Trump, protecionismo e a história como farsa
Leonardo Weller*
Folha de S. Paulo, 5/04/2025
É bem capaz que o presidente americano pague um preço amargo pela barafunda saudosista em que está se metendo
Donald Trump chocou o mundo com o surpreendente pacote protecionista anunciado no dia 2 de abril, data por ele batizada de "Dia da Libertação". Segundo a revista britânica The Economist, a tarifa média dos EUA deve se elevar dos atuais 2% para nada menos do que 24%, patamar inconcebível há décadas. O presidente apresenta seu violento tarifaço como um retorno ao passado. Reiteradamente Trump afirma que altas tarifas servirão para reindustrializar seu país, fazendo a América "great again".
Há um fundo de verdade no saudosismo protecionista de Trump. No entanto, como é de praxe com idealizações da história que tentam trazer o passado para o presente, também há muito de engodo e cilada nesta tentativa de guinada autárquica.
A história da política comercial estadunidense é marcada pelo protecionismo. O governo de Washington permaneceu à margem do liberalismo do século 19, quando o Reino Unido liderou um inédito processo europeu de abertura comercial. Na contramão do que se passava no outro lado do Atlântico, os EUA elevaram suas tarifas para quase 50% após a Guerra Civil, nos anos 1860. Política comercial foi, junto com escravidão, um dos temas contenciosos do conflito.
Enquanto o Sul defendia a redução de barreiras às importações, o Norte, em pleno processo de industrialização, almejava reservar o mercado interno para os bens produzidos em suas fábricas. A União nortista ganhou e levou: a escravidão acabou e o protecionismo se recrudesceu.
Segundo o historiador econômico Robert Allen, em seu artigo "Excepcionalismo americano como um problema na história global" ("American exceptionalism as a problem in Global History"), as altas tarifas ajudaram os EUA a se industrializarem. Com vastos recursos naturais, aquela economia tinha vantagens comparativas em commodities, assim como o resto do continente americano. Para Allen, foi graças ao protecionismo que as fábricas estadunidenses resistiram à competição britânica, condição necessária para que, no século 20, assumissem a liderança industrial do mundo.
Uma segunda rodada protecionista ocorreu em 1930, no início da Grande Depressão, quando o presidente Hoover sancionou uma lei que elevava tarifas no intuito desesperado de conter a crise econômica. O resultado foi uma onda de retaliações ao redor do mundo. Estudos históricos recentes mostram que a medida influiu na abrupta queda do comércio global, embora não tenha sido a causa da depressão. De todo modo, o aumento das tarifas foi uma iniciativa errada em uma conjuntura difícil, tornando-a ainda pior.
Os EUA finalmente reduziram suas tarifas no pós-guerra ao comandarem o Acordo Geral de Tarifas e Comércio. A liberalização comercial contribuiu para o crescimento mundial verificado no período, durante o qual economias da Ásia, Europa e América Latina cresceram mais do que a estadunidense. A pujança global era vista com bons olhos em Washington: entendia-se que o sucesso do comércio mundial ajudaria a conter o comunismo. A Guerra Fria não era o único motivo da liberalização do pós-guerra, mas certamente foi um de seus condicionantes mais importantes.
Em retrospecto, até que demorou para que o liberalismo do pós-guerra ruísse, haja vista que o Muro de Berlim caiu há mais de três décadas. Desde então, a China se tornou o motor da indústria mundial e o Ocidente —inclusive os EUA— se desindustrializou.
O protecionismo trumpista tem, portanto, algum cabimento histórico. Mas o retorno ao passado é impossível. Os estadunidenses simplesmente não estão aptos a trabalharem como os chineses —o documentário "American Factory" é uma divertida ilustração deste fato. O tarifaço de Trump penalizará tanto os consumidores quanto o que sobrou da indústria. Após décadas se beneficiando de importados baratos, os EUA não estão preparados para a escassez de bens que virá a reboque, com quebras de cadeias produtivas e alta da inflação.
É de se esperar uma forte reação política interna. No final, é bem capaz que o próprio Trump pague um preço amargo pela barafunda saudosista em que está se metendo –e levando consigo seus compatriotas e o resto do mundo.
*Doutor em história econômica pela London School of Economics, professor da FGV/EESP e autor de "Democracia negociada: política partidária no Brasil da Nova República"
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