa-se de maneira menos intensa com a questão da preservação da memória do que outros países da América do Sul, como Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo?
Não, pois há um debate público e acadêmico sobre o tema no país, além de uma profusão de memoriais, políticas de arquivo muito interessantes, monumentos, entre outras iniciativas. O que ocorre é que tanto a cultura da memória recente (entendida como a memória sobre a ditadura), como a memória histórica no conjunto da sociedade brasileira tem lugares e papéis diferentes, e também mais dispersos, em relação aos países da América do Sul, formando assim identidades menos orgânicas, incoerentes e desconexas. Por exemplo: não é incomum a pessoa ser "contra a ditadura" e ao mesmo tempo achar que "direitos humanos só defendem bandidos", o que, no contexto atual, representa a mescla incoerente de valores de esquerda e de direita.
Por isso temos a sensação de uma "falta de memória" no Brasil. No caso do regime militar, há um conjunto de memórias desencontradas, em conflito: a) uma memória das esquerdas (intelectuais, movimentos, sindicatos); b) uma memória dos liberais (muito forte na imprensa, em algumas entidades civis e no sistema político); c) uma memória militar institucional, tratada por eles próprios como "tabu" (ou seja, "melhor esquecer e não falar sobre isso"); d) uma memória da direita e extrema direita, que até pouco tempo não tinha lugar no espaço público, mas que sempre foi forte nas redes sociais, e agora ocupa lugar até na mídia liberal e no sistema político-partidário.
Qual foi, afinal, o papel da grande imprensa em relação ao golpe de 1964?
A grande imprensa tem um papel ambíguo em relação à memória do golpe e do regime. É notória, assumida e comprovada a participação direta da imprensa liberal na conspiração e na queda de João Goulart. Mas também é notório, embora menos conhecido, o afastamento seletivo da imprensa liberal em relação ao regime, sobretudo após o AI-5, em 1968. Mesmo antes disso, alguns jornais que tinham apoiado o golpe, passaram a criticar a ditadura, a exemplo do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, muito importante à época. Ao se afastar do regime, mesmo sem nenhuma simpatia pela esquerda armada ou desarmada, a imprensa ajudou a construir uma memória crítica, sobretudo condenando a censura e a violação aos direitos humanos, sem falar na crítica ao estatismo na economia a partir do governo Geisel, em meados dos anos 1970.
Mas, a rigor, ela nunca fez uma autocrítica “para valer”, em relação ao Golpe de 1964. A culpa pela eclosão deste evento no país sempre foi atribuída à esquerda trabalhista, "corrupta, subversiva e incompetente". Quanto ao registro das violências de Estado, não se pode atribuir à imprensa omissão em relação a isso, pois ela sempre noticiou casos de tortura, prisões arbitrárias e assassinatos extrajudiciais de militantes e lideranças sociais. A questão da impunidade nada tem a ver com "esquecimento" ou "falta de registro". Foi uma opção política e jurídica das elites brasileiras, com aval passivo de parte das esquerdas anistiadas, em nome da estabilidade política pós-regime militar.
Qual é o papel do cinema e de outras ferramentas culturais na representação do passado no Brasil?
O cinema brasileiro é um dos principais vetores de memória sobre a ditadura, por exemplo. Em sua maioria, os filmes de ficção estão mais alinhados à chamada "memória hegemônica". Nos filmes, via de regra, os militares são "maus", os guerrilheiros são "jovens idealistas", mas frequentemente também são "ingênuos" ou "radicais", a imprensa é "heroica" e a sociedade e o cidadão comum são "vítimas inocentes". Claro, há nuances, mas no geral a tendência é esta.
Nos documentários, o painel da época é mais complexo. Mas dado o revisionismo conservador que predomina no Brasil atual, não duvido que o cinema logo entrará nesta onda. Veja o sucesso de Tropa de Elite que trouxe glamour, com muita competência técnica, diga-se, à violência policial. Quanto à preservação da memória, ou melhor, à construção de uma memória voltada para a promoção da democracia e para a cidadania, o caminho a meu ver é a combinação de políticas educacionais, políticas culturais e um sistema jurídico calcados na defesa da pluralidade ideológica, comportamental e religiosa, nos direitos civis e nos direitos humanos. Dentro destes parâmetros, não haveria nenhuma ameaça à democracia embutida no debate esquerda/direita, aí compreendido seus diversos matizes. Mas, infelizmente, não é assim que o debate atual se apresenta, dando espaço para os discursos de ódio ideológico e para preconceitos de raça e classe.

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