Destruição Criativa
O livro mais importante da literatura brasileira contemporânea que não está na lista da Folha de S. Paulo
A publicação recente da lista, feita pela Folha de S. Paulo, dos livros mais importantes dos últimos 25 anos comprova o que falo há anos, desde a época em que lancei A Poeira da Glória: a literatura brasileira se transformou em uma casa vazia, soterrada entre os restos dos arados tortos, dos últimos gozos do mundo, dos racismos estruturais que desintegram a sociedade, dos feminismos que acentuam o machismo e da política que jamais foi para todos. A evidência máxima desta moléstia é um livro que não foi sequer mencionado entre os jurados e o qual, entre as dobras do deserto particular de cada sobrevivente no mundo das letras, certamente fez a ambição dos nossos literatos explodir de inveja ou desprezo.
Trata-se do assombroso e gigantesco siameses, de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira – um romance de 1300 páginas que, ao ser corajosamente publicado por uma editora à margem do mercado editorial (Kotter), apenas faz no nosso vazio intelectual o que, em 1956, Guimarães Rosa provocou com o lançamento praticamente simultâneo de Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas. No caso, recuperar o centro do que realmente importa.
Os superlativos não são um exagero. São os termos mais exatos. Quando um livro deste tipo surge no panorama, não devemos ter medo de elogiá-lo. Há de se ter a obrigação de fazer o que o poeta polonês Adam Zagajewski chamava de “em defesa do fervor”. Pois siameses é, de fato, um romance concebido, criado e escrito no meio do fervor. Porém, um fervor extremamente calculado, construído sobre bases múltiplas que misturam o grotesco, o lírico, o digressivo, o intelectual – e, sobretudo, o diabólico.
Como toda boa trama romanesca (voltaremos em breve a este termo: “trama”), torna-se impossível resumir o assunto do livro. Tentemos: em uma longa conversa entre dois amigos, Osmar (o único que fala) e Procópio (o que fica aparentemente calado o tempo todo), sabemos do triângulo amoroso (ou seria quadrado?) entre o operário metido a intelectual Tomás, sua esposa, a enfermeira Rebeca, e a vendedora Azelina, uma jovem apetitosa que atiça os desejos do primeiro e o coloca em uma verdadeira odisseia do azar. Aparentemente, essa história não nos diz nada – e mal seria uma razão para o leitor comum acompanhá-la se não fosse por um detalhe que Antonio Geraldo menciona constantemente no livro: o que estamos a ler não é uma mera quadrilha a lá Drummond, e sim um resumo histórico dos últimos quarenta anos do que aconteceu, em microcosmo, nesta nação gigantesca que é o Brasil.
Para relacionar esses dois planos, siameses constrói – olhem de novo a palavra – uma trama de símbolos e de metáforas, espalhadas por meio de digressões que visam a despistar o leitor. Por um lado, ela dialoga tanto com a tradição temática do Modernismo Brasileiro de 1922, em seu antropofagismo, ao analisar a brasilidade esteticista, como com a linha do Modernismo Europeu, em especial o romance enciclopédico celebrado por James Joyce em Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) ou pelo poema A Terra Devastada (1922), de T.S. Eliot.
É um fenômeno já descrito por Richard M. Morse em seu magnífico ensaio O Espelho de Próspero, em que a imersão no caos e no anonimato das grandes cidades – ou, no caso de siameses, no interior fronteiriço entre São Paulo e Minas Gerais – somente nos leva a um centro desatado do que deveria ser a “comoção da vida”, em um caleidoscópio que apenas confirma a vastidão de reflexos a nos devorar. Tudo isso converge para uma visão de mundo que acompanhava Antonio Geraldo em seu romance anterior, o celebrado as visitas que hoje estamos (2014), na qual o colapso existencial do país se soma agora ao encontro da raiz de todos os nossos problemas políticos, morais, sexuais e econômicos. Trata-se da nossa atração insaciável por aquilo que hoje podemos chamar sem hesitação de “o contágio da mentira”, a corroer o Brasil – e com certeza o mundo – do início ao fim, do topo até o chão, do chão até o nosso subsolo irracional.
Em siameses, enquanto o leitor acompanha as peripécias de Tomás para seduzir Azelina e enganar Rebeca, com toda a destreza narrativa comunicada por Osmar a Procópio, pouco a pouco as noções de verdade e mentira, fato e ficção, realidade e alucinação tornam-se cada vez mais imprecisas – e elas se amalgamam sem que ninguém (principalmente os personagens) mais saiba onde começa uma e onde termina a outra. Daí o título do romance: tudo está inevitavelmente ligado, numa irmandade macabra que, como o próprio projeto estético de Antonio Geraldo antecipou desde a primeira linha do romance, nos leva desses filhos da mentira ao próprio pai da falsidade.
A ambiguidade que surge desta trama – olhem aí a palavra de novo – é poderosa pois ela se alimenta da própria inovação que o gênero romance apresenta à sociedade onde se insere. Em inglês, o romance é também “novel”, que, se aqui pode ser a novela (um gênero anfíbio assim simplificado por causa do tamanho das suas páginas), é também o novo a surgir toda vez que nos encontramos na casa vazia das palavras sem sentido. Apesar de se cercar de contemporâneos igualmente brilhantes – como Evandro Affonso Ferreira, Juliano Garcia Pessanha, Ana Paula Maia, Erico Nogueira, Joca Reiners Terron, Alberto Mussa, Fernando Monteiro, Antonio Fernando Borges esses dois infelizmente falecidos nos últimos meses), André De Leones, entre outros –, cabe agora a Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira ser quem o capitão desta reviravolta provocada pela nova literatura a surgir do seu livro.
Assim, o que siameses faz para as nossas letras é uma espécie de “destruição criativa”, algo que Hermann Broch antecipou ao analisar o Ulisses de Joyce em um ensaio pioneiro, publicado em 1935. Neste texto, lemos que “Joyce busca com todos os meios do domínio do estilo e da arquitetura literária, com toda a capacidade de abranger a essência e com toda a ironia, que essa cosmogonia que se desdobra por trás do Ulisses resulte ao fim das contas em um sistema platônico, um corte no mundo, que no entanto não é outra coisa a não ser um corte no eu, um eu que é ao mesmo tempo o sum e o cogito, o logos e a vida, novamente se tornando Um, uma simultaneidade em cuja unidade refulge o religioso em si.”
É esta divisão – entre a palavra a descrever a vida e a própria vida – que fraciona cada linha do romance de Antonio Geraldo, para depois ele sempre retornar à unidade (aparentemente platônica) da trama literária. Mesmo assim, o escritor preserva o fervor típico de quem sabe que, para criar, é necessário muitas vezes demolir o que achávamos ser o fundamento de todas as coisas petrificadas do nosso passado e que precisam de um novo sopro. No caso específico de siameses, a religiosidade ocorre sempre na via negativa, pois os personagens caminham num Hades interior onde as paixões (jamais a virtude) são o que comandam as ações de cada um. No fundo, a tragédia de Tomás, Rebeca e Azelina (e talvez a de Osmar) é a tragédia tupiniquim de saber que, como diria o narrador a lá Riobaldo Tatarana, a “impossibilidade do indivíduo é ser ele mesmo, caralho!”.
Assim, neste espelho literário, digno de Próspero, a obra-prima de Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira nos presenteia com um modo para reconstruir o Brasil, esteticamente e moralmente, ao impedir, por meio da grande literatura, que os cães que nos governam continuem a latir, noite e dia, dentro desta nossa casa vazia. Azar da turma da Folha de S. Paulo que não percebeu essa maravilha


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