segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Luis Fernando Veríssimo: o cronista e a sociedade em movimento - Paulo Baía

Luis Fernando Veríssimo: o cronista e a sociedade em movimento

             * Paulo Baía 

Há cronistas que se confundem com o próprio país, como se sua pena tivesse nascido para traduzir o Brasil em pequenas doses de humor, acidez e erudição. Luis Fernando Veríssimo pertence a essa linhagem rara. Ele não escreveu apenas sobre fatos, escreveu sobre modos de vida, sobre os gestos mínimos que revelam as estruturas invisíveis da sociedade. Fez da crônica um território de investigação antropológica, mas com a leveza da literatura e a pontaria do jornalismo. Ler Veríssimo é compreender que a crítica social pode vir embalada em ironia, que a observação política pode se esconder em diálogos cotidianos e que a história de um país cabe em poucas linhas se o olhar for suficientemente afiado.

Veríssimo dominava a arte de olhar para o detalhe e, a partir dele, alcançar a totalidade. O machismo que se expunha em uma frase desajeitada no jantar de família, o autoritarismo que se infiltrava em discursos oficiais, a desigualdade que se manifestava na diferença entre quem aguardava na fila e quem furava o protocolo, tudo virava matéria de análise. A crônica, em suas mãos, tornava-se uma espécie de etnografia cotidiana, um retrato sociológico daquilo que não costuma aparecer nas estatísticas, mas molda de forma profunda a experiência coletiva. No Brasil, onde a política se mistura ao humor involuntário dos governantes e onde a tragédia social convive com a criatividade cultural, Veríssimo encontrou material inesgotável. Ele podia partir de um episódio trivial para desmontar, com sutileza, as pretensões das elites, a arrogância dos poderosos, a insensibilidade dos que tratam a desigualdade como se fosse destino natural. Mas fazia isso sem panfletarismo, com a elegância de quem sabia que uma ironia bem colocada é mais devastadora do que longas diatribes. O riso que provocava era sempre acompanhado de incômodo, porque fazia ver o que estava naturalizado.

A política foi um de seus alvos mais constantes. Acompanhou governos, denunciou contradições, riu dos discursos solenes que escondiam farsas e apontou o abismo entre o que se dizia em Brasília e o que se vivia nas ruas. Ao mesmo tempo, nunca deixou de lado a dimensão cultural, entendendo que literatura, cinema, televisão e música são arenas de disputa simbólica. O cronista que comentava jazz com paixão era o mesmo que desnudava os mecanismos do preconceito ou ironizava o consumismo vazio. Essa multiplicidade é a marca de um intelectual que não se restringiu a um campo específico, mas atravessou fronteiras com a naturalidade de quem reconhece a complexidade da vida social.

O humor, em Veríssimo, nunca foi superficial. Era método de análise, recurso sociológico, arma política. Seu humor revelava as incoerências do cotidiano e expunha a hipocrisia das instituições. Era um riso que desorganizava certezas, que desmontava verdades aparentemente inabaláveis. Ao rir de si mesmo, ao rir dos brasileiros, convidava à reflexão crítica sobre o que somos e sobre o que fingimos ser. O humor, nesse sentido, era tão político quanto qualquer discurso inflamado, mas infinitamente mais eficaz, porque alcançava leitores de todos os tipos. O cronista foi também um memorialista, não apenas no sentido de resgatar lembranças pessoais, mas de registrar a memória coletiva de um país em transformação. Cada texto guardava o espírito de uma época, servindo de arquivo para futuras gerações entenderem como se discutiam certos temas, como se pensava a democracia, como se elaboravam as tensões entre tradição e mudança. Ler Veríssimo hoje é reencontrar o Brasil em movimento, perceber os debates que se transformaram e os preconceitos que resistiram.

Há também um componente antropológico em sua obra. Ele descrevia os comportamentos com a paciência de um etnógrafo, atento a códigos invisíveis e rituais sociais. Seus personagens, muitas vezes caricatos, revelavam dimensões profundas da cultura brasileira. A graça não estava apenas na piada, mas no reconhecimento de que aquela piada dizia algo sério sobre o país. O marido perdido no supermercado, o funcionário público indeciso, o eleitor desconfiado, todos condensavam traços de uma coletividade marcada por contradições, espertezas e fragilidades. No plano literário, Veríssimo conseguiu o feito raro de unir sofisticação e simplicidade. Escrevia para que qualquer leitor entendesse, mas sem abrir mão da precisão estilística, da construção engenhosa, do ritmo que fazia o texto fluir como música. Sua prosa tinha a leveza de uma conversa de bar e a densidade de um ensaio acadêmico. Essa combinação explica por que foi lido por milhões e respeitado por intelectuais de diferentes áreas.

O Brasil é um país que sempre necessitou de intérpretes e Veríssimo foi um dos mais originais. Não ofereceu grandes sistemas teóricos, mas ofereceu o olhar atento para o detalhe que desvela o sistema. Não escreveu tratados de sociologia, mas escreveu crônicas que cumpriam esse papel com mais eficácia do que muitos estudos acadêmicos. Sua genialidade esteve justamente em traduzir o complexo em linguagem acessível, em transformar o drama em humor, em fazer da literatura um exercício de consciência crítica. Luis Fernando Veríssimo não apenas escreveu sobre o Brasil, escreveu o Brasil. Registrou suas idiossincrasias, denunciou suas injustiças, celebrou suas invenções culturais, criticou suas autoridades, ironizou suas contradições. Fez da crônica um gênero central para entender a sociedade e, ao mesmo tempo, uma arte literária que dignifica a palavra escrita. Ao lê-lo, rimos, refletimos e nos reconhecemos. E é nesse espelho, construído com leveza e rigor, que a sociedade brasileira pôde se ver mais claramente.

Luis Fernando Veríssimo permanece como um desses raros autores que ultrapassam o tempo. Sua obra é memória e é futuro, porque continua a dialogar com cada nova geração que descobre no humor a força da crítica e no detalhe cotidiano o reflexo de uma nação inteira. Sua crônica é música que nunca cessa, jazz que improvisa sem perder o ritmo, palavra que brinca e ensina. É literatura que se abre como janela para um Brasil que insiste em rir, chorar e resistir ao mesmo tempo. Ele nos deixou um legado que não cabe em prateleiras, mas se espalha em cada leitor que aprende a olhar o mundo com desconfiança e delicadeza. Ler Veríssimo é continuar acreditando que a ironia pode ser ética, que o riso pode ser revolucionário, que a palavra pode ser mais forte do que qualquer arma. Por isso, ao lembrarmos de Luis Fernando Veríssimo, lembramos de nós mesmos. Somos o país que ele escreveu, somos o espelho que ele devolveu com generosidade e inteligência. E, enquanto houver leitores atentos, seu olhar continuará vivo, desafiando o conformismo e celebrando a beleza escondida nos gestos mais simples.

               * Sociólogo, cientista político e professor da UFRJ

https://www.revistaprosaversoearte.com/luis-fernando-verissimo-o-cronista-e-a-sociedade-em-movimento-por-paulo-baia/ 

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