domingo, 27 de julho de 2025

Entrevista Otaviano Canuto: Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento - Carolina Nalin (O Globo)

 Entrevista Otaviano Canuto

Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento
Otaviano Canuto, ex vice-presidente do Banco Mundial e do BID
Por Carolina Nalin — Rio de Janeiro
O Globo, 17 de julho de 2025

Países não vão se dobrar, diz ex-vice do Banco Mundial sobre críticas dos EUA a sistemas públicos de pagamento
Ataque ao Pix serve mais para marcar posição de Trump contra meios de pagamento geridos por governos, avalia Otaviano Canuto

A menção indireta ao Pix no relatório americano que embasa a abertura de uma investigação contra o Brasil por supostas práticas comerciais desleais, reflete uma posição mais ampla dos Estados Unidos contra plataformas públicas de pagamento digital. Essa é a avaliação do economista Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial e membro senior do Policy Center for the New South.
Para Canuto, a ofensiva americana mais parece um desejo de marcar posição contra modelos públicos de pagamento digital do que alguma ação efetiva. Sobretudo num momento em que o debate nos EUA caminha mais para a ampliação de criptoativos do que para a adoção de moedas digitais, como hoje discutem países como Brasil e União Europeia.
— Não me parece que há qualquer expectativa de que os países se dobrem a esse respeito — afirmou Canuto, em entrevista ao GLOBO.
O documento do Escritório do Representante de Comércio dos EUA (USTR), enviado na noite de terça-feira, argumenta que o Brasil estaria favorecendo sistemas de pagamento desenvolvidos pelo governo em detrimento de soluções de companhias americanas, como Google Pay e Apple Pay.
O governo americano já tinha feito críticas semelhantes ao QRIS, sistema de pagamento em tempo real do governo da Indonésia. A plataforma foi citada como barreira comercial em relatório que precedeu a aplicação de tarifa de 32% sobre as importações do país asiático, até a chegada do consenso bilateral de 19%.
Desde o acordo entre os dois países, porém, não foi revelado se o país indonésio fará mudanças no seu sistema de pagamento ou se as críticas americanas foram só elemento de pressão. A seguir, veja a íntegra da entrevista:
Como avalia o peso e a gravidade dessa nova investigação comercial dos EUA contra o Brasil?
Essa investigação é grave, entre outros motivos, porque claramente o caso brasileiro tem sido diferente dos demais em alguns aspectos.
A forma das tarifas recíprocas tinha tarifas para os diversos países refletindo o saldo comercial dos países com os EUA. Quem tinha déficit, era aplicado os 10%. E quem tinha superávit, com tarifas proporcionais ao percentual dos saldos comerciais. Além, claro, das tarifas setoriais e das coisas específicas com Canadá e México. Mas a carta recente enviada ao Brasil não encaixa nesse padrão. Temos déficit com eles.
O problema é essa especificidade no tato com o Brasil. Nos outros casos, onde há margem clara de negociação, entram questões econômicas, com um capítulo à parte para restrições em relação à China. Mas há um padrão comercial. No mínimo, há um indicativo do caminho perseguido pelo Trump, que é: mesmo quando tem negociação, reduz-se a carga. A agenda é principalmente no que diz respeito à comércio e compras.
Mas não é o caso do Brasil. E é evidente que o conteúdo da carta [enviada pelos EUA justificando o tarifaço de 50% "em parte devido aos ataques insidiosos do Brasil contra eleições livres", em referência ao julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro no STF] não teria concessão pelo governo brasileiro.
A novidade foi a abertura desse processo com base na seção 301 301 da lei de comércio de 1974 dos EUA, que dá margem e abre investigações num campo mais amplo.
E quais podem ser os desdobramentos práticos desse processo? Tarifas, cotas, sanções comerciais?
Eu não creio que venha a ser usado para tarifas adicionais, mas sim para tentar justificar os atuais 50%. É como se o caso do Brasil aqui fosse um teste que pode ser utilizado em outros países, em outros casos. (...) Há uma peculiaridade no tratamento do Brasil pelo Trump.
E Trump é imprevisível. Mesmo durante a campanha presidencial e no início do atual mandato, era claro que ele iria impor medidas ao Brasil. A própria tarifa recíproca anunciada em abril já indicava esse caminho. Mas essa carta e a abertura da investigação que reforça a carta é uma agenda própria peculiar.
E essa menção indireta ao Pix no documento faz algum sentido? Trump já tinha feito algo parecido com a Indonésia.
Ele incluiu o tema do comércio digital e dos serviços eletrônicos de pagamento, o que foi interpretado como uma crítica indireta ao Pix porque o sistema brasileiro reduz o espaço de atuação de plataformas de pagamento privadas.
A investigação foi construída com base em queixas de empresas americanas que operam transações digitais e se sentem ameaçadas pelo avanço do Pix. Mas o Brasil não está em negociação para eliminar o Pix. E a questão é mais ampla.
A União Europeia, por exemplo, é mais favorável à criação de redes de pagamento digitais com base em uma futura moeda digital emitida pelo Banco Central Europeu. Já nos Estados Unidos, não existe projeto para uma moeda digital oficial. Pelo contrário, o debate por lá gira mais em torno da ampliação dos ativos cripto.
Isso pode ter aparecido como desejo, refletindo essa posição mais geral dos EUA contra sistemas públicos de pagamento eletrônico, mas não há qualquer expectativa de que os países se dobrem. E se Trump tivesse obtido alguma vitória nesse sentido (como no acordo com a Indonésia, em que o QRIS também foi citado como barreira), isso teria vindo a público.
Além disso, o documento que iniciou a investigação menciona até a implementação de políticas anticorrupção como um dos pontos questionados. É um escopo muito amplo. (...) É como se o caso do Brasil fosse um teste que pode ser usado em outros países, em outros contextos. Mas há uma peculiaridade no tratamento dado ao Brasil pelo Trump.
Eles também mencionam propriedade intelectual...
O que eu duvido no estado das artes que possam encontrar justificativas a esse respeito - a não ser ameaça de mexer com essa proteção como parte de retaliação brasileira. Isso tem que ser mencionado.
E o que o Brasil pode fazer?
Temos alguns aspectos a considerar nas retaliações caso venham a ser anunciadas. Toda guerra comercial provoca danos tanto no país alvo quanto no país que inicia as tarifas.
Se os Estados Unidos impuserem restrições às exportações brasileiras, o Brasil pode reagir com medidas que afetem produtos americanos. Mas é preciso lembrar que boa parte do setor produtivo brasileiro depende de importações vindas dos EUA. Ou seja, tem o risco de "tiro no pé", e isso precisa ser considerado.
É um cenário diferente do que acontece entre EUA e China. O governo americano não levou em conta a forte dependência que tem, assim como o restante do mundo, de minerais críticos e terras raras. Essas matérias-primas estão até espalhadas globalmente, mas a China concentrou a capacidade de processamento. Hoje, responde por cerca de 80% a 90% do beneficiamento mundial dessas substâncias, essenciais para a produção de bens digitais.
Não por acaso, o primeiro instrumento da China foi restringir o acesso a esses materiais, o que gerou uma pressão doméstica junto a Trump por parte de quem produz bens digitais nos EUA porque esses materiais são essenciais.
Nós não temos isso. Nem processadores de nióbio nós somos. Tudo bem que a carne bovina exportada para os EUA é importante na produção de hambúrgueres… Mas assim como o abacate mexicano é um item importante da dieta familiar de boa parte dos EUA, isso não é à rigor comparável. Não temos muita margem.
Então a resposta do Brasil é limitada?
As referências feitas à atuação do Supremo Tribunal Federal ou a decisões relacionadas ao ex-presidente Jair Bolsonaro não são passíveis de negociação. O Brasil vai ter que mandar uma carta, vai ter que continuar dando uma resposta, pelo menos simbólica. Mas, ao mesmo tempo, o grau de centralidade na subjetividade do próprio Trump é claro. E as instâncias governamentais dos EUA vão esperar o que o presidente americano diz a respeito.
É provável que não sobre ao Brasil outra opção a não ser “ter que engolir”. A margem de resposta retaliatória é muito limitada.
É claro, o Brasil vai contestar (a investigação). Aí pode haver uma conversa sobre cada um dos pontos, mas isso não seria parte de um acordo no estilo como foi com Indonésia. Eu estou pessimista de que na última hora (Trump) vai recuar e adiar de novo (as tarifas).

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