segunda-feira, 28 de julho de 2025

A navegação venturosa: Ensaios sobre Celso Furtado - Francisco de Oliveira

... Num Brasil e num Nordeste plagados de patrimonialismos, Furtado

entrou como um cavaleiro da razão montado no Rocinante, de uma

aguda inteligência plasmada para desvendar os enigmas de uma socie-

dade que se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela. Alto e austero,

seco de carnes, semblante talhado a foice, como certos tipos do sertão,

o cavaleiro da razão é um Quixote que do alto de sua loucura combate

incansavelmente os moinhos satânicos do capitalismo predador e de

suas classes-abutres...

... Tanto a versão cepalino-furtadiana quanto a marxista de Amin-Emanuel

não contemplaram a possibilidade teórica, que se deu na prática, da estrutu-

ração da divisão internacional do trabalho sob o capitalismo industrial. Em

primeiro lugar, não perceberam o fato inegável de que o estabelecimento

de colônias é, em si mesmo, um ato de rapina, de saque, parte do amplo

processo de acumulação primitiva que, tanto nos futuros países centrais

quanto nas suas colônias, está fundando o capitalismo. Em segundo lugar,

tanto a fragilidade da teoria monetária em sua versão cepalino-furtadiana

como a da versão marxista Amin-Emanuel não conseguiram desvendar o

mistério da “troca desigual”: esta não se dá porque exista desequilíbrio na

relação de trocas, senão porque é a hegemonia do capital financeiro dos

países centrais sobre a produção da “periferia”, como é o caso da América

Latina, que estrutura o próprio sistema de preços internacional, fazendo

com que a moeda nos países dependentes expresse menos o valor da

hora de trabalho e mais sua função na circulação interna do excedente

e sua relação – a taxa cambial – com a moeda hegemônica...

 

 

A NAVEGAÇÃO VENTUROSA

 

 

A navegação venturosa - Ensaios sobre Celso Furtado

Francisco de Oliveira

 

Copyright © Francisco de Oliveira, 2003

 

 

1a

edição: setembro de 2003

Tiragem: 3.000 exemplares

 

SUMÁRIO

 

Apresentação............................................................................ 7

Nota da edição........................................................................ 9

A NAVEGAÇÃO VENTUROSA..................................................... 11

1. O teórico do subdesenvolvimento........................................... 11

2. O demiurgo do Brasil ............................................................. 18

3. Novos exercícios de demiurgia: a questão Nordeste ................ 21

4. Reformas antes que tarde........................................................ 24

5. O desenvolvimentismo e seu espelho: o estagnacionismo........ 27

6. Reformas sem reformadores.................................................... 30

7. Da economia para a filosofia ................................................... 32

8. A economia política de Celso Furtado .................................... 34

CELSO FURTADO E O PENSAMENTO

ECONÔMICO BRASILEIRO......................................................... 39

RETRATO DE FAMÍLIA................................................................ 55

VIAGEM AO OLHO DO FURACÃO: Celso Furtado e o desafio

do pensamento autoritário brasileiro..................................................... 59

Introdução.................................................................................. 59

Estado, organização e Poder Coordenador

 

no pensamento autoritário clássico......................................... 66

A modernidade das questões propostas

pelo pensamento autoritário................................................... 72

Do autoritarismo à “navegação venturosa”:

a resposta de Celso Furtado.................................................... 76

 

FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL: gênese, importância e influ-

ências teóricas.................................................................................... 83

 

Estrutura e conteúdos do livro.................................................... 86

CELEBRAÇÃO DA DERROTA E SAUDADE DO FUTURO ....... 103

SUBDESENVOLVIMENTO: fênix ou extinção?............................ 109

Uma elaboração original........................................................... 109

Redefinindo o subdesenvolvimento .......................................... 111

Qual é o novo enigma: subdesenvolvimento globalizado? ......... 114

UM REPUBLICANO EXEMPLAR ............................................... 117

LUCIDEZ INCANSÁVEL ............................................................ 123

Causas da pobreza .................................................................... 124

Chave weberiana....................................................................... 125

Os sertões................................................................................... 127

BIBLIOGRAFIA.......................................................................... 129

Obras de Celso Furtado............................................................ 129

Obras sobre Celso Furtado ....................................................... 137

Resumo biográfico.................................................................... 140

 

APRESENTAÇÃO

 

Este livro não necessita de dedicatória, pois ela está explicitamente

declarada. Reúne um conjunto de artigos que escrevi sobre Celso Fur-

tado, a começar pelo primeiro deles, uma introdução que fiz – da qual

roubei o título para este livro – a uma antologia do que eu considerava,

à época, seus melhores textos, com exclusão, evidentemente, dos seus

clássicos livros. A ordem dos artigos e ensaios é simplesmente cronoló-

gica, na seqüência em que os escrevi e que foram publicados. Não há

qualquer outra organização. É simples como pão, e espero que os leitores

o encontrem gostoso como pão.

Minha geração e as que se sucederam devem quase tudo a Celso

Furtado, dos pontos de vista da formação, da interpretação do Brasil,

da posição sobre as grandes questões nacionais e de sua inflexível, incor-

ruptível e antifarisaica paixão republicana. Houve um pequeno intermezzo

em que a contribuição de Furtado foi escanteada como superada pelos

ideólogos do neoliberalismo, mas a economia e a política brasileira pa-

garam um alto preço por esse descaso. Hoje, as questões propostas por

Furtado voltam em toda a sua atualidade dramática.

No meu caso e no de milhões de meus, e seus conterrâneos, deve-

mos-lhe também essa paixão tranqüila e racional – pode haver melhor

paradoxo? – pelo Nordeste. Gostaria que todos os brasileiros também

lhe devessem essa paixão e tenho certeza de que sua obra e sua ímpar

figura de homem público e intelectual ajudou a desfazer preconceitos

que antes se nutriam contra os nordestinos, embora essa não seja, ainda,

a regra geral.

Não cabe comentar cada um dos artigos e ensaios, nem apontar ao

leitor suas razões. Neles procurei ressaltar o melhor da contribuição in-

telectual de Celso Furtado, o que inclui, necessariamente, discordâncias,

na maior parte dos casos pontuais, e uma ou outra divergência maior.

Assim deve ser o “diálogo sobre as grandezas” de Furtado, sem subser-

viências, diante de um dos grandes intelectuais brasileiros de todos os

tempos, e um republicano exemplar, como ressaltei em um dos artigos.

Num Brasil e num Nordeste plagados de patrimonialismos, Furtado

entrou como um cavaleiro da razão montado no Rocinante, de uma

aguda inteligência plasmada para desvendar os enigmas de uma socie-

dade que se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela. Alto e austero,

seco de carnes, semblante talhado a foice, como certos tipos do sertão,

o cavaleiro da razão é um Quixote que do alto de sua loucura combate

incansavelmente os moinhos satânicos do capitalismo predador e de

suas classes-abutres.

Ao olhar para trás e contemplar o passado, é bom ver que, ao lado

do Anjo da História de Klee e Benjamin, não houve apenas acumulação

de desastres; ergue-se outro que dá sentido à vida e talvez por isso não

é menos nostálgico e trágico: o de que fomos também testemunhas de

uma criação que dignificou nosso tempo. É para testemunhar que este

livro se oferece a Celso Furtado e aos leitores.

 

Francisco de Oliveira

São Paulo, inverno de 2003

 

Nota da edição

 

Para facilitar a consulta dos leitores às obras de Celso Furtado, incluí-

mos no final deste volume as referências bibliográficas completas dos

livros de sua autoria (limitadas às edições brasileiras ou em língua por-

tuguesa), bem como uma seleção de ensaios, artigos, teses e entrevistas

 

publicados. O leitor também encontrará nesse anexo referências a uma

grande quantidade de textos sobre o economista e sua obra, lançados

no Brasil e no exterior.

As notas de rodapé numeradas são do autor; as notas indicadas com

asterisco são da editora e nelas, sempre que possível, acrescentamos

referências sobre as obras citadas por Francisco de Oliveira ao longo

de seus ensaios. As excessões restringem-se aos livros de Celso Furtado,

cuja bibliografia encontra-se a partir da página 129 deste volume.

 

A NAVEGAÇÃO VENTUROSA*

 

1. O teórico do subdesenvolvimento

 

A vasta, abrangente e diversificada obra intelectual de Celso Furtado

representa um marco na história e na produção das ciências sociais em

escala mundial. Nenhum outro autor contribuiu tanto para constituir as

economias e sociedades subdesenvolvidas em objeto específico de estudo.

Para ser rigoroso, é preciso dizer que Raúl Prebisch, criador da Comissão

Econômica para a América Latina (Cepal) e mentor daquela brilhante

equipe de que Furtado foi um dos mais eminentes membros, é, de certa

forma, no famoso relatório da Cepal de 1949, seu predecessor mais

importante. Mas Prebisch jamais alcançou a dimensão de Furtado como

cientista social, tendo-se restringido ao que se convencionou chamar “ciência

econômica”, e não podendo, pela sua condição de burocrata internacional,

empreender sequer a crítica de sua própria produção.

 

No vácuo da produção marxista, que desde Lenin, com O desenvolvi-

mento do capitalismo na Rússia ** – rigorosamente um estudo da forma-

 

* Introdução à obra Economia. (Coleção Grandes Cientistas Sociais – Celso Furtado)

São Paulo, Ática, 1983.

** Vladimir I. Lenin. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de formação

do mercado interno para a grande indústria. São Paulo, Abril Cultural, 1982 (Série

Os Economistas).

 

12 Francisco de Oliveira

 

ção de uma economia subdesenvolvida –, parou e ficou repetindo velhas

arengas, Furtado emerge nos anos 1950, a partir dos estudos da Cepal,

inaugurando o que veio a ser chamado “método histórico-estrutural”,

adequado para explicar a formação dessas economias e sociedades no

sistema capitalista para além da dominação colonial. O nome dado ao

tipo de análise, menos que um método, é simultaneamente uma denúncia

da falência do método neoclássico, a-histórico, então soberano na análise

econômica, e um reconhecimento da necessidade de historicizá-la. O vigor

 

de sua contribuição reside precisamente na tentativa de descobrir a especi-

ficidade da formação dessas economias e sociedades subdesenvolvidas. Sua

 

marca característica é o abandono do clichê do colonialismo em que havia

naufragado a teorização marxista depois do brilhante e definitivo estudo desse

autor – abertura de caminhos teóricos – lido como “aplicação” da teoria

marxista e paradoxalmente um dos menos conhecidos e estudados trabalhos

 

desse tema. Por outro lado, a teorização furtadiana recusa também o ve-

lho e surrado esquema da divisão internacional do trabalho comandada

 

pelas “vantagens comparativas”, de inspiração ricardiana e malbaratamento

neoclássico e marginalista.

O esquema teórico furtadiano explica as economias e as sociedades

 

subdesenvolvidas mediante uma inversão da teoria das vantagens compa-

rativas. Estas convertem-se numa espécie de “desvantagens reiterativas”: é

 

a partir da história da América Latina – cuja inserção na divisão interna-

cional do trabalho do capitalismo mercantil em expansão na Europa dos

 

séculos XVI e XVII funda as diversas economias latino-americanas – que

se produz a teorização. A especialização dos países da América Latina na

produção de bens primários converte-se em desvantagem na medida em que

os países centrais do sistema capitalista passam a ser predominantemente

produtores e exportadores de manufaturados. Por meio da desigualdade

 

na relação de trocas do comércio internacional, instaura-se um mecanis-

mo de sucção do excedente econômico latino-americano por parte das

 

economias dos países centrais, que é ao mesmo tempo a reiteração, para

os primeiros, da condição de produtores de bens primários.

Essa ligação-reiteração dos setores agroexportadores das economias

latino-americanas depende, sempre, da demanda dos países centrais.

 

Internamente, o setor exportador é o setor “moderno”, que se comporta

dinamicamente quando assim o favorece a demanda externa, mas que pela

contínua deterioração dos termos de intercâmbio vê roubada uma parte

substancial do excedente que produz. Essa ligação-roubo não dá ao setor

exportador um papel interno transformador das estruturas econômicas

e sociais. Ele se faz “moderno” em si mesmo, mas não se faz “moderno”

 

para o outro setor, o “atrasado”, representado pela larga produção agrí-

cola de subsistência, que na vulgarização da teoria foi depois assimilado

 

à agricultura em geral. O setor exportador é especializado na produção

de algumas poucas mercadorias primárias, que tanto podem ser o café,

a carne ou o trigo, ou na produção mineral (caso, sobretudo, do Chile).

E tanto ele quanto as cidades devem ser alimentados pela agricultura de

subsistência, o setor “atrasado” da economia, que tem dinâmica própria,

infensa ao que se passa no setor “moderno”, exportador. Está de pé o

“dual-estruturalismo”.

A tese cepalino-furtadiana da dualidade distingue-se da constatação

geral e histórica do “desenvolvimento desigual e combinado” da tradição

marxista (Lenin e Trotski) precisamente porque para Furtado e a Cepal

o desenvolvimento é desigual – tanto pelas diferenças de grau e ritmo

de desenvolvimento quanto pelas diferenças qualitativas entre setores

que se desconhecem entre si –, mas não é combinado. Os dois setores

não têm relações articuladas: o setor “atrasado” é apenas um obstáculo

ao crescimento do setor “moderno”, principalmente porque, por um

lado, não cria mercado interno e, por outro, não atende aos requisitos

da demanda de alimentos. Nem sequer a clássica função de “exército de

reserva” o “atrasado” cumpre em relação ao “moderno”: seria de supor

que os excedentes populacionais produzidos pela lei interna de população

 

do setor “atrasado” contribuíssem para, aumentando a oferta de mão-

de-obra no setor “moderno”, rebaixar os salários reais, o que lhe realçaria

 

as funções na acumulação do “moderno”. Mas a tese dual-estruturalista

postula que o atraso do “atrasado”, ao elevar os preços dos alimentos,

 

contribui para elevar os salários do “moderno” e, por essa razão, conver-

te-se em obstáculo à expansão do “moderno”.

 

Dessa “contradição sem negação” entre o “moderno” e o “atrasado”

A navegação venturosa 13

 

14 Francisco de Oliveira

 

nasce uma das mais importantes teses cepalino-furtadianas: a da inflação

estrutural, que é, por sua vez, uma das contribuições mais notáveis ao

pensamento econômico. Esta, a inflação, é estrutural num duplo sentido:

em primeiro lugar, a contínua deterioração dos preços de intercâmbio

entre as economias centrais e as economias latino-americanas obriga estas

 

a aumentarem constantemente a produção em volume físico para com-

pensar a queda dos preços internacionais das mercadorias que exportam;

 

em segundo lugar, a inelasticidade da oferta agrícola de alimentos pro-

duzidos pelo “atrasado” – uma conclusão fundada num aspecto peculiar

 

à economia chilena, o qual ocorre conjunturalmente em alguns outros

países latino-americanos – eleva os preços e instaura uma corrida entre

preços e salários no setor “moderno”.

 

O remédio – a teorização cepalino-furtadiana faz-se em função da pro-

posição de políticas – para sair do círculo vicioso do subdesenvolvimento

 

é industrializar-se. Utilizando-se de um vasto e eclético arsenal, que vai

 

desde um protecionismo à List – não o compositor-virtuose, mas o dou-

trinador da cartelização alemã do século XIX – até Lord Keynes – cujo

 

multiplicador do emprego explica como a industrialização gera maior

quantidade e diversidade de empregos e, por isso, eleva a renda, pondo em

ação um mecanismo realimentador –, a proposição de Furtado e da Cepal

converte-se na mais poderosa ideologia industrialista e, ao contrário do

destino de muitas ideologias, influencia e determina políticas concretas,

agendas de ação dos vários governos latino-americanos. Com a proposta

de industrialização, Furtado pretende solucionar todos os problemas: por

um lado, corta o nó górdio da relação que deteriora continuamente os

preços de intercâmbio, pois supõe – uma de suas falhas – que, se os países

latino-americanos passassem agora a exportar produtos manufaturados

 

em vez de bens primários, a relação de intercâmbio se modificaria favo-

ravelmente a eles; por outro, põe fim à inflação estrutural que advém da

 

insuficiência dinâmica do setor externo, derivada precisamente da relação

de intercâmbio desfavorável. Diante do problema da oposição entre o

“moderno” e o “atrasado”, que enfraquece o mercado interno e gera

uma inflação de custos e preços desfavorável à expansão do “moderno”

(que será agora a indústria), propõe-se a reforma agrária: ela é o elemento

 

viabilizador da industrialização, pois, ao mesmo tempo que cria mercado

interno, aumenta a oferta de alimentos, desbloqueando a acumulação por

impedir o aumento dos salários nominais.

 

O dual-estruturalismo não é de modo nenhum uma teorização vul-

gar. Sua força residiu, sobretudo, em apontar a emergência de processos

 

que não eram perceptíveis nem importantes para as outras vertentes

teóricas. A dualidade “atrasado-moderno” escapa, por exemplo, tanto à

a-historicidade do método neoclássico quanto ao mecanicismo das

“etapas” e dos modos de produção seqüenciais próprios do stalinismo

convertido em oráculo do marxismo. Mas ele também – inclusive porque

teoriza contemporaneamente os próprios processos que percebe – mascara os

novos interesses de classe que se põem agora como “interesses da Nação”. O

protecionismo à List vem tarde demais: as burguesias e seus interesses,

funcionando como estruturadores de Estados nacionais, são também

uma construção dos séculos XVIII e XIX.

 

Tendo em conta sua raiz keynesiana, decorrente não apenas da utili-

zação das contas nacionais, o esquema cepalino-furtadiano já demonstra,

pelo menos, uma primeira inconsistência teórica. Dificilmente se poderia

esperar igual agregação de valor entre a produção de bens primários e a

produção de bens manufaturados. E é essa agregação diferenciada que

funda, na aparência, essa “troca desigual”. Do ponto de vista de sua for-

malização, um exame mais acurado levaria a não postular essa aparência,

pois a base da teoria da contabilidade social repousa exatamente sobre

a noção de valor agregado, e não seria de esperar que economias com

divisões sociais do trabalho tão desiguais produzissem o mesmo valor

agregado; os preços internacionais e a relação de trocas deles decorrentes

são, em parte, um fenômeno diretamente derivado dessa diferenciação

da divisão social do trabalho e da agregação de valor por ela produzida.

A versão marxista, que desde logo não é a que postulam Furtado

e a Cepal, a “troca desigual” de Samir Amin e Arghiri Emanuel, é ainda

mais contraditória. Esses teóricos deveriam voltar a Marx, pois ele é ex-

plícito: o comércio internacional, ou, em outras palavras, a estruturação

pelo capitalismo industrial de uma divisão internacional do trabalho, não

se dá mediante troca desigual de valores. A famosa comparação entre o valor

produzido por um artesão chinês e o que resulta do emprego da força de

trabalho de um operário inglês é suficientemente clara a respeito.

Tanto a versão cepalino-furtadiana quanto a marxista de Amin-Emanuel

não contemplaram a possibilidade teórica, que se deu na prática, da estrutu-

ração da divisão internacional do trabalho sob o capitalismo industrial. Em

primeiro lugar, não perceberam o fato inegável de que o estabelecimento

de colônias é, em si mesmo, um ato de rapina, de saque, parte do amplo

processo de acumulação primitiva que, tanto nos futuros países centrais

quanto nas suas colônias, está fundando o capitalismo. Em segundo lugar,

tanto a fragilidade da teoria monetária em sua versão cepalino-furtadiana

como a da versão marxista Amin-Emanuel não conseguiram desvendar o

mistério da “troca desigual”: esta não se dá porque exista desequilíbrio na

relação de trocas, senão porque é a hegemonia do capital financeiro dos

países centrais sobre a produção da “periferia”, como é o caso da América

Latina, que estrutura o próprio sistema de preços internacional, fazendo

com que a moeda nos países dependentes expresse menos o valor da

hora de trabalho e mais sua função na circulação interna do excedente

e sua relação – a taxa cambial – com a moeda hegemônica. Logo, tentar

medir pelos preços a relação desigual entre as produções centrais e as

das “periferias” não apenas não permite entender a questão como não

faz nenhum sentido. Aqui, uma vez mais, o fetiche do dinheiro tornou

opaco o processo real. E vale lembrar que o caminho aberto por Lenin

com a teoria do imperialismo fornecia, pelo menos, as pistas teóricas iniciais para o aprofundamento da questão. Que a versão cepalino-furtadiana não incorporasse essas pistas é, até certo ponto, compreensível, mas que as chamadas versões marxistas da “troca desigual” também não as tenham incorporado é simplesmente lamentável. Neste caso, a teoria do imperialismo deu um passo atrás, tornando-se uma versão pobre que não desvendou os mecanismos reais, voltando, monocordiamente, aos

chavões do colonialismo e do neocolonialismo.

 

A rigor, por não ter incorporado a teorização de Marx sobre a inter-

nacionalização do capital, Furtado e a Cepal vão perceber algum tempo depois que a industrialização preconizada foi realizada na grande maioria dos países latino-americanos por meio de associações com o capital. 


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