... Num Brasil e num Nordeste plagados de patrimonialismos, Furtado
entrou como um cavaleiro da razão montado no Rocinante, de uma
aguda inteligência plasmada para desvendar os enigmas de uma socie-
dade que se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela. Alto e austero,
seco de carnes, semblante talhado a foice, como certos tipos do sertão,
o cavaleiro da razão é um Quixote que do alto de sua loucura combate
incansavelmente os moinhos satânicos do capitalismo predador e de
suas classes-abutres...
... Tanto a versão cepalino-furtadiana quanto a marxista de Amin-Emanuel
não contemplaram a possibilidade teórica, que se deu na prática, da estrutu-
ração da divisão internacional do trabalho sob o capitalismo industrial. Em
primeiro lugar, não perceberam o fato inegável de que o estabelecimento
de colônias é, em si mesmo, um ato de rapina, de saque, parte do amplo
processo de acumulação primitiva que, tanto nos futuros países centrais
quanto nas suas colônias, está fundando o capitalismo. Em segundo lugar,
tanto a fragilidade da teoria monetária em sua versão cepalino-furtadiana
como a da versão marxista Amin-Emanuel não conseguiram desvendar o
mistério da “troca desigual”: esta não se dá porque exista desequilíbrio na
relação de trocas, senão porque é a hegemonia do capital financeiro dos
países centrais sobre a produção da “periferia”, como é o caso da América
Latina, que estrutura o próprio sistema de preços internacional, fazendo
com que a moeda nos países dependentes expresse menos o valor da
hora de trabalho e mais sua função na circulação interna do excedente
e sua relação – a taxa cambial – com a moeda hegemônica...
A NAVEGAÇÃO VENTUROSA
A navegação venturosa - Ensaios sobre Celso Furtado
Francisco de Oliveira
Copyright © Francisco de Oliveira, 2003
1a
edição: setembro de 2003
Tiragem: 3.000 exemplares
SUMÁRIO
Apresentação............................................................................ 7
Nota da edição........................................................................ 9
A NAVEGAÇÃO VENTUROSA..................................................... 11
1. O teórico do subdesenvolvimento........................................... 11
2. O demiurgo do Brasil ............................................................. 18
3. Novos exercícios de demiurgia: a questão Nordeste ................ 21
4. Reformas antes que tarde........................................................ 24
5. O desenvolvimentismo e seu espelho: o estagnacionismo........ 27
6. Reformas sem reformadores.................................................... 30
7. Da economia para a filosofia ................................................... 32
8. A economia política de Celso Furtado .................................... 34
CELSO FURTADO E O PENSAMENTO
ECONÔMICO BRASILEIRO......................................................... 39
RETRATO DE FAMÍLIA................................................................ 55
VIAGEM AO OLHO DO FURACÃO: Celso Furtado e o desafio
do pensamento autoritário brasileiro..................................................... 59
Introdução.................................................................................. 59
Estado, organização e Poder Coordenador
no pensamento autoritário clássico......................................... 66
A modernidade das questões propostas
pelo pensamento autoritário................................................... 72
Do autoritarismo à “navegação venturosa”:
a resposta de Celso Furtado.................................................... 76
FORMAÇÃO ECONÔMICA DO BRASIL: gênese, importância e influ-
ências teóricas.................................................................................... 83
Estrutura e conteúdos do livro.................................................... 86
CELEBRAÇÃO DA DERROTA E SAUDADE DO FUTURO ....... 103
SUBDESENVOLVIMENTO: fênix ou extinção?............................ 109
Uma elaboração original........................................................... 109
Redefinindo o subdesenvolvimento .......................................... 111
Qual é o novo enigma: subdesenvolvimento globalizado? ......... 114
UM REPUBLICANO EXEMPLAR ............................................... 117
LUCIDEZ INCANSÁVEL ............................................................ 123
Causas da pobreza .................................................................... 124
Chave weberiana....................................................................... 125
Os sertões................................................................................... 127
BIBLIOGRAFIA.......................................................................... 129
Obras de Celso Furtado............................................................ 129
Obras sobre Celso Furtado ....................................................... 137
Resumo biográfico.................................................................... 140
APRESENTAÇÃO
Este livro não necessita de dedicatória, pois ela está explicitamente
declarada. Reúne um conjunto de artigos que escrevi sobre Celso Fur-
tado, a começar pelo primeiro deles, uma introdução que fiz – da qual
roubei o título para este livro – a uma antologia do que eu considerava,
à época, seus melhores textos, com exclusão, evidentemente, dos seus
clássicos livros. A ordem dos artigos e ensaios é simplesmente cronoló-
gica, na seqüência em que os escrevi e que foram publicados. Não há
qualquer outra organização. É simples como pão, e espero que os leitores
o encontrem gostoso como pão.
Minha geração e as que se sucederam devem quase tudo a Celso
Furtado, dos pontos de vista da formação, da interpretação do Brasil,
da posição sobre as grandes questões nacionais e de sua inflexível, incor-
ruptível e antifarisaica paixão republicana. Houve um pequeno intermezzo
em que a contribuição de Furtado foi escanteada como superada pelos
ideólogos do neoliberalismo, mas a economia e a política brasileira pa-
garam um alto preço por esse descaso. Hoje, as questões propostas por
Furtado voltam em toda a sua atualidade dramática.
No meu caso e no de milhões de meus, e seus conterrâneos, deve-
mos-lhe também essa paixão tranqüila e racional – pode haver melhor
paradoxo? – pelo Nordeste. Gostaria que todos os brasileiros também
lhe devessem essa paixão e tenho certeza de que sua obra e sua ímpar
figura de homem público e intelectual ajudou a desfazer preconceitos
que antes se nutriam contra os nordestinos, embora essa não seja, ainda,
a regra geral.
Não cabe comentar cada um dos artigos e ensaios, nem apontar ao
leitor suas razões. Neles procurei ressaltar o melhor da contribuição in-
telectual de Celso Furtado, o que inclui, necessariamente, discordâncias,
na maior parte dos casos pontuais, e uma ou outra divergência maior.
Assim deve ser o “diálogo sobre as grandezas” de Furtado, sem subser-
viências, diante de um dos grandes intelectuais brasileiros de todos os
tempos, e um republicano exemplar, como ressaltei em um dos artigos.
Num Brasil e num Nordeste plagados de patrimonialismos, Furtado
entrou como um cavaleiro da razão montado no Rocinante, de uma
aguda inteligência plasmada para desvendar os enigmas de uma socie-
dade que se ergueu pela desigualdade e se alimenta dela. Alto e austero,
seco de carnes, semblante talhado a foice, como certos tipos do sertão,
o cavaleiro da razão é um Quixote que do alto de sua loucura combate
incansavelmente os moinhos satânicos do capitalismo predador e de
suas classes-abutres.
Ao olhar para trás e contemplar o passado, é bom ver que, ao lado
do Anjo da História de Klee e Benjamin, não houve apenas acumulação
de desastres; ergue-se outro que dá sentido à vida e talvez por isso não
é menos nostálgico e trágico: o de que fomos também testemunhas de
uma criação que dignificou nosso tempo. É para testemunhar que este
livro se oferece a Celso Furtado e aos leitores.
Francisco de Oliveira
São Paulo, inverno de 2003
Nota da edição
Para facilitar a consulta dos leitores às obras de Celso Furtado, incluí-
mos no final deste volume as referências bibliográficas completas dos
livros de sua autoria (limitadas às edições brasileiras ou em língua por-
tuguesa), bem como uma seleção de ensaios, artigos, teses e entrevistas
publicados. O leitor também encontrará nesse anexo referências a uma
grande quantidade de textos sobre o economista e sua obra, lançados
no Brasil e no exterior.
As notas de rodapé numeradas são do autor; as notas indicadas com
asterisco são da editora e nelas, sempre que possível, acrescentamos
referências sobre as obras citadas por Francisco de Oliveira ao longo
de seus ensaios. As excessões restringem-se aos livros de Celso Furtado,
cuja bibliografia encontra-se a partir da página 129 deste volume.
A NAVEGAÇÃO VENTUROSA*
1. O teórico do subdesenvolvimento
A vasta, abrangente e diversificada obra intelectual de Celso Furtado
representa um marco na história e na produção das ciências sociais em
escala mundial. Nenhum outro autor contribuiu tanto para constituir as
economias e sociedades subdesenvolvidas em objeto específico de estudo.
Para ser rigoroso, é preciso dizer que Raúl Prebisch, criador da Comissão
Econômica para a América Latina (Cepal) e mentor daquela brilhante
equipe de que Furtado foi um dos mais eminentes membros, é, de certa
forma, no famoso relatório da Cepal de 1949, seu predecessor mais
importante. Mas Prebisch jamais alcançou a dimensão de Furtado como
cientista social, tendo-se restringido ao que se convencionou chamar “ciência
econômica”, e não podendo, pela sua condição de burocrata internacional,
empreender sequer a crítica de sua própria produção.
No vácuo da produção marxista, que desde Lenin, com O desenvolvi-
mento do capitalismo na Rússia ** – rigorosamente um estudo da forma-
* Introdução à obra Economia. (Coleção Grandes Cientistas Sociais – Celso Furtado)
São Paulo, Ática, 1983.
** Vladimir I. Lenin. O desenvolvimento do capitalismo na Rússia: o processo de formação
do mercado interno para a grande indústria. São Paulo, Abril Cultural, 1982 (Série
Os Economistas).
12 Francisco de Oliveira
ção de uma economia subdesenvolvida –, parou e ficou repetindo velhas
arengas, Furtado emerge nos anos 1950, a partir dos estudos da Cepal,
inaugurando o que veio a ser chamado “método histórico-estrutural”,
adequado para explicar a formação dessas economias e sociedades no
sistema capitalista para além da dominação colonial. O nome dado ao
tipo de análise, menos que um método, é simultaneamente uma denúncia
da falência do método neoclássico, a-histórico, então soberano na análise
econômica, e um reconhecimento da necessidade de historicizá-la. O vigor
de sua contribuição reside precisamente na tentativa de descobrir a especi-
ficidade da formação dessas economias e sociedades subdesenvolvidas. Sua
marca característica é o abandono do clichê do colonialismo em que havia
naufragado a teorização marxista depois do brilhante e definitivo estudo desse
autor – abertura de caminhos teóricos – lido como “aplicação” da teoria
marxista e paradoxalmente um dos menos conhecidos e estudados trabalhos
desse tema. Por outro lado, a teorização furtadiana recusa também o ve-
lho e surrado esquema da divisão internacional do trabalho comandada
pelas “vantagens comparativas”, de inspiração ricardiana e malbaratamento
neoclássico e marginalista.
O esquema teórico furtadiano explica as economias e as sociedades
subdesenvolvidas mediante uma inversão da teoria das vantagens compa-
rativas. Estas convertem-se numa espécie de “desvantagens reiterativas”: é
a partir da história da América Latina – cuja inserção na divisão interna-
cional do trabalho do capitalismo mercantil em expansão na Europa dos
séculos XVI e XVII funda as diversas economias latino-americanas – que
se produz a teorização. A especialização dos países da América Latina na
produção de bens primários converte-se em desvantagem na medida em que
os países centrais do sistema capitalista passam a ser predominantemente
produtores e exportadores de manufaturados. Por meio da desigualdade
na relação de trocas do comércio internacional, instaura-se um mecanis-
mo de sucção do excedente econômico latino-americano por parte das
economias dos países centrais, que é ao mesmo tempo a reiteração, para
os primeiros, da condição de produtores de bens primários.
Essa ligação-reiteração dos setores agroexportadores das economias
latino-americanas depende, sempre, da demanda dos países centrais.
Internamente, o setor exportador é o setor “moderno”, que se comporta
dinamicamente quando assim o favorece a demanda externa, mas que pela
contínua deterioração dos termos de intercâmbio vê roubada uma parte
substancial do excedente que produz. Essa ligação-roubo não dá ao setor
exportador um papel interno transformador das estruturas econômicas
e sociais. Ele se faz “moderno” em si mesmo, mas não se faz “moderno”
para o outro setor, o “atrasado”, representado pela larga produção agrí-
cola de subsistência, que na vulgarização da teoria foi depois assimilado
à agricultura em geral. O setor exportador é especializado na produção
de algumas poucas mercadorias primárias, que tanto podem ser o café,
a carne ou o trigo, ou na produção mineral (caso, sobretudo, do Chile).
E tanto ele quanto as cidades devem ser alimentados pela agricultura de
subsistência, o setor “atrasado” da economia, que tem dinâmica própria,
infensa ao que se passa no setor “moderno”, exportador. Está de pé o
“dual-estruturalismo”.
A tese cepalino-furtadiana da dualidade distingue-se da constatação
geral e histórica do “desenvolvimento desigual e combinado” da tradição
marxista (Lenin e Trotski) precisamente porque para Furtado e a Cepal
o desenvolvimento é desigual – tanto pelas diferenças de grau e ritmo
de desenvolvimento quanto pelas diferenças qualitativas entre setores
que se desconhecem entre si –, mas não é combinado. Os dois setores
não têm relações articuladas: o setor “atrasado” é apenas um obstáculo
ao crescimento do setor “moderno”, principalmente porque, por um
lado, não cria mercado interno e, por outro, não atende aos requisitos
da demanda de alimentos. Nem sequer a clássica função de “exército de
reserva” o “atrasado” cumpre em relação ao “moderno”: seria de supor
que os excedentes populacionais produzidos pela lei interna de população
do setor “atrasado” contribuíssem para, aumentando a oferta de mão-
de-obra no setor “moderno”, rebaixar os salários reais, o que lhe realçaria
as funções na acumulação do “moderno”. Mas a tese dual-estruturalista
postula que o atraso do “atrasado”, ao elevar os preços dos alimentos,
contribui para elevar os salários do “moderno” e, por essa razão, conver-
te-se em obstáculo à expansão do “moderno”.
Dessa “contradição sem negação” entre o “moderno” e o “atrasado”
A navegação venturosa 13
14 Francisco de Oliveira
nasce uma das mais importantes teses cepalino-furtadianas: a da inflação
estrutural, que é, por sua vez, uma das contribuições mais notáveis ao
pensamento econômico. Esta, a inflação, é estrutural num duplo sentido:
em primeiro lugar, a contínua deterioração dos preços de intercâmbio
entre as economias centrais e as economias latino-americanas obriga estas
a aumentarem constantemente a produção em volume físico para com-
pensar a queda dos preços internacionais das mercadorias que exportam;
em segundo lugar, a inelasticidade da oferta agrícola de alimentos pro-
duzidos pelo “atrasado” – uma conclusão fundada num aspecto peculiar
à economia chilena, o qual ocorre conjunturalmente em alguns outros
países latino-americanos – eleva os preços e instaura uma corrida entre
preços e salários no setor “moderno”.
O remédio – a teorização cepalino-furtadiana faz-se em função da pro-
posição de políticas – para sair do círculo vicioso do subdesenvolvimento
é industrializar-se. Utilizando-se de um vasto e eclético arsenal, que vai
desde um protecionismo à List – não o compositor-virtuose, mas o dou-
trinador da cartelização alemã do século XIX – até Lord Keynes – cujo
multiplicador do emprego explica como a industrialização gera maior
quantidade e diversidade de empregos e, por isso, eleva a renda, pondo em
ação um mecanismo realimentador –, a proposição de Furtado e da Cepal
converte-se na mais poderosa ideologia industrialista e, ao contrário do
destino de muitas ideologias, influencia e determina políticas concretas,
agendas de ação dos vários governos latino-americanos. Com a proposta
de industrialização, Furtado pretende solucionar todos os problemas: por
um lado, corta o nó górdio da relação que deteriora continuamente os
preços de intercâmbio, pois supõe – uma de suas falhas – que, se os países
latino-americanos passassem agora a exportar produtos manufaturados
em vez de bens primários, a relação de intercâmbio se modificaria favo-
ravelmente a eles; por outro, põe fim à inflação estrutural que advém da
insuficiência dinâmica do setor externo, derivada precisamente da relação
de intercâmbio desfavorável. Diante do problema da oposição entre o
“moderno” e o “atrasado”, que enfraquece o mercado interno e gera
uma inflação de custos e preços desfavorável à expansão do “moderno”
(que será agora a indústria), propõe-se a reforma agrária: ela é o elemento
viabilizador da industrialização, pois, ao mesmo tempo que cria mercado
interno, aumenta a oferta de alimentos, desbloqueando a acumulação por
impedir o aumento dos salários nominais.
O dual-estruturalismo não é de modo nenhum uma teorização vul-
gar. Sua força residiu, sobretudo, em apontar a emergência de processos
que não eram perceptíveis nem importantes para as outras vertentes
teóricas. A dualidade “atrasado-moderno” escapa, por exemplo, tanto à
a-historicidade do método neoclássico quanto ao mecanicismo das
“etapas” e dos modos de produção seqüenciais próprios do stalinismo
convertido em oráculo do marxismo. Mas ele também – inclusive porque
teoriza contemporaneamente os próprios processos que percebe – mascara os
novos interesses de classe que se põem agora como “interesses da Nação”. O
protecionismo à List vem tarde demais: as burguesias e seus interesses,
funcionando como estruturadores de Estados nacionais, são também
uma construção dos séculos XVIII e XIX.
Tendo em conta sua raiz keynesiana, decorrente não apenas da utili-
zação das contas nacionais, o esquema cepalino-furtadiano já demonstra,
pelo menos, uma primeira inconsistência teórica. Dificilmente se poderia
esperar igual agregação de valor entre a produção de bens primários e a
produção de bens manufaturados. E é essa agregação diferenciada que
funda, na aparência, essa “troca desigual”. Do ponto de vista de sua for-
malização, um exame mais acurado levaria a não postular essa aparência,
pois a base da teoria da contabilidade social repousa exatamente sobre
a noção de valor agregado, e não seria de esperar que economias com
divisões sociais do trabalho tão desiguais produzissem o mesmo valor
agregado; os preços internacionais e a relação de trocas deles decorrentes
são, em parte, um fenômeno diretamente derivado dessa diferenciação
da divisão social do trabalho e da agregação de valor por ela produzida.
A versão marxista, que desde logo não é a que postulam Furtado
e a Cepal, a “troca desigual” de Samir Amin e Arghiri Emanuel, é ainda
mais contraditória. Esses teóricos deveriam voltar a Marx, pois ele é ex-
plícito: o comércio internacional, ou, em outras palavras, a estruturação
pelo capitalismo industrial de uma divisão internacional do trabalho, não
se dá mediante troca desigual de valores. A famosa comparação entre o valor
produzido por um artesão chinês e o que resulta do emprego da força de
trabalho de um operário inglês é suficientemente clara a respeito.
Tanto a versão cepalino-furtadiana quanto a marxista de Amin-Emanuel
não contemplaram a possibilidade teórica, que se deu na prática, da estrutu-
ração da divisão internacional do trabalho sob o capitalismo industrial. Em
primeiro lugar, não perceberam o fato inegável de que o estabelecimento
de colônias é, em si mesmo, um ato de rapina, de saque, parte do amplo
processo de acumulação primitiva que, tanto nos futuros países centrais
quanto nas suas colônias, está fundando o capitalismo. Em segundo lugar,
tanto a fragilidade da teoria monetária em sua versão cepalino-furtadiana
como a da versão marxista Amin-Emanuel não conseguiram desvendar o
mistério da “troca desigual”: esta não se dá porque exista desequilíbrio na
relação de trocas, senão porque é a hegemonia do capital financeiro dos
países centrais sobre a produção da “periferia”, como é o caso da América
Latina, que estrutura o próprio sistema de preços internacional, fazendo
com que a moeda nos países dependentes expresse menos o valor da
hora de trabalho e mais sua função na circulação interna do excedente
e sua relação – a taxa cambial – com a moeda hegemônica. Logo, tentar
medir pelos preços a relação desigual entre as produções centrais e as
das “periferias” não apenas não permite entender a questão como não
faz nenhum sentido. Aqui, uma vez mais, o fetiche do dinheiro tornou
opaco o processo real. E vale lembrar que o caminho aberto por Lenin
com a teoria do imperialismo fornecia, pelo menos, as pistas teóricas iniciais para o aprofundamento da questão. Que a versão cepalino-furtadiana não incorporasse essas pistas é, até certo ponto, compreensível, mas que as chamadas versões marxistas da “troca desigual” também não as tenham incorporado é simplesmente lamentável. Neste caso, a teoria do imperialismo deu um passo atrás, tornando-se uma versão pobre que não desvendou os mecanismos reais, voltando, monocordiamente, aos
chavões do colonialismo e do neocolonialismo.
A rigor, por não ter incorporado a teorização de Marx sobre a inter-
nacionalização do capital, Furtado e a Cepal vão perceber algum tempo depois que a industrialização preconizada foi realizada na grande maioria dos países latino-americanos por meio de associações com o capital.
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