Lula em Moscou: o erro estratégico de legitimar a guerra de Putin
Luis Favre
7/05/2025
A presença do presidente Lula no desfile militar do Dia da Vitória, em Moscou, marca um dos momentos mais controversos da política externa brasileira. A cerimônia, tradicionalmente dedicada à memória da vitória soviética contra o nazismo, foi transformada por Vladimir Putin em espetáculo de propaganda militar, destinado a legitimar sua guerra de conquista contra a Ucrânia.
Participar deste evento — presidido por um réu do Tribunal Penal Internacional (TPI), responsável por crimes de guerra e a deportação de crianças ucranianas — representa não apenas um desvio da trajetória diplomática brasileira, mas um erro estratégico com impactos negativos tanto no plano nacional quanto internacional, ainda mais pleiteando Brasil um lugar no Conselho de Segurança da ONU.
A lista dos líderes presentes evidencia o isolamento da Rússia. Apenas cerca de 20 chefes de Estado e governo compareceram, em sua maioria ditadores ou autocratas: os presidentes de Belarus, Tajiquistão, Guiné Equatorial, Laos, entre outros. Com exceção dos presidentes da África do Sul e do Brasil, os demais pertencem a regimes repressivos, alguns acusados de crimes contra a humanidade. A cena contrasta com o passado, quando o 9 de maio reunia chefes de Estado das democracias ocidentais e das ex-repúblicas soviéticas em memória do sacrifício coletivo contra o nazismo. Hoje, Putin instrumentaliza essa memória para justificar uma nova forma de imperialismo, com tanques russos atravessando fronteiras e bombardeando cidades.
O gesto de Lula se torna ainda mais grave quando se considera o contexto internacional. Desde 2022, o Brasil condenou repetidamente a invasão da Ucrânia nas Nações Unidas e reafirmou seu compromisso com os princípios da Carta da ONU. Mais ainda: é signatário do Estatuto de Roma, base do Tribunal Penal Internacional. O próprio TPI emitiu mandado de prisão contra Putin, o que obrigaria juridicamente o Brasil a prendê-lo caso ele pisasse em território nacional.
Ao legitimar, por sua presença, um desfile que glorifica essa guerra ilegal, Lula coloca em xeque a coerência da política externa brasileira e enfraquece sua credibilidade junto à comunidade internacional.
Alguns diplomatas do Itamaraty, segundo apurou a imprensa nacional, teriam manifestado desconforto com a decisão presidencial. É sintomático que a visita tenha sido mantida apesar do repúdio silencioso de setores da política externa profissional, tradicionalmente orientados por valores de multilateralismo, solução pacífica de conflitos e defesa dos direitos humanos. Como destaca Marcelo Ninio no jornal O Globo “Lula... de certa forma é um ativo até mais valioso para o presidente russo ter a seu lado na Praça Vermelha. Afinal, entre os cerca de 20 chefes de Estado amigos convidados pela Rússia, o Brasil é uma exceção democrática no elenco de líderes autoritários simpáticos ao Kremlin — do venezuelano Nicolás Maduro a autocratas de ex-repúblicas soviéticas, como Bielorrússia e Azerbaijão. É um risco e tanto para o presidente brasileiro tornar-se um mero figurante de luxo no show de Putin.
Por isso, a viagem de Lula à Rússia para o Dia da Vitória causa divisões no Itamaraty. O cancelamento da presença do primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, deu mais argumentos para a turma do “não”, pois eliminou a hipótese de justificar a vinda de Lula como uma oportunidade de juntar os líderes do grupo Brics original num evento histórico.” (O Globo 06/05/2025).
A crítica é pertinente. Putin não oferecerá investimentos, nem apoio comercial significativo, nem vantagens estratégicas ao Brasil. O que o Kremlin busca é romper o isolamento diplomático imposto pelas sanções, e encontrou na visita de Lula uma oportunidade para manipular o prestígio de um líder popular do Sul Global.
A porta para essa reaproximação foi aberta por Donald Trump. Ao elogiar publicamente Putin como “um grande líder” e anunciar que, caso volte ao poder, encerrará o apoio à Ucrânia, ainda como ex-presidente dos EUA, conferiu legitimidade à posição russa que abertamente apoia agora, servindo de escudo para governos hesitantes como o do Brasil. Lula elogiou Trump por isto. Mas a postura de Trump abertamente inclinada em favor de Putin, não deveria servir de justificativa para um líder democrático de centro-esquerda.
Lula tem trajetória própria. E o Partido dos Trabalhadores, em outros tempos, sustentava uma posição internacionalista muito distinta da atual.
Nos anos 1980, o PT apoiou ativamente o movimento Solidarność na Polônia contra o regime pró-soviético e condenou a repressão ao movimento democrático na Praça Tiananmen, em 1989. Hoje, entretanto, o partido celebra acordos bilaterais com o partido de Putin, partido de direita de um governo que promove perseguições, censura à imprensa, repressão à dissidência e expansão imperialista. Trata-se de uma clara involução.
A presença de Lula na Praça Vermelha, portanto, não é apenas um equívoco tático. Ela expressa uma contradição profunda entre os valores democráticos que o Brasil historicamente defendeu — inclusive na Constituinte de 1988 — e os interesses de um regime que viola sistematicamente esses mesmos valores.
O governo brasileiro deu um tiro no pé. Não terá ganhos objetivos, mas perde prestígio em democracias liberais e fortaleceu a narrativa de que estaria se alinhando a uma nova “Internacional Autoritária”. O gesto pode repercutir negativamente nas relações com a União Europeia — em plena negociação do acordo Mercosul-UE — e com os Estados Unidos, cujos setores mais progressistas viam em Lula um contraponto ao trumpismo. Além disso, a guerra na Ucrânia continua, a resistência ucraniana persiste, e o apoio da sociedade civil internacional a Kiev permanece vigoroso. O Brasil se arrisca a estar do lado errado da história.
Não surpreende que alguns tenham destacado com perplexidade a participação brasileira no evento. Meses atras, o Financial Times já tinha abordado a complexidade da posição internacional do Brasil sob a liderança de Lula, destacando os desafios de sua política externa não alinhada, especialmente em relação à guerra na Ucrânia. O jornal observou que, embora essa postura seja impopular no Ocidente, ela é compartilhada por outras nações em desenvolvimento, como Índia, China, México e África do Sul. O artigo também mencionou críticas internas à política externa de Lula, sugerindo que o Brasil pode estar se afastando de seus parceiros tradicionais. Parece mais flagrante hoje ("Para onde o Brasil está caminhando? Ele mantém uma posição equidistante ou está se voltando para o Leste?", pergunta um alto funcionário europeu. In “Brazil’s global balancing act is trickier than ever”, Nov 13 2024 FT)
O governo brasileiro ainda pode e deve corrigir esse rumo. Reafirmar publicamente o compromisso com o TPI, condenar com clareza a agressão russa e restabelecer a coerência da diplomacia brasileira são passos necessários para que o país volte a ser respeitado como um ator independente, defensor da paz e do direito internacional.
Luis Favre
7/05/2025
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